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Image by Annie Spratt
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Foto: Acrevo da British School of Rio de Janeiro

Quando chegamos havia bandeiras inglesas e brasileiras penduradas por todo canto. Era um dia ensolarado e escola estava tinindo, tão limpa que parecia um outro lugar. O mais impressionante foi a ausência do costumeiro tapete de folhas e de frutas podres caídas das árvores que sempre cobria o enorme pátio asfaltado. Até o cheiro doce da sua decomposição tinha ido embora. 

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Fomos direto para nossas salas onde cada turma ficou esperando a sua vez para se dirigir ao auditório. No corredor, Mrs. Feitosa, nossa professora loura de Manchester, forte, nos seus quarenta e tantos e um tanto quanto tirana, estava a nossa espera. Sua maquiagem, seu perfume e seu vestido exagerado, embora discretamente ridículos, não diminuíam em nada a sua autoridade. Depois que a sala encheu, fechou a porta, bateu no quadro negro e falou alto e firme.

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"Alô-ô!!! Quero todo mundo sentado e prestando atenção!"

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Paramos o que estávamos fazendo e obedecemos em silêncio.

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"Muito bem! Vocês sabem quem está para visitar a escola daqui a pouco, não é?" Ela fez uma pausa para que a ideia entrasse na nossa cabeça. "Hoje não vai ter palhaçadas, quero todo mundo no seu melhor comportamento. Fui clara?"

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Mrs. Feitosa deu sua famosa olhada por trás dos óculos e torceu seus lábios finos. Como que por mágica, cada aluno pensou que a ameaça era dirigida a ele. Foi um alívio quando alguém abriu a porta dizendo que era nossa vez.

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"Todos de mãos dadas e vindo comigo!"

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Fui com meu amigo Henry, um inglês louro alto com cara sonolenta. No pátio consegui ver meus pais no meio dos outros adultos, todos igualmente impecáveis. Quando nos viam, acenavam e sorriam com orgulho. Depois, voltavam seus olhares ansiosos de um lado para outro para não perder a chegada da convidada ilustre.

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Na entrada do auditório, ouvimos barulhos de sirenes. Mrs. Feitosa olhou para trás. Seguimos seu olhar e testemunhamos o grande momento: acompanhada por sua comitiva, Sua Majestade, a Rainha Elizabeth II da Inglaterra, estava entrando na Escola Britânica do Rio de Janeiro.

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Em todo o seu resplendor, estava de pé em um Rolls Royce sem capota acenando e sorrindo para a pequena multidão agora reunida ao longo da fila de palmeiras que se estendia desde a entrada da escola até o pátio. Como garotos, o que mais chamou a atenção foram as motocicletas escoltando os carros oficiais; eram as mais incríveis que qualquer um de nós já tinha visto. Como num filme, eram enormes com motores barulhentos, antenas de rádio gigantescas e para-brisas cintilantes. Os guardas pareciam estrelas de Hollywood, com o sol refletindo nos seus óculos escuros, na carroceria e nas suas jaquetas de couro exibindo o emblema da polícia militar.

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Antes que pudéssemos falar alguma coisa, Mrs. Feitosa nos tirou do transe e mandou a gente entrar rápido no auditório. Os funcionários estavam nervosos, nos apressando para subir no palco e ficar junto com os colegas mais velhos. Depois que todos os alunos estavam ali, a segurança liberou a entrada dos convidados para ficarem numa área reservada nas beiradas do salão. Com o recinto cheio, as portas fecharam e todos ficaram aguardando a Rainha. 

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Depois de alguns minutos de expectativa, Mr. Gordon, o diretor da escola, entrou, andou até o centro do salão e pediu a atenção de todos. Num inglês impecável anunciou a convidada de honra. Quando sua Majestade colocou os pés dentro do salão foi como se o poder e a aura do Império Britânico estivessem entrando junto. Parecia que o prédio havia se transformado num lugar diferente que abrigava toda a pompa e circunstância do Reino. O Príncipe Phillip seguiu logo atrás e parou para conversar com, adivinhem quem? a Sarah! Minha irmã estava na parte reservada aos ex-alunos e foi incrível: confiante e polida.

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Os dois alunos escolhidos para dar as boas-vindas à Rainha eram ingleses “puro-sangue”, que era como todos chamavam aquela panelinha. Vestido como aristocratas do passado, o garoto andou até a Rainha e atirou ao chão sua capa de veludo com bordados dourados de maneira cavalheiresca. A garota, em pé em frente dele, fez uma reverência. Ele se curvou e ao se levantar gritou qualquer coisa que não entendi. O que quer que tenha sido, a Rainha mostrou sua aprovação e depois se virou para nós.

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A professora de música ergueu a mão e começamos a cantar. Estávamos bem ensaiados e para o alívio geral, cantamos bem. Depois dos aplausos, foi a vez das apresentações e dos discursos. A Rainha falou pouco, mas todos prestaram a máxima atenção e aplaudiram com entusiasmo no final. A cerimônia acabou com ela se despedindo graciosamente. As festividades continuaram até bem depois da saída da comitiva real. Todos voltaram para casa com as taças de chá que deram de presente e com a sensação de que se houve algum dia dourado para a comunidade britânica do Rio de Janeiro, tinha sido aquele.

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Por não saber se ficariam para sempre no Brasil, a escolha lógica tinha sido a Escola Britânica. Apesar do preço astronômico, o estabelecimento tinha uma longa e orgulhosa história de serviços prestados a famílias de expatriados britânicos e de anglo-brasileiros lutando - embora perdendo mais vezes do que vencendo - a dura batalha para blindar suas crianças do flagelo da brasilidade.

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Depois que o portão fechava, todos; direção, professores e secretárias, faziam de tudo para preservar o ambiente britânico. Até a comida dos almoços era britanicamente insossa. O inglês era a única língua usada não só nas aulas, mas também nas conversas com os amigos e até nas brigas. Seguindo a tradição, Mr. Gordon era famoso pelas surras de vara que dava nos meninos em frente da escola inteira. Nosso uniforme era típico - camisa de abotoar azul, calças de tergal e meias cinzas. A escola também recomendava que em casa o português só fosse usado com as empregadas. 

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A maioria dos pais dos meus colegas ou eram diplomatas ou trabalhavam para multinacionais britânicas. Nenhum deles tinha se mudado para o Brasil numa aventura existencial, e poucos compartilhavam a religião e a idade dos meus pais. Meus colegas ou sabiam dessa diferença ou pelo menos sentiam que havia algo de estranho ali e me tratavam como se fosse distinto. 

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Isso nunca chegou a ser uma desvantagem. Sem ter que seguir padrões convencionais, minha diferença conferia carisma. Talvez devido a isso acabaria me tornando o líder da bagunça, tanto dentro quanto fora da sala de aula. Isso aconteceu espontaneamente, sem que precisasse me impor fisicamente. Como consequência, acabei fazendo dois inimigos. Seja por inveja ou por se verem no direito - ou mesmo no dever - de me colocar no meu lugar, a dupla fazia de tudo para cortar a minha onda.

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Um deles, o Nicholas, era calejado por dois irmãos mais velhos e mal-encarados. Apesar do sobrenome irlandês, parecia e de alguma forma era, italiano. O outro, Garreth, um inglês "puro sangue", era o típico garoto bonitinho que se via em comerciais: sardento, de cabelos loiros e de olhos azuis. Apesar disso, nunca sorria e era o mais escroto dos dois. Juntos, eles infernizavam minha vida. Do nada, faziam a chamada cama de gato, onde um deles ficava agachado atrás, enquanto o outro vinha me empurrar com força pela frente. Sem provocação da minha parte, sempre que podiam ridicularizavam minhas piadas e brincadeiras. Na sala, faziam questão de competir comigo no que quer que fizesse. Eu vencia nos duelos de inteligência e de criatividade, mas perdia nos embates físicos, os mais importantes para garotos. Ninguém gostava deles, mas quando a única opção para se manter a dignidade era brigar, meus amigos amarelavam e eu tinha que enfrentá-los sozinho sem ter o equipamento físico nem psicológico para tanto. Contudo, estava resolvido a não me curvar.

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A chance de dar o troco veio em uma de minhas festinhas de aniversário quando convidei a sala inteira exceto Nicholas e Garreth. Revoltada com aquilo, uma das professoras tentou me dar uma lição. No dia da festa, ela me tirou do ônibus escolar e levou nós três de carona para casa. Para me constranger, no caminho ficou me perguntando sobre a festa. O plano não funcionou; não houve arrependimento nem um convite de última hora. Não daria a mínima chance para que os dois tivessem a felicidade de estragar meu dia.

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O revide veio quando convidei um colega de sala ao Clube Paissandu. Assim que nos viram na piscina, primeiro afastaram meu amigo e depois tentaram me afogar. Dar caldos uns nos outros era uma brincadeira comum, mas daquela vez a coisa foi para valer. Me deixaram em baixo d’água até não conseguir mais respirar. Entre as pernas dos dois, suas mãos segurando minha cabeça e meus ombros e sem ar, tudo ficou vermelho. Desesperado, saí distribuindo socos, cotoveladas e pontapés até conseguir subir e respirar de novo. Com os pulmões cheios continuei e, para meu espanto, dei uma surra nos dois. Só que logo depois chorei, não por causa da humilhação, mas por não entender o porquê de eles serem assim comigo. Talvez por isso, não aceitaram a derrota e a situação continuou.

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