

CAPÍTULO 1

The Escape - Eesti Rootsi Kultuuriühing
“No início Deus criou os céus e a terra.” Torá - Bereishit
Destino, sorte, fortuna, ou seja lá como chamam, fizeram o caminho de Rafael para o Brasil ser para lá de complicado. Tudo começou pouco depois do fim da Primeira Grande Guerra, quando ele mal sabia onde o país ficava. Mais precisamente no dia em que embarcou de mala e cuia num trem de sua cidade natal, Krosno, no interior da Galícia Polonesa rumo a Berlim. Como tantos outros jovens da sua geração, estava partindo para fugir do atraso do seu mundo e tentar a vida na grande metrópole.
Na solidão da longa viagem, enquanto contemplava paisagens ainda marcadas pelas recentes batalhas da janela, pensou no futuro. Havia muita raiva e muita irracionalidade nacionalista borbulhando ao seu redor, inclusive entre os passageiros que enchiam o trem a cada estação. Dava para sentir que algo estava nascendo nas pessoas, embora ninguém pudesse imaginar que aquele ar tenebroso seria o ninho de, entre outros horrores, uma segunda guerra mundial e a “solução final” que um bigodudo histérico imporia na sua gente a partir da destinação do seu trem, a Alemanha. Por conta dela, dois terços da sua família – seu pai e sua mãe incluídos – desapareceriam desse mundo sem culpa nem compreensão.
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Após o deslumbramento inicial da chegada, enquanto trabalhava duro para se estabelecer numa terra estrangeira, Rafael foi sendo envolto pelo clima macabro. Humilhados pelos vencedores de uma guerra que quase venceram e sofrendo uma hiperinflação incontrolável, os alemães estavam exauridos e zangados. Como se isso não bastasse, havia as promessas dos bolcheviques, agora donos da Rússia, de espalhar sua revolução não só na sua terra mas pelo mundo afora. O país era um terreno fértil para o nazismo, que estava se espalhando rápido como uma erva daninha na sua alma. Os comícios de Adolph Hitler atraíam milhões. Incendiados por seu antissemitismo vil, os mais radicais passaram a atacar judeus nas ruas e a pintar estrelas de Davi nas suas vitrines. Com a conivência da população, o ódio se institucionalizou e as autoridades criaram leis excluindo “inimigos do Reich” da vida pública. No caso de Rafael, o absurdo era mais gritante. Sendo louro de olhos azuis, bem sucedido, altivo e com um gosto por roupas refinadas, era confundido toda hora com um ariano legítimo.
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Quando a situação se tornou insustentável ele e seus dois irmãos, que também tinham se mudado para Berlim, fugiram para Amsterdã. Na nova cidade, tranquila e amistosa, como na história dos três porquinhos, nosso já não tão jovem herói assumiu o papel do irmão trabalhador, enquanto o mais velho, Ziesch, casou-se bem e o mais novo, Heimish, esqueceu os problemas e caiu na esbórnia. Porém, em 1940, com a neutra Holanda prestes a ser invadida pelos exércitos nazistas, o pesadelo voltou ao seu encalço.
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Rafael sabia bem que a SS não estava para brincadeira. Um ano antes, os alemães haviam invadido sua região e tinham tomado conta do seu vilarejo. Temendo o pior, cruzou a Europa livre para ver seus pais, agora impedidos de sair do país e prestes a ser deportados. No posto de fronteira, encontrou um clima de pré-guerra com soldados tensos e armados até os dentes patrulhando cada centímetro dos dois lados do arame farpado em meio à paisagem coberta de neve. Sem a possibilidade de atravessar, Rafael teve que se contentar em acenar de longe para Toni e Wolf, talvez pela última vez.
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Sua premonição se provaria correta. Semanas depois os dois foram isolados do mundo. Primeiro, foram trancados num gueto para meses mais tarde serem transportados como gado para um campo de concentração, Auschwitz, de onde só sairiam como cinzas flutuando no ar.
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De volta à Holanda, na véspera da invasão, Rafael conseguiu comprar passagens para ele, seus irmãos e suas famílias num navio com destino à segurança da Inglaterra. A invasão começou na noite em que iam partir. Sons de sirenes rasgavam o ar, aviões davam rasantes por cima das casas e o rugido do assalto terrestre à cidade se aproximava. Em meio ao terror, os dois irmãos se deram conta de que Heimish tinha sumido. Em vez de correr para o porto, saíram feito loucos atrás dele. Quando perceberam que não dava para encontrá-lo, o navio já havia zarpado.
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Desesperados, desistiram e foram para o cais, agora a única possibilidade de fuga. Lá, em meio ao caos, Rafael deu um jeito de comprar um bote de pesca. Naquela frágil embarcação de madeira, saíram remando rumo ao alto-mar entre navios afundados e outros barcos em fuga. Quando distantes, pararam​ para assistir incrédulos a vida que sempre conheceram desaparecer em explosões no horizonte. Depois, partiram em silêncio sem saber se tinham dado azar ou sorte de ter encontrado refúgio na vastidão marítima. O cálculo era que na debandada, um barco maior os recolhesse. No entanto, dez longos dias e noites se passaram sem comida ou bebida a bordo e sem nenhum sinal de vida no mar do Norte.
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A noção de onde estavam e para onde iam dependia do filho de dezesseis anos de Ziesch, Eli. Tido como o malandro da família depois que um vizinho veio reclamar que tinha deflorado sua filha, havia aprendido nos escoteiros a se orientar pelas estrelas. Apesar desse pequeno conforto o clima a bordo era de desorientação, amplificado pela fome, pela sede e pela maresia. Resignado com o inevitável, Rafael gravou seu nome na madeira para que soubessem de quem era o corpo caso o encontrassem.
Na décima manhã, a esperança reapareceu na forma de um avião militar. Esperto, o garoto teve a ideia de usar um espelho para refletir a luz do sol nos olhos do piloto. Sua sagacidade salvou a vida de todos. A aeronave se aproximou e fez um círculo a sua volta. Por sorte, era britânica.
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Voando baixo, o piloto apontou para a direção que tinham que seguir. Usando o que restava das suas forças, a família voltou a remar rumo à sobrevivência. Não tardou para que vissem um pequeno ponto no horizonte, um navio da Marinha Real. O piloto tinha avisado seu comando. A tripulação teve que agir rápido pois estavam próximos de um campo minado. Qualquer atraso significaria a morte dos náufragos quer por explosão, quer por inanição. Durante a operação, aviões alemães atacaram o navio matando alguns marinheiros. Devemos agradecer e admirar esses heróis anônimos. Sem o seu sacrifício e sua humanidade essa história nunca teria acontecido.
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