


Foto: Blog Guilherme Arantes
Em termos de família não estávamos sós no Rio. Embora isso nunca tivesse pesado na decisão de emigrar, Rafael tinha uma prima distante, Duscha que tinha emigrado da Alemanha antes da guerra para Copacabana com junto com o marido arquiteto. Ao contrário dos meus pais que tiveram filhos tarde – Rafael tinha sessenta e dois e Renée quarenta e dois quando nasci – ela teve seus filhos logo que chegou, nova. Portanto, nossos primos eram uns quinze ou vinte anos mais velhos.
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Nunca conheci meu primo, mas minha prima era bem chegada e acabaria se tornando famosa; Bibi Vogel. Com seus olhos vivos e penetrantes, lábios escuros e corte de cabelo hippie ela foi uma das musas de sua geração. No entanto, não foi só a beleza que a trouxe fama, foi muito talento também. Excelente cantora, tinha um estilo parecido com o de Joan Baez e chegou a gravar álbuns de algum sucesso. Contudo, Bibi se destacou mais como atriz, mostrando seu talento cedo num dos papéis principais na versão brasileira de Hair, o ícone musical da contracultura dos anos sessenta.
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Antes de virar famosa, Bibi se mudou para Nova York. Lá, no auge do sucesso da bossa nova, ela tentou a sorte com a banda de uns amigos pertencentes a turma do Beco das Garrafas. Eles eram bons, lotavam casas noturnas e conseguiam viver de música. Depois de um ano ou dois naquele agito, Bibi voltou para passar as férias com os pais. No Brasil, ouviu "Mas Que Nada", o sucesso de Jorge Ben (“ôôôô... Mariá aiôô, obá, obá, obá...”). Encantada com seu balanço, na volta apresentou a canção à banda. Todos adoraram e a adotaram na hora. Em pouco tempo, ela passou a ser uma das favoritas dos músicos e do público. Pouco depois, minha prima decidiu abandonar seus companheiros para ir atrás do namorado que estava de mudança para a Califórnia. Chateado, mas sem outra opção, Sérgio Mendes a substituiu por uma vocalista americana. Pouco depois, conseguiram assinar um contrato com uma gravadora importante. Acreditando no potencial, chamaram o mega produtor Quincy Jones, que mais tarde produziria o Triller do Michael Jackson, para ajudar. Quando o disco saiu, Sergio Mendes e o Brasil 66 transformaram a música numa referência internacional.
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Depois da aventura americana, Bibi voltou ao Brasil e fez carreira como atriz na TV Globo. Contudo, a vida de artista pode ser difícil e quando o bolso aperta cada um se vira como pode. Ao me tornar adolescente, fiquei boquiaberto ao dar de cara com uma foto da minha prima seminua na capa da Status – a primeira revista masculina do Brasil na banca de jornal. Mais chocante ainda, acabaria também vendo a Bibi em cartazes de pornochanchadas. Esse era um estilo de filmes com elementos das chanchadas, comédias musicais dos anos 1950 com Oscarito e Grande Otelo, mas com um tempero soft-pornô. Embora péssimos, lotavam salas de cinemas com homens solitários da classe baixa e adolescentes de classe média com carteiras escolares falsificadas. Os dois grupos gastavam suas economias para ver atrizes mostrando seus seios em situações sexuais.
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Se só o fato de ter uma prima envolvida nisso era estranho, para tornar a coisa ainda mais bizarra, sua mãe, Duscha, era a cantora principal no coral da nossa sinagoga. Nos feriados importantes do calendário religioso, ficávamos envaidecidos quando ela agraciava a comunidade com sua voz treinada e angelical nos pontos altos das cerimônias.
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O mais confuso era que, apesar das conquistas artísticas da Bibi e da sua imagem serem contrárias a tudo o que meus pais pregavam em casa, eles não conseguiam deixar de sentir orgulho dela. Como em qualquer família de classe média, sucesso financeiro era mais importante do que virtude. Sem ligar para esses conceitos, era fascinado pela minha prima mais velha, que quando éramos pequenos nos encantava encenando histórias e lendo trechos das suas peças favoritas de teatro. Além de culta, tinha uma personalidade que impunha respeito, foi uma das primeiras feministas do país e era enturmada com a nata artística da sua geração.
Não podia deixar de sair em sua defesa quando os amigos faziam gracinhas. "E aí, Rique! Está cobrando quanto pela meia hora com a tua prima?"
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Para mim, Bibi foi uma inspiração: se alguém da minha família tinha conseguido se dar bem no meio artístico, por que não eu?
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Na escola e nos círculos de amizade de meus pais, todos me consideravam "artístico". Nunca soube dizer se isso era um elogio ou uma forma educada de dizer que era um caso perdido. Certos ou errados, gostava de desenhar, era vidrado em cinema e adorava livros; se a história me tocasse passava semanas fantasiando. Porém, acima de tudo, a música mexia comigo. Musicalidade corria na família, não só do lado da Bibi mas, principalmente do lado da minha mãe. Ela tocava piano, Alec, seu pai, era autodidata e sua mãe, Esther, era professora. Seu tio, o maestro Sydney Torch - o primeiro da família a se mudar para Londres - conduziu a orquestra de concertos da BBC. Uma geração mais tarde, nos anos oitenta, Ben Mandelson, meu primo de Liverpool, seria guitarrista do consagrado bardo da esquerda britânica, Billy Bragg.
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Com a proibição de qualquer tipo de gênero popular em casa me voltei para a música clássica. Era um apaixonado por Bach, Debussy e Stravinski. Nos fins de semana, acordava antes de todo mundo para aproveitar a sala vazia, onde ligava a vitrola e ficava conduzindo orquestras invisíveis com a minha caneta telescópica japonesa.
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Vendo uma promessa de talento, ignorando as ressalvas de Rafael, Renée providenciou aulas de música na escola. O professor, Mr. Stansfield, era uma pessoa especial vinda para o Rio por meio de uma instituição de caridade ligada à Igreja da Inglaterra. Ele sofria de paralisia cerebral e os sintomas eram severos. Sua falta de coordenação motora tornava o simples ato de andar difícil. Contudo, isso não afetou sua habilidade de ensinar um menino de sete anos a tocar flauta doce.
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Depois de vencer as duras batalhas para conseguir tocar a minha primeira canção – Au Claire de la Lune – o instrumento passou de inimigo a melhor amigo. Logo, descobri a magia de fazer e de criar música. Os sons e as frases que saíam da flauta me ligavam a uma energia sutil que parecia escapar a maioria das pessoas. Apesar de meus inimigos da escola encararem a nova descoberta como mais um motivo para me atacar, vizinhos, professores, a família e amigos me encorajavam.
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“Ele traz vida à escola com a sua flauta”, disse uma professora à minha mãe, se referindo às minhas explorações musicais com o eco dos corredores vazios enquanto esperava pelas aulas do Mr. Stansfield.
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“Que graça teu filho tocando música nesta idade”, diziam os vizinhos, opinião talvez suspeita por causa da etiqueta polida do prédio.
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De qualquer forma, depois de um ano tendo que aguentar as intermináveis viagens musicais de um pirralho, todos ficaram secretamente aliviados quando troquei a flauta por uma nova paixão mais silenciosa e mais atlética, ligada ao ar livre: o jacaré ou o bodyboarding.
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Depois do estágio de apostar corridas com a espuma d´água tinha passado às pranchas de isopor. Comecei no rasinho, mas depois que aprendi a nadar, o próximo passo foi me aventurar até onde as ondas quebravam e depois gradualmente aprender a cortá-las para os lados quando estavam arrebentando. Fui ganhando confiança no mar e passei a enfrentar desafios maiores. Entusiasmado, fui aprimorando minha técnica e aprendi como lidar com as correntes marítimas. As pranchas foram diminuindo, até que as deixei de lado e passei a usar somente as mãos com a ajuda de pés de pato. Quando percebi, já fazia parte do grupo dos “casca grossas".
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Pegar jacaré passou a ser a melhor coisa do mundo. Lá longe, atrás da arrebentação, debaixo do sol e longe dos edifícios, tudo era puro, simples e calmo. Havia apenas o corpo imerso na vastidão da água profunda e despoluída do oceano, seus sons e sua dinâmica incontrolável. Quando as ondas se formavam no horizonte, era como estivessem nos chamando. Para pegá-las, tínhamos que nos posicionar no lugar perfeito e começar a nadar na velocidade exata até que o mar nos permitisse fazer parte de sua parede. Depois disso, era só guiar nossos corpos, nos movendo ligeiramente para prolongar o êxtase o mais que possível.
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As ondas grandes podiam ser medonhas, mas também eram as mais divertidas. No auge de minha carreira de bodyboarder, nos dias de ressaca dominava ondas de até dois metros e meio, do tamanho da parede de um quarto, que vistas por baixo pareciam enormes. Sempre havia um ponto de não retorno quando ainda se podia olhar para baixo e pensar sobre o que se estava prestes a fazer. Nesse ponto, o cara tinha que ser meio doido para continuar, mas, em noventa por cento dos casos, o desafio mais que valia a pena.
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O ponto alto de pegar jacaré era ficar envolto pelo tubo da onda, ou entubar. Esse é, com certeza, um dos melhores lugares para se estar no planeta: uma efêmera caverna d´água formada pela natureza. Para um menino, havia uma poética erótica, ainda que subliminar, de se estar ali com o corpo rígido deslizando pelo túnel de água do cosmos.
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Esse tipo de comunhão com a natureza era maior e melhor do que qualquer outra coisa que alguém tinha me ensinado em casa ou na escola. Ao desafiar o oceano me sentia forte, corajoso e acima de tudo harmonizado. Por noventa por cento do corpo ser composto de água, a energia do mar era como um carregador de baterias natural. Depois dessas sessões, exausto, mas num bem-estar absoluto, andava pensativo para casa na beira do mar.
O sentimento que tinha nos passeios de madrugada com meu pai retornava, e com ele as perguntas metafísicas e existenciais apareciam num novo prisma. Sem a sua presença, refletia sobre minha existência bizarra e meu destino de ter que conciliar mundos tão distintos. Ficava pensando que, apesar daquela complexidade insuportável, era apenas um cara como qualquer outro. Por que não me tratavam como eu era, mas sim como gostariam que eu fosse? Por que deveria ser o menino “especial”, solitário e estudioso, que meus pais queriam? Em casa censurava aqueles pensamentos. Mesmo assim, quando contava minhas façanhas, elas eram acolhidas com apreensão; havia o medo que fosse seduzido por atividades socialmente questionáveis que acabariam me desviando do futuro brilhante reservado a meninos como eu. Para Renée e Rafael, o culto ao físico e a coragem praieira eram coisas para os vândalos cabeludos e insolentes que estavam tomando conta das praias e das ruas cariocas. Nos seus círculos, surfistas e roqueiros estavam estragando não só o Rio, mas o mundo. As nuvens de um conflito estavam se formando.
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