

CAPÍTULO 3
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Foto: Renée Klein
"Todo menino é um Rei."
Roberto Ribeiro
Na sexta-feira, 23 de novembro de 1968, Rafael saiu de madrugada para dar sua caminhada diária já se preparando para aquela jornada especial. Essa era a sensação para qualquer pessoa no Rio de Janeiro com ligação ao Reino Unido. Ninguém menos que a Rainha Elisabeth II estava hospedada a poucos quarteirões do nosso prédio, no Hotel Copacabana Palace.
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Na sua caminhada, ficou pensando no quanto a Inglaterra o tinha ajudado. Quando parou para apreciar o espetáculo do sol clareando o horizonte, um sentimento forte de gratidão se fez presente. Na sua confusão momentânea, passou por sua cabeça a vontade de comentar com Sua Majestade o quanto aquele lugar era fantástico. Deu vontade de explicar que os pássaros se punham a cantar nas ruas que entrecortavam os prédios cercando a praia quando a maresia e a claridade invadiam o bairro. Essa sinfonia ecoava nas paredes de concreto e entrava por todas as janelas, quer nas sacadas dos hotéis de luxo, quer nos barracos da favela no morro ao longe, quer na nossa varanda no décimo segundo andar. Para os que moravam mais próximos ao mar ainda havia o som rítmico das ondas quebrando ao fundo com sua espuma salpicando a areia, indo e vindo eternamente na vastidão.
Alheios aquele momento especial, a comitiva real, Renée, Sarah e eu estávamos mergulhados no sétimo sono, todos protegidos por ar-condicionados barulhentos. No nosso quarto, o despertador tocou às seis e quinze da manhã. Por mais que a preguiça tentasse me convencer de que nada estava acontecendo, não dava para ignorar. Imerso num estupor, vi o vulto da Sarah se levantando e aliviando a situação ao desligar o aparelho.
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Já com onze anos, grande, com uma cabeleira negra e despenteada, minha irmã não só ofendeu meus sentidos ligando a luz como também fez um barulhão tirando suas roupas do armário. Depois, foi tomar banho deixando, talvez de propósito, a porta aberta, permitindo que o ar quente invadisse o quarto. Lutando contra a claridade e o calor de baixo da coberta, num esforço sobre humano, me estiquei para ligar o rádio de pilha que deixava no chão ao lado da cama. Assim que consegui, girei o sintonizador até achar a Rádio Globo.
Aumentei o volume, voltei a cabeça para o travesseiro e entrei em sintonia com o resto do Rio de Janeiro. Essa era rádio preferida das domésticas, dos porteiros e de outras pessoas comuns. Para mim, era a voz do Brasil, adorava aquilo, apesar de ninguém em casa conseguir entender nem como nem por quê.
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O apresentador com voz de cantor de ópera, o bem-humorado Haroldo de Andrade, conduzia o show matinal de maior audiência da cidade. Nele, além de fazer orações, transmitia notícias, divertia os ouvintes com curiosidades e fazia entrevistas com astros do futebol, do samba e das novelas. Era um programa interativo em que gente da cidade inteira ligava para deixar opiniões sobre os assuntos do dia. Durante os intervalos, tocava os últimos sucessos do samba e hits da Jovem Guarda: Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Wanderléa entre outros. Roberto Carlos, o rei, devia ser muito caro para tocar naquele horário. Tinha também o momento do astrólogo da rádio, Alziro Zarur, com suas previsões acompanhadas por música mística, meio oriental, ao fundo.
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Absorvido naquela "porcaria” – nas palavras da minha irmã – vi a Sarah voltar para o quarto enrolada numa toalha. Sem falar uma palavra, irritada com minha preguiça, pegou o rádio do chão, mudou de estação, desligou o ar-condicionado já fraco, abriu as venezianas de madeira e me mandou sair para que pudesse se vestir.
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Ficou difícil dizer o que era mais irritante: ser o caçula e ter que obedecer sem questionar ou ser obrigado a levantar tão cedo. De qualquer forma, se me acordar era o que queria, ela conseguiu. A luz forte e a música americana chata tinham estragado meu zen matinal.
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Antes de fazer qualquer coisa, saí para a varanda. Assim que os pés tocaram a cerâmica fria, o sol bateu no meu rosto junto com a brisa do oceano me desejou um bom dia. Aquele era o meu lugar favorito da casa; foi lá onde tinha aprendido a falar, a andar e a brincar. Adorava ficar ali contemplando a vista ou sonhando acordado na rede de balanço em meio às plantas ou me debruçando no parapeito para espiar as pessoas e os carros passando lá embaixo.
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Como um cão fiel, a bola de futebol tinha passado a noite do lado de fora. Minha dente de leite não era uma bola de couro profissional, mas pelo menos não era daquelas infantis que pareciam um balão. Dava para bater uma pelada de verdade com ela. Seu plástico rígido podia se tornar vil: se chutada com força contra a parede soava como um sino e caso a bolada acertasse na pele, vinha acompanhada de uma ardida respeitável. Por conta de alguns incidentes desastrosos, era proibido dar bicudas em casa, mesmo na varanda. Havia o perigo de quebrar uma janela, ou pior; segundo meu pai, se qualquer brinquedo caísse lá embaixo e acertasse alguém, poderia quebrar seu pescoço ou rachar sua cabeça e o matar.
"Já imaginou uma bola pesada?!"
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"Mas como é que vão saber que ela veio daqui?"
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"A polícia sabe de tudo!” respondeu Rafael segurando o riso.
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Minha irmã veio até a varanda já pronta. "Richard! Você ainda está aí!? Você vai atrasar todo mundo! A mamãe já está vestida!"
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A mini bronca caiu como um segundo despertador. Entrei e fui direto para o banheiro. Gostava de tomar banho naquela hora porque dava para ouvir o rádio da Maria, a empregada, na área de serviço. Ela também gostava da Rádio Globo. Só que de manhã cedo, para garantir que tudo estivesse dentro do horário, ouvia a Rádio Relógio, uma estação que dizia as horas a cada dois minutos entre anúncios monótonos e informações bizarras.
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"Você sabia que o rinoceronte africano tem dois chifres; o maior fica na frente e o menor atrás? Você sabia?... Bip, bip, biiiiip... são seis horas, quarenta e dois minutos e zero segundos... Biiip."
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Sarah e eu adorávamos aquela mulata faladeira que vivia rindo de nossos hábitos gringos. Forte, mas não gorda, lábios carnudos, um dente de ouro, olhos intensos e puxados como os dos orientais, ela enchia a casa de energia brasileira, principalmente quando estávamos a sós. Anos mais tarde o faxineiro do prédio, Zé, me contaria que Maria era fogosa e que a maioria dos empregados do prédio já havia tentado algo com ela, com níveis variados de sucesso.
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Depois do banho, de escovar os dentes, pentear os cabelos, vestir o uniforme com perfeição e colocar sapatos engraxados e desconfortáveis estava pronto para me unir à família.
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Quando cheguei na varanda, todos já estavam sentados embaixo do toldo. Em dias de sol, a gente tomava o café ali numa mesa de plástico dobrável que minha mãe mandava cobrir para disfarçar sua simplicidade. Maria estava lá de uniforme fazendo cara séria em frente ao homem da casa, tomando cuidado para não derramar nada ao servir a nossa refeição matinal anglo-tropical; ovos cozidos, leite quente, mingau, geleia, bananas, mamão, suco de laranja espremido na hora, pão preto, mel e manteiga.
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Café tomado, com todos impecáveis, a família saiu para pegar o elevador. Na portaria, minha mãe deu as chaves do carro ao garagista. Passados uns minutos, o porteiro veio avisar que o Aerowillys estava a nossa espera na rua. Fiquei para trás para esperar o ônibus escolar, afinal era o único que estudava na British School of Rio de Janeiro, onde o grande evento iria acontecer.
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Para apanhar os demais alunos, o ônibus vermelho ziguezagueava pelas ruas que cortavam as três artérias principais do bairro; a Avenida Atlântica, a Avenida Nossa Senhora de Copacabana e a Rua Barata Ribeiro. A ronda demorava uns trinta minutos cruzando ônibus lotados, bondes, lotações, táxis e carros particulares. Lá dentro, ficávamos brincando, acenando para os outros carros e tirando sarro dos motoristas impacientes que buzinavam e gritavam sem qualquer motivo nos engarrafamentos.
O clima ficava apreensivo quando cruzávamos quando cruzávamos meninos das favelas descalços conduzindo carrinhos de rolimã no meio do congestionamento. Aqueles meninos maltrapilhos nos causavam uma mistura de inveja e de medo. Muitos eram da nossa idade e era evidente que apanharíamos fácil se tivessem a oportunidade de nos enfrentar. Eles já trabalhavam para feirantes entregando compras nas casas e nos escritórios. As feiras eram como circos comerciais ao ar livre que mudavam de lugar todos os dias da semana levando consigo um odor acre de frutas, de carne e de peixes expostos ao sol para onde quer que parassem. Seu cheiro e seu barulho anunciavam sua presença a vários quarteirões. A movimentação nelas era incessante, com freguesas de todas as classes sociais esbarrando em ajudantes, mendigos e garotos da favela em meio às bancas de onde feirantes em camisetas rasgadas cantavam rimas para atrair as madames.
"Ooooolha aí! Mulher bonita paga metade se levar meio quilo! – Olha a banana novinhaaaaa, dez cruzeiros a dúziaaaaa! Quem vai levaaaar?"
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Enquanto isso, no trânsito congestionado, policiais elegantemente uniformizados controlavam os cruzamentos por meio de uma coreografia de apitos, olhares e movimentos de mãos que lembravam um ritual de acasalamento de uma ave rara que todos os motoristas pareciam entender.
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