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Image by Annie Spratt
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Foto: Jean Manzon

Os filhos nasceram naquele mundo centrado na criação de um personagem especial, sucesso financeiro e um processo de adaptação mal resolvido. Primeiro veio minha irmã, Sarah, e cinco anos mais tarde, em 1962, foi a minha vez. Nasci entre os bairros de Botafogo e de Copacabana, no já demolido Hospital dos Estrangeiros, no Morro da Babilônia. Como veremos, este nome seria um presságio emblemático. No tocante ao nosso futuro, havia uma mensagem na passagem mais bonita do Hino Nacional: “Dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada Brasil”.

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Minhas primeiras memórias são duas; fechar os olhos para ficar curtindo as milhares de estrelinhas que pareciam e ficar vendo partículas de poeira flutuando na luz do sol entrando pela janela. Depois que "virei gente" me lembro bem de adorar acompanhar meu pai nos seus passeios que fazia de madrugada pela praia deserta.

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O mundo de Rafael vinha à tona naquelas suas caminhadas diárias. A paz e a simplicidade daquelas horas lhe faziam bem. Ela vinha assim que descia do prédio e dividia as ruas desertas com empregadas em busca do primeiro pão quentinho – seu cheiro maravilhoso saindo das padarias dos imigrantes portugueses e se dissipando na maresia –, com raros porteiros zelosos limpando as entradas dos edifícios e com os bandos de cachorros vira-lata que corriam atrás de caminhões de leite e de jornais.

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Depois de atravessarmos a avenida Atlântica vazia, tirávamos os chinelos e cruzávamos a areia úmida, ainda fria, até chegarmos na beira do mar. Lá, com a praia só para a gente, começávamos nossas andadas. Na falta de outro assunto, talvez precocemente ou talvez absorvendo o seu estado de espírito, puxava conversas existenciais. Eu lhe perguntava sobre o significado da vida, sobre a existência de Deus, do porquê das coincidências, de como era possível explicar a sorte e outras coisas que não conseguia entender. O que sabia, Rafael respondia da maneira mais fácil que alcançava e quando não tinha resposta, mudava de assunto. Atrás de nós, o mar desmanchava as pegadas que deixávamos na areia molhada. 

 

Os passeios sempre terminavam na colônia de pescadores que ainda fica na ponta da praia de Copacabana, no Posto Seis. Sua sede era uma das primeiras construções do bairro: um velho barracão de madeira onde vendiam sua pesca fresca. Do lado do depósito, dúzias de coloridos barcos pesqueiros de madeira descansavam sobre a areia em meio a redes. Ao seu redor, enxames de moscas zuniam no cheiro forte de sal e de peixe podre que permeava o ar, enquanto gaivotas disputavam os restos da pescaria com cachorros magros, observados por jumentos sonolentos e por bodes amarrados.  

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Antes do amanhecer os pescadores partiam em grupos de cinco ou seis. Suas peles curtidas por uma vida passada no mar debaixo do sol e suas feições fortes, porém relaxadas, os davam um ar não urbano. Os mais experientes ficavam na praia coordenando a atividade através de gritos, assobios e sinais. Quando chegávamos na colônia, o sol já tinha raiado e os barcos estavam voltando. Os homens tiravam as embarcações da água, deitando troncos de árvores na areia à sua frente e empurrando com toda força até que chegassem na área seca próxima da avenida.

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Os peixes vinham logo depois presos em redes gigantescas. O momento de puxá-las para a areia era um mini festival. Os pescadores sempre precisavam de reforços e nunca faltavam voluntários. Um grande círculo humano se formava trazendo as centenas de criaturas, pulando em todas as direções tentando se libertar. Já espalhadas na areia e se contorcendo em busca de ar, os patrões vinham, separavam os melhores pescados e deixavam o resto para quem havia ajudado. 

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Às vezes Rafael me deixava participar. Depois de suar e de maltratar as mãos nas cordas como todo mundo, fazia questão de aceitar os peixes que ofereciam. De volta em casa, invariavelmente meus troféus acabavam no lixo por não serem bons o suficiente para os jantares pretensiosos. 

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Poucas horas mais tarde, as famílias do bairro iam para a praia tal como cardumes surgindo das barras dos rios e nadando em direção ao mar. O dia começava com babás ou mães girando o pé do guarda-sol para dentro da areia até que o cabo se firmasse. Se não conseguissem, sempre havia por perto vendedores ambulantes ou salva-vidas dispostos a dar uma mão flertosa. Findo o processo, abriam os guarda-sóis que passavam a fazer parte do tapete de pontos coloridos cobrindo os quilômetros de areia dourada. Depois era hora de estender as toalhas, desdobrar as cadeiras e, por fim, liberar pranchas, bolas, bóias e baldinhos. 

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Para nós, a praia era um parque de diversões sob o sol escaldante. Fazíamos uma festa correndo atrás de cardumes de peixinhos na água transparente, nos enterrando na areia, levantando barragens para conter as ondas, caçando tatuís – bichinhos que viviam debaixo da areia molhada – cavando túneis, construindo castelos e travando guerras de areia. Conforme íamos adquirindo mais intimidade com a água, íamos descobrindo as ondas e aprendendo a mergulhar por baixo ou pelo meio da sua espuma. 

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Para descansar, ficávamos na beira d'água espiando o fluxo constante de pessoas indo e vindo. De tempos em tempos, os adultos acenavam para que voltássemos às toalhas. Lá, mandavam a gente se limpar e, quando satisfeitos, paravam um dos vendedores ambulantes que cruzavam a praia carregando caixas pesadas de isopor com picolés da Kibon ou mini tanques de lata com Matte Leão. O gelado doce dos seus refrescos era perfeito naquele sol forte.

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O sol não era o rei da praia, quem comandava o espetáculo era o mar. Sua água salgada era muito mais refrescante do que qualquer chuveiro ou do que qualquer piscina e oferecia uma liberdade que só a natureza pode prover. Não era só a gente que aproveitava. Às vezes, golfinhos pulavam para fora d´água e, mais raramente, cações inofensivos, mas com barbatanas parecidas com as de tubarões, passavam causando comoção na praia.  

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Em tardes com vento, enquanto os adultos jogavam voleibol, futebol e peteca, meninos desciam das favelas para se aventurar no meio dos "bacanas". Não se atreviam a entrar na água; a diversão deles era aproveitar o vento oceânico para travar batalhas aéreas com pipas artesanais. Alguns passavam cola com vidro moído - cerol - nas suas linhas para que se tornassem mais eficazes na hora de cortar as dos inimigos. Uma pipa girando descontrolada era sinal de que aquele escudo voador tinha caído vítima de outro grupo. Quando finalmente aterrissava na areia, a meninada vitoriosa saia correndo às dezenas para apanhar o troféu. 

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No fim do dia, com o sol descendo, a praia parecia relaxar. O calor ficava menos intenso e uma brisa refrescava a sombra dos prédios começando a cobrir a areia. Nas áreas onde o sol ainda batia, seu dourado pintava a tudo e a todos com um colorido especial. De vez em quando, grupos de amigos vindos dos morros aproveitavam aquele horário mágico para fazer uma roda de samba proporcionando uma trilha sonora única para aqueles entardeceres. 

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Minha companheira de praia era Pilar, uma babá portuguesa bonita, de vinte e tantos anos. A única coisa de que me lembro bem dela é de ficar apreciando o seu corpo nu com marcas de maiô enquanto tomávamos banho juntos depois da praia. Na banheira, podia examinar todas aquelas coisas sobre as quais tinha conversado com meus amigos. Pilar acabaria se casando com meu barbeiro, Sr. Ribeiro, também português, porém baixo, de bigode e com os cabelos louros e encaracolados. Certamente para atrair a simpatia da moça, sempre me guardava balas Soft, chicletes Ping-Pong e as mais recentes revistas Manchete, O Cruzeiro e Placar. Tudo isso era proibido em casa, mas eu adorava.

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