


Foto: autor desconhecido
A vida carioca do casal começou em clima de segunda lua de mel num quarto de frente para o mar no hotel Miramar em Copacabana. Apaixonados um pelo outro e os dois pelo Rio de Janeiro, passavam os dias de semana na praia semi-deserta. Nos fins de semana, para evitar a multidão, alugavam um carro ou para ir a floresta da Tijuca, onde faziam aventuras a pé pela mata, ou para fazer ddescobertas pelo Estado do Rio a fora.
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Depois de algumas semanas, já aclimatados e com uma cor, embarcaram na sua primeira missão carioca: escolher um lugar para morar. Na busca, além de conhecerem como os cariocas viviam, visitaram recantos menos turísticos. Os apartamentos - a maioria recentes - e as casas antigas eram invariavelmente amplos. Todos ficavam em localizações de sonhos para um casal vindo da Londres cinzenta e castigada do pós-guerra.
Apesar de se encantarem com tudo o que viram, escolheram permanecer em Copacabana. Lá, além da proximidade da praia e de Paulo, havia algo que os outros bairros não tinham: o glamour com que estrelas como Fred Astaire, Ginger Rogers e Carmen Miranda haviam apresentado o Rio de Janeiro ao mundo. O lugar tinha carisma. Às vezes lembrava as charmosas cidades costeiras da Côte d´Azur, com suas ruas calmas e limpas e com seu cotidiano praieiro, noutras vezes lembrava Manhattan, com sua floresta de edifícios modernos e elegantes. Neste aspecto, o ar cosmopolita, porém verde e bonito da "Princesinha do Mar" não tinha páreo no Brasil.
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O bairro parecia perfeito para o seu sonho de prosperidade tropical. Suas avenidas eram repletas de lojas oferecendo novidades importadas, boutiques exclusivas, cinemas e casas noturnas sofisticadas. Por recente e abastado, seus estabelecimentos ou eram os melhores da cidade ou pertenciam às melhores redes do país. Circulando em suas ruas ou estacionados em suas calçadas, carros de luxo nacionais e importados do último modelo realçavam seu ar internacional.
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A praia em si era maravilhosa: quatro quilômetros de areia branca abertos para o oceano cercados por uma exuberante cadeia de morros separando aquela maravilha do resto da cidade. À sua frente, um pequeno grupo de ilhas cobertas por vegetação selvagem quebrava a monotonia do horizonte. Seu passeio público, a elegante Avenida Atlântica, era o cenário onde de dia a elite carioca exibia seus corpos torneados e bronzeados e onde nos fins de tarde desfilava com suas melhores roupas nas suas caminhadas.
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Decidido o bairro, a escolha do apartamento foi fácil. Com uma conta bancária recheada de valorizadas libras esterlinas provenientes da venda da casa em Londres podiam voar alto. Em breve estavam alugando uma espaçosa cobertura com uma ampla varanda que dava uma deslumbrante vista da praia. Como todos os outros prédios ao redor, a entrada parecia a de um hotel de luxo. Painéis de mármore e enormes espelhos emoldurados revestiam suas paredes imitando palácios na Europa em cenários hollywoodianos.
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Comprada a preço de banana em casas de leilão no pós-guerra, a mobília do casal era classuda e combinava bem com a elegância do endereço. Ela incluía antiguidades como uma autêntica mesa de cabeceira Chippendale, um piano de cauda, talheres de prata, porcelana chinesa legítima e pinturas clássicas falsas, porém convincentes.
Tudo havia sido enviado de antemão por navio e agora, três meses depois, estava à sua espera na alfândega do porto. Enquanto Rafael saiu em busca dos contatos comerciais que seus amigos haviam fornecido, Renée ficou responsável por liberar seus tesouros.
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Armada com o português básico aprendido com um professor particular improvisado indicado pela embaixada brasileira em Londres, ela foi lidar com a burocracia local. Aos olhos do encarregado, a madame inglesa era a personificação da gringa rica e ingênua. Mesmo avisada, Renée se recusou a aceitar que um homem tão charmoso, numa posição de tanta responsabilidade, pudesse estar atrás de propina, apesar de que todos seus novos vizinhos e amigos haviam assegurado que qualquer pessoa nesse tipo de trabalho iria querer algum tipo de “incentivo” para agilizar as coisas. Numa tarde decisiva, seu medo de ofender foi tanto que não teve coragem de entregar um envelope gordo, recheado de dinheiro. Essa hesitação lhe custou mais quatro meses de espera.
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Enquanto o casal se instalava na Zona Sul carioca, talentos como Johnny Alf, Vinícius de Moraes, João Gilberto e Tom Jobim estavam dando origem à bossa nova misturando samba, letras inspiradas e jazz. As casas de show onde se apresentavam eram espalhadas por Copacabana; as mais exclusivas ficavam de frente para a praia na Avenida Atlântica e as mais na moda ficavam nas vielas logo atrás. Destas, a principal era o Beco das Garrafas onde estas e várias outras futuras lendas da bossa nova e do jazz brasileiro começaram. Esse seria o berço de clássicos do gênero como a Garota de Ipanema, que Frank Sinatra gravaria no auge de sua carreira e que venderia, fora do Brasil, tanto quanto os sucessos dos Beatles e dos Rolling Stones.
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A bossa era a expressão musical do país promissor, inteligente, urbano e sofisticado onde o casal tinha desembarcado. Rafael tinha acertado quanto às suas possibilidades. O slogan do presidente Juscelino Kubitschek era fazer "cinquenta anos em cinco”. Com isso em mente, seu governo investiu pesadamente em infraestrutura e abriu o país para o capital externo.
A decisão incomum de Rafael se provou um tiro na mosca. As oportunidades pareciam ilimitadas; havia um processo de industrialização acelerado. Com um mercado de trabalho em franca expansão demandando profissionais de nível e bem pagos, havia uma nova classe de consumidores abonados e interessados em expandir seus horizontes.
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Britanicamente, os dois não eram de frequentar a noite nem eram chegados em novidades musicais. Assim, a moda passou ao largo do casal. Apesar deste pequeno deslize, a vizinhança os acolheu bem. Os moradores de Copacabana eram em sua maioria gente ansiosa em se familiarizar com um mundo novo que se abria para sua recém adquirida posição social. A nova maneira de ser incluía viver de acordo com o que viam e liam em filmes e revistas estrangeiras. Pessoas de fora personificavam suas aspirações. A proximidade com elas não só dava status, mas também abria as asas da imaginação.
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Após uma fase inicial de deslumbre e de um breve período de estranhamento, Renée foi rápida em perceber a oportunidade social que essa configuração oferecia. Se aproveitando da imagem da Grã-Bretanha como defensora heroica da democracia - vencedora da Segunda Guerra Mundial - e se espelhando na jovem e recém-empossada Rainha Elizabeth II, ela assumiu o cargo de embaixatriz do mundo "desenvolvido" nos trópicos com convicção e prazer. Vinda de uma família de imigrantes alpinistas sociais, o Brasil neste aspecto lhe pareceu o El Dourado. Isolada da sua cultura, vivendo como uma dona de casa milionária, mimada pelo marido, temida pelas empregadas, tratada como alguém especial nas ruas, vista como uma inglesa - não como uma judia - e sem ter ninguém quem a questionasse, ela se reinventou num personagem surrealista.
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Trinta centímetros mais alta que a média das brasileiras, com um forte sotaque inglês e com um guarda-roupas repleto de peças elegantes feitas na Europa, para os brasileiros Renée passava a imagem de uma mulher poderosa e à frente de seu tempo. Isso era fácil num lugar onde donas de casa de respeito nunca eram vistas na noite, sequer em restaurantes com seus maridos. Seus biquínis – em voga no velho continente do pós-guerra – mostravam o umbigo. Na praia, esse show de nudez chocava e, mais de uma vez, salva-vidas tiveram que lhe pedir que voltasse para casa para trocar de trajes.
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Renée foi uma das primeiras mulheres a dirigir no Rio, o que suscitava comentários, alguns grosseiros e outros de admiração. Nenhuma das duas reações a perturbava, já que na sua opinião os brasileiros eram caubóis selvagens quando ao volante. No país que viria a fornecer ao mundo da Fórmula Um campeões como Emerson Fittipaldi, Nelson Piquet e Ayrton Senna, ela resolveu tomar para si a missão de educar os motoristas locais a respeitar os limites de velocidade. Por isso, sempre acabava atravancando o trânsito na faixa da esquerda e recebia uma enxurrada de gritos e de palavrões dos motoristas obrigados a ultrapassar pela direita. Anos mais tarde, ela também tentaria deixar claro aos surfistas de Ipanema que o mar era de todos, nadando com a sua toquinha florida entre os cabeludos sarados e suas pranchas.
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Apesar da satisfação de se sentir à frente de tudo que a cercava, a postura de vender colares de contas como joias aos nativos nem sempre colava. Primeiro que havia gente no Rio de Janeiro que de fato vinha do mundo ao qual fingia pertencer, depois, a Inglaterra que provocava suspiros em admiradores incautos era agora um lugar em transformação. Após duas pesadas guerras mundiais, o império e as tradicionais divisões de classe tinham virado uma coisa do passado. Conforme o país foi se adaptando aos novos tempos, os privilégios antes reservados para a aristocracia – agora falida – ficaram acessíveis à classe média emergente. A nova dinâmica criou dois campos: os que queriam enterrar o passado e construir um Reino Unido onde todos tivessem oportunidades iguais e os que queriam tomar o lugar da aristocracia declinante e desfrutar os privilégios que seus pais nunca tiveram. Renée e sua família pertenciam ao segundo grupo. A rainha Elizabeth nem tanto, pois se viu obrigada a popularizar a monarquia para que sobrevivesse.
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As duas maiores barreiras para a pose da Renée eram a substituição do Reino Unido pelos Estados Unidos no topo do mundo ocidental e o aparecimento de uma cultura jovem contestatória nesses dois países. Para que seu sonho continuasse vivo, precisava rejeitar toda e qualquer novidade que colocasse em xeque sua narrativa de modernizadora dos trópicos. Que nem a madrasta da Branca de Neve, sua vaidade perguntava ao espelho: "Espelho, espelho meu, existe alguém ou algo mais avançado do que eu?" Se tivesse, bloqueava na hora. Isso atingia as raias da incompreensibilidade; sob sua guarda não havia televisão, pouquíssimo cinema e nada de música popular, fosse ela brasileira ou internacional, jazz, bossa nova ou rock'n'roll. As únicas expressões culturais válidas eram o teatro - o de Londres é claro - e a música clássica. A arte contemporânea era um lixo; a pintura tinha morrido com o expressionismo e em literatura, mesmo o hiper-religioso Tolkien, autor do Senhor dos Anéis, era visto com suspeição.
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Sua fobia a novidades era tanta que também barrou de sua vida alimentos que não eram familiares: doces brasileiros, refrigerantes, hambúrgeres, milk-shakes, salgados e pastéis. Ao contrário de todos à sua volta, ela insistia em manter uma dieta saudável, porém insossa, parte de uma noção, de fato à frente do seu tempo, de que a alimentação era fundamental para a saúde.
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Nascido em 1900 num vilarejo na província austro-húngara da Galiza, na Polônia, Rafael, seu comparsa - e agora provedor - nas aventuras tropicais de validação social, não podia ser mais diferente. Para já, os austro-húngaros, senhores do seu mundo, menosprezavam os poloneses, que por sua vez desprezavam a ponto de odiar os judeus. Por sua vez, os judeus mais assimilados das capitais Europeias viam os do leste europeu, como gente atrasada, perdida nas superstições que tinham deixado para traz ao sair dos guetos. Para piorar as coisas, os mesmos judeus do leste europeu consideravam os galitzers como camponeses vivendo na Idade Média. Assim sendo, embora a Galiza fosse a região mais tolerante da Polônia em relação aos seus estrangeiros: muçulmanos balcânicos, judeus, turcos e russos, ele cresceu como um caipira entre os caipiras.
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Apesar de ter recebido uma rica educação rabínica, Rafael nunca frequentou uma escola secular, quanto menos uma universidade. Contudo, trabalhando duro com inteligência e criatividade, vindo do nada, alcançou cedo o sucesso no mundo dos negócios, primeiro na Alemanha pré-nazista e mais tarde na Holanda. No entanto, foi em Londres, na sua quarta década, que seu destino deu uma guinada inimaginável. O casamento com uma jovem abastada de Golders Green e o brinde de um imóvel pago pelo sogro numa área respeitável de uma metrópole mundial foi o equivalente a ganhar na loteria.
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Assim sendo, tal como um Sancho Panza doméstico, ele obedecia a todas as regras que sua jovem esposa impunha, mesmo se não fizessem sentido algum. Conhecedor dos recantos sombrios da vida e ciente das diferenças gritantes entre os dois, Rafael soube fazer com que ela se sentisse idolatrada, que seu personagem permanecesse vivo e que aquele relacionamento improvável continuasse firme num lugar tão inusitado.
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Para ele, o Brasil era uma tentativa de reinvenção; uma terra onde, quem sabe, encontraria a fonte da eterna juventude. Contudo, apesar da inocência e da alegria a sua volta e do bem que isso lhe fazia junto com a felicidade doméstica, quando contrastados com o fim brutal de seu mundo era doloroso.
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Na intimidade, Rafael era o repositório de uma coleção de piadas, palavras, ditados populares e ensinamentos religiosos de um mundo que agora somente existia em memórias, na sua língua nativa, o iídiche, e em raras fotografias. Suas atitudes e seu compasso emocional viviam perdidos num lugar que às vezes deixava escapar em histórias da sua infância como a de quando colou a barba do seu professor na mesa enquanto este dormia ou quando conseguiu enganar um policial polonês a procura de bebidas ilegais na casa do avô rico e assimilado. Esse era um personagem com quem todos na aldeia vinham se aconselhar e que foi mais marcante do que seu próprio pai de quem nunca falava.
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Ary Barroso em Copacabana
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