

CAPÍTULO 2

Foto: Pan Am Historical Foundation
"Rio seu mar, suas praias sem fim
Rio você foi feito para mim."
Samba do Avião - Tom Jobim
O voo BA0249 da BOAC, a companhia aérea precursora da British Airways, de Londres ao Rio de Janeiro levava trinta e cinco horas. Ele fazia várias paradas; três horas em Lisboa, quatro horas em Dakar, no Senegal, e depois de atravessar o oceano Atlântico, mais três horas no Recife.
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As 5:30 da manhã, o avião estava finalmente se aproximando do seu destino. O sol se insinuava no céu estrelado quando um sinal nos alto-falantes acordou os passageiros. Em seguida, uma voz feminina aveludada, primeiro em inglês e depois em português, desejou a todos um bom dia e anunciou que estavam a uma hora da aterrissagem. As aeromoças acenderam as luzes e passaram a servir um generoso café da manhã. Para os ingleses, ovos estrelados com bacon, torrada, marmelada e chá, para os brasileiros, ovos mexidos, pão francês, queijo fresco, goiabada e café forte. Junto com a comida distribuíram formulários de imigração e da alfândega para quem precisasse.
Entre os passageiros que precisavam de formulários estavam Rafael e Renée. O casal se destacava por sua discreta bizarrice. Ele era baixo, ligeiramente troncudo, com olhos azuis espertos e frios, cinquenta e poucos anos e um ar um tanto antipático. Sua pose de gentleman não disfarçava um pesado sotaque do leste europeu e uma certa rudeza. Em contraste, sua esposa, muito mais jovem, alta, exuberante e com um sotaque londrino irretocável parecia contente em estar chamando atenção.
Terminada a última refeição a bordo, assim que a tripulação recolheu as bandejas, os passageiros passaram a organizar a sua chegada, todos loucos para descansar numa cama de verdade. Do lado de fora, a claridade já revelava o mar no horizonte. Embaixo, as primeiras luzes estavam se acendendo na descida da serra para a Baixada Fluminense enquanto carros e caminhões já se aventuravam na madrugada vazia.
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Depois de um tempo, a mesma voz feminina retornou aos alto-falantes pedindo a todos que apagassem seus cigarros e apertassem os cintos de segurança. Naqueles últimos minutos a vista do lado de fora ficou magnífica. O sol raiando sobre o Rio de Janeiro dourava o Cristo Redentor junto com a vegetação densa e as pedras gigantescas da Floresta da Tijuca ao seu redor. Nas jamelas do outro lado do avião, as águas da Baia de Guanabara, picotadas pelas ilhas no mar aberto, refletiam a claridade cobertas por uma fina camada de maresia. Aquele espetáculo aguardado era o fim de dois dias de sofrimento chacoalhando numa aeronave apertada ao som do ronco incessante das hélices. Rafael conferiu o relógio, 6:15 da manhã, 45 minutos mais cedo do que o esperado.
​A aeronave continuou descendo em alta velocidade até dar sua sacudida final no solo. Assim que se tornou controlável, os passageiros aplaudiram o piloto que desejou a todos boas-vindas a cidade maravilhosa nos alto-falantes e passou a guiar a aeronave lentamente rumo ao terminal. Quando parou, a tripulação abriu as portas deixando o ar fresco da madrugada ventilar a cabine claustrofóbica.
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Com seus pertences prontos, Renée e Rafael entraram na fila para saída. Quando chegaram na porta, depois de trocarem sorrisos forçados com as aeromoças, uma brisa tropical veio acariciar suas peles como se estivesse acolhendo o casal. Sentindo aquele bom presságio, desceram a precária escada e seguiram até o portão com os outros passageiros.
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Eufórica por estar na sua nova cidade, Renée parecia uma criança numa loja de doces. Tentava puxar conversas com Rafael que, exausto, respondia monossilábico. Quando chegou sua vez, o policial acenou para que se aproximassem. Educadíssimo, ele examinou os formulários e os passaportes. Sem se demorar, carimbou os documentos com força, rapidez e precisão. Após rápidos agradecimentos polidos, o casal saiu da polícia de fronteira com a sensação de que o Brasil agora era para valer.
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Embora fosse sua segunda visita, dessa vez se sentiram mais estrangeiros do que nunca. Com exceção dos outros passageiros europeus, ninguém ali falava inglês ou qualquer outra língua que lhes fosse familiar. Além de haver mais “não-brancos” do que estavam acostumados, a emoção e os abraços calorosos com que os locais recebiam seus familiares e amigos era alienante. No fundo de suas mentes gritava a pergunta: “Será que tomamos a decisão certa?”
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Carregadores uniformizados apareceram se oferecendo para levar suas malas até a fila de táxis do lado de fora. Quando seu parou, o chofer saiu para abrir o porta-malas. Depois de se certificarem que as bagagens estavam devidamente organizadas e de dispensar o seu primeiro dinheiro local na gorjeta do carregador, entraram no carro.
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“Por favor”, arriscou Rafael. Depois leu o endereço do hotel de um papel em um português quebrado que duvidou que o motorista fosse entender e finalizou com um desajeitado “Obrigado”.
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O motorista disse OK, mas pediu através de sinais para ver o pedaço de papel. Depois de dar uma lida, abriu um sorriso amigo e disse, “Hotel Miramar, Copacabana, yes mishterr!”
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Fazia calor e o sol já estava a pino. Contentes e aliviados, colocaram seus óculos escuros e para apreciar o cenário melhor. Entraram na Avenida Brasil cercados de carros de fabricação americana ao lado de caminhões e ônibus de qualidade duvidosa. De repente o mau cheiro vindo da favela beirando a estrada invadiu o carro e tiveram que fechar as janelas. O fedor só passou quando chegaram na zona portuária onde Renée ficou encantada com sua série interminável de armazéns coloridos com chaminés, mastros de navios despontando logo atrás. Estivadores suados de todas as cores entravam e saiam das portas imensas, se esforçando para levar suas cargas pesadas.
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Do porto, o motorista seguiu para o Centro onde atravessaram uma mistura de igrejas coloniais, prédios de estilo modernista e construções vistosas da Belle Époque. Ao fim da avenida, chegaram na Baía de Guanabara onde deram de cara com o Pão de Açúcar. Dali o motorista continuou beirando a baía pelos bairros do Flamengo e de Botafogo antes de finalmente atravessar dois túneis e chegar em Copacabana.
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Embora ressabiados pelo telegrama de última hora do Paulo na véspera dizendo que não poderia recebê-los de madrugada no aeroporto, a primeira coisa que fizeram ao entrar no quarto do Hotel foi ligar para o amigo. Após uma conversa animada e piadas sobre o voo torturante marcaram de se encontrar naquele mesmo fim de tarde na esplanada do hotel.
Paulo era um sujeito curioso. Além da sua personalidade fácil e de seu endereço incomum, possuía outra peculiaridade: era comunista. Esse tinha sido o motivo do seu exílio da Alemanha já nos meados dos anos trinta. Havia perigo de morte. Nunca soube se continuou sua militância no Brasil, mas se tivesse, teria sido uma experiência intensa durante a ditadura Vargas.
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Nos trópicos, a amizade entre os dois veteranos da loucura europeia floresceu. As longas discussões políticas em iídiche e as partidas de xadrez traziam de volta o cotidiano judaico do pré-guerra. Embora as ideias do amigo o divertissem, Rafael discordava de tudo o que dizia. Apesar de antifascista, estava longe de ser de esquerda, muito menos comunista.
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Durante uma dessas conversas, Paulo gabou-se de seu relógio produzido na comunista Alemanha Oriental, ou RDA. “Está vendo este relógio aqui? Foi fabricado livre da exploração capitalista e bem funciona tão bem quanto o melhor que conseguem fazer! Pode ver!””
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Embora o relógio não fosse lá essas coisas, ao analisá-lo Rafael teve um “momento eureca” percebendo que tinha em mãos uma excelente oportunidade de negócios. Na cabeça dos brasileiros, alemão era sinônimo de confiável e, fabricados em um país comunista, seus preços seriam altamente competitivos. Eles venderiam como água.
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Assim, pouco antes do golpe de 1964, com a ajuda dos contatos partidários do Paulo, Rafael atravessou o muro de Berlim e foi se encontrar com o comissariado encarregado da
fábrica de relógios. Com eles, conseguiu um contrato para ser seu representante exclusivo para o Brasil.
À primeira vista poderia parecer estranho que alguém com o seu passado fosse querer ganhar a vida vendendo produtos alemães. Seja como for, o rigor e a praticidade teutônica lhe eram reconfortantes. Adotando essa objetividade fria, foi em frente sem se deixar prender por sentimentalismos. Nisso, ele era igual a maioria de seus amigos judeus. Apesar de tudo o que enfrentaram durante a guerra, ainda guardavam respeito pelo pragmatismo e pela eficiência germânica. A subserviência continuava firme e forte.

