


Foto: Fox Photos/Getty Images
Nos seus discursos históricos, o primeiro-ministro Winston Churchill, responsável maior pela defesa do Reino Unido, antevia os anos de sangue, suor e lágrimas que os britânicos teriam pela frente. Paradoxalmente, para Rafael - impedido de se alistar por estar na sua quarta década- o exílio na Inglaterra foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Longe da SS e das câmaras de gás, ele foi se adaptando à condição de refugiado convivendo com ônibus de dois andares, névoa espessa, taxis quadrados, policiais de chapéu estranho e sem armas e com os vários sotaques da língua inglesa. Por mais diferente que isso tudo fosse, havia nas ruas tolerância, estado de direito, respeito às liberdades individuais e, acima de tudo, um governo disposto a resistir ao nazifascismo.
Sem dominar o idioma nem conhecer ninguém, seu ponto de partida óbvio foi a comunidade judaica. Além do iídiche - a língua comum aos Judeus da Europa do Leste - para ajudá-lo, havia a sua presença em manchetes de jornais. A história do resgate dramático de uns dos primeiros refugiados da Holanda ocupada e sua sobrevivência improvável em alto-mar se tornou conhecida.
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A fama aumentou depois que a primeira-dama dos Estados Unidos, Eleanor Roosevelt, soube da saga e expressou sua vontade em adotar seus sobrinhos. Com isso, os irmãos viraram semi celebridades na comunidade. Membros eminentes brigavam entre si para oferecer jantares em sua homenagem. Enquanto Ziesch se deleitou com a bajulação, Rafael, astuto, usou essas ocasiões como oportunidades para fazer contatos.
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Em um desses eventos, conheceu Renée, uma beldade vinte anos mais moça que ele. Ela era de Golders Green, um bairro abastado e “quartel general” da comunidade onde muitos refugiados famosos, como Sigmund Freud, estavam vivendo. Apesar do novo pretendente ter a metade de sua altura e o dobro da sua idade, ficou fascinada pelas suas histórias e sua aura de herói. Ciente de que os melhores elegíveis estavam envolvidos na guerra de uma maneira ou de outra, Renée - que só não foi modelo porque seu pai não permitiu - ignorou as diferenças gritantes e se dispôs a viver o romance.
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Seu pai, Alec, era um comerciante de tecidos bem-sucedido, viúvo, alto e bonito com fama de mulherengo. Embora as más línguas comentassem que tinha se dado bem na vida dando golpes do baú e se horrorizassem por ter mandado a filha com os irmãos mais novos para uma fazenda longínqua durante bombardeios a fim de que pudesse curtir sua nova esposa em paz, ele era boa praça. Assumindo a responsabilidade patriarcal de ser o mais próspero de toda a família, ajudou muitos parentes em apuros na Europa ocupada.
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O futuro sogro simpatizou de cara com seu futuro genro, um sujeito maduro, confiável, dinâmico e esperto com uma história e tanto. Feliz com o casamento, vendo na situação de Rafael uma nova oportunidade de fazer alguma coisa pela sua gente e querendo fazer uma média com Renée, agora hostil por causa da sua nova mulher, resolveu dar de presente para o casal uma casa em Hendon, um bairro aconchegante no norte de Londres.
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A cerimônia foi típica de tempos de guerra, ou seja, mínima. Depois dela e de uma lua de mel modesta, mesmo com os racionamentos, da destruição causada pelos bombardeios constantes e da insegurança, os primeiros anos foram felizes. Quando o conflito acabou, apesar da penúria da reconstrução, a vida seguiu em frente de vento em popa. Rafael pôs em marcha a sua experiência empresarial, agora vitaminada pela penca de ótimos contatos proporcionados pelo sogro e Renée mergulhou de cabeça na vida de rainha do lar na sua confortável casa com jardim.
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Enquanto os filhos não chegavam, um dos maiores prazeres do casal era receber convidados para jantares formais. As visitas eram variadas: intelectuais, artistas, pessoas eminentes da comunidade, diplomatas de segundo escalão além de, é claro, vizinhos, amigos e familiares. Isso era comum no pós-guerra.
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Um desses convidados foi Paulo, um alemão amigo de um amigo em comum de visita em Londres. O que o tornava interessante, era o lugar onde morava: o Rio de Janeiro uma cidade exótica e famosa que despertava a imaginação de todos, mas onde pouquíssimos tinham se aventurado. Ele tinha emigrado para lá muito antes da guerra por motivos políticos, mas isto não figurou no cardápio da conversa daquele jantar. Por nunca terem conhecido ninguém que tivesse ido naquela parte do mundo, muito menos alguém que morasse lá, queriam saber tudo.
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Com quinze anos de Brasil e bronzeado, Paulo tinha um ar muito mais descontraído do que os convidados habituais. Ele os fascinou de cara e, encorajado pela atenção, se deleitou em satisfazer a curiosidade dos anfitriões. Durante o jantar regado a vinho francês e com troca de talheres e de pratos a cada parte da refeição, o casal se deliciava com as imagens de praias ensolaradas e de morros cobertos por florestas tropicais no meio da cidade. Se fascinaram com as descrições de meninos jogando futebol descalços nas ruas, da população morena que ainda praticava sua religião trazida da África e que tomava conta da cidade no Carnaval fazendo e dançando a música mais alegre. Segundo o convidado havia uma espontaneidade, uma cordialidade e uma leveza únicas que permeavam os habitantes em todas as classes sociais. Nos bairros residenciais, havia um convívio diário entre esse exotismo, uma cultura tranquila e saudável de praia e todas as amenidades que se podia esperar de uma cidade moderna, tudo a preços ridiculamente baixos para Europeus.
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Quando Paulo partiu para o hotel de táxi já de madrugada, jamais poderia imaginar as consequências das suas palavras. Depois de arrumarem a casa e irem para cama, o casal ficou horas sonhando acordado se imaginando naquele lugar. No dia seguinte resolveram aceitar o convite do novo amigo para que fossem visitar o Rio de Janeiro.
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Isso acabou acontecendo em 1953. A visita confirmou o sonho e foi amor à primeira vista. Conheceram as praias maravilhosas, se esbaldaram no sol tropical, fizeram passeios pela floresta, ficaram boquiabertos com as vistas da cidade e com as paisagens por onde passaram no interior do estado. Se encantaram com a morenice que exalava das pessoas; sua atitude relaxada e amistosa, e com as frutas, a comida saborosa e diferente, o calor a as cores vibrantes a sua volta. Esse assalto aos seus sentidos deixou suas marcas. De volta à chuva fria e à vida regrada de Londres, a viagem ficou como um tesouro precioso.
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Passado um tempo, a saudade passou a bater forte. Sem nada que os prendesse ao Reino Unido, interessados em começar uma família e nas possibilidades daquele país emergente, resolveram embarcar numa aventura e se mudar – temporariamente, mas quem sabe definitivamente - para lá. A notícia chocou amigos e parentes. Embora muitos ingleses estivessem emigrando devido às dificuldades do pós-guerra, o Brasil era um destino inusitado para um jovem casal judeu. Supunha-se que se mudariam ou para Israel por ideologia, ou para a América do Norte, a África do Sul, ou a Austrália onde se falava inglês, havia familiaridade cultural e as mesmas oportunidades. Ninguém entendeu, mas o destino falou mais alto.
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