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Image by Annie Spratt
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Foto: Nixon Kafer

Desci no ponto final, na Praça da Sé. Àquela altura, tudo o que queria era descolar uma cama para tirar um cochilo. Contudo, quando as coisas estão fadadas a dar errado, elas só pioram. Quando cheguei na cidade universitária, me deparei com um confronto entre os estudantes e a polícia, justamente por causa do dormitório onde estava planejando passar os próximos meses. As autoridades do campus tinham intervido e os estudantes queriam o controle do seu espaço de volta. Na confusão fiquei sabendo que, por conta daquele atrito, não estavam podendo aceitar gente que não estudava ali. Sem saber o que fazer, me dirigi à administração da universidade para explicar minha situação e pedir ajuda. Só que meu ar de playboy carioca não conseguiu convencer ninguém de que eu estava em apuros. 

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Sem outra opção, voltei para o diretório dos estudantes para ver se conseguia arranjar um lugar para ficar, mesmo que fosse para dormir no chão por algumas noites. Quando escureceu, a sorte me sorriu. Em meio ​à uma assembleia, cruzei com o Carlinhos, um maluco que conheci em Canoa Quebrada, a paradisíaca aldeia de pescadores no Ceará. Expliquei minha situação e, depois de alguns telefonemas, ele me convidou para ficar na casa dele.

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Agradeci de coração e depois que as coisas acalmaram no campus pegamos um ônibus e fomos lá. A família morava bem, num apartamento amplo perto da Avenida Paulista, com vista de cima para a teia de telhados de São Paulo. A hospitalidade foi impecável, a ponto de ser embaraçosa. Me trataram como se fosse da família: tinha um quarto só para mim, comíamos juntos e depois íamos para a sala de estar onde ficávamos conversando ou assistindo televisão até tarde. Mais novo que eu, quando saia com o Carlinhos ele me apresentava para seus amigos como um herói. Além disso, tinha a sua irmã mais velha, Alice, uma gata, que também tinha conhecido no Nordeste. Ela ficou contente - achei que até demais - em me ver, mas a última coisa que precisava era pôr tudo a perder tentando alguma coisa com ela.

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São Paulo era muito mais sofisticada que o Rio. Em todas as áreas e camadas sociais, os paulistas eram mais profissionais e mais polidos. Para um carioca, tudo era limpo, organizado e funcionava bem: ônibus, sinais de trânsito​, metrô, lojas, padarias. Tudo parecia padrão de Primeiro Mundo. Os jovens não eram os ratos de praia da Zona Sul se achando a aristocracia da cidade. Seu estilo urbano, descolado, porém pé no chão, fazia com que na paulicéia, o punk e o estilo gótico caíssem bem. Lá, os anos oitenta faziam sentido.

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Após uma semana com a família do Carlinhos, veio a hora de ligar para casa. Falei com minha mãe, expliquei que estava tudo bem e onde estava, com a intenção de acalmá-la. Mas a reação da Renée foi de pânico. Minutos depois da gente se despedir e de dar o telefone da casa no caso de uma urgência, um amigo que estava morando em São Paulo me telefonou perguntando, zangado, porque não o havia procurado. Larry era um americano com uma história parecida com a minha. A diferença era que tinha um lar mais convencional e sólido que o meu. A família não estava sofrendo com a crise e por ter uma personalidade menos curiosa e aventureira, nunca tinha se atrevido a sair dos padrões da sua situação social. O Conhecia das aulas de Bar Mitzvá e da Escola Americana. Pra falar a verdade, tinha seu telefone, sabia que tinha se mudado para São Paulo, mas não o havia procurado porque era um tanto chato. Quando éramos crianças a amizade só existiu por causa da insistência da dona Renée, maravilhada com a posição do pai dele: CEO da filial brasileira de um importante banco americano.

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Larry tinha acabado de voltar de Miami. Apesar de seus dois irmãos mais velhos terem se estabelecido por lá, ele não havia gostado e agora queria fazer faculdade no Brasil. Assim que soube que estava na mesma cidade, ficou louco para que ficasse com ele, pois na sua cabeça eu representava o Rio da sua adolescência surfista. Quanto a seus pais - acreditem se quiser - me viam como uma boa influência, pois era bom aluno quando estudávamos juntos.

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Ele me intimou para ficar na casa dele e tive que aceitar, pois não queria abusar da hospitalidade da família do Carlinhos. Além do mais, Larry também tinha que se preparar para o vestibular da FUVEST. Assim, com a ajuda de meus pais, nos matriculamos juntos no famoso curso Objetivo da Avenida Paulista. Ele ficava a poucas quadras do enorme apartamento da sua família, como também de frente ao prédio futurista da FIESP e da maioria das sedes dos bancos e das grandes companhias do país. Materialmente, minha situação ficou excelente: além da casa ter duas empregadas e um motorista à disposição, fiquei com um quarto só para mim e com comida por conta. Do outro lado da moeda havia a frustração de ter caído de volta na teia da família.

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No dia D do exame, não havia praia para nadar na véspera nem o bom presságio do desconhecido parecido com meu avô me olhando da calçada. Havia duas provas. Na primeira, mais geral e de múltipla escolha, fui bem. Na segunda, uma semana depois, assim que abri o folheto e comecei a ler as questões, me dei conta de que o vestibular de São Paulo também era um nível acima do Rio. A prova era específica para a área escolhida, humanidades, as respostas eram dissertativas e havia uma redação. Quando deparei com quatro ou cinco questões em que tinha que escrever sobre literatura portuguesa, que nunca havia estudado, não deu para enrolar e tive a certeza de que aquilo era o meu fim da linha.

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Essa foi a primeira derrota após uma longa fase de vitórias. Pensei em ficar em São Paulo num quarto alugado por mais um ano para tentar novamente, mas no auge da depressão econômica, econômica, até eu conseguia entender que a ideia não era viável. Além disso, as coisas tinham piorado em casa; Rafael tinha sofrido outra parada cardíaca. Senti que era hora de voltar para o Rio para tentar ser um bom filho, pelo menos uma vez na vida.

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