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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 33

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Foto: autor desconhecido

 “ Nosso suor sagrado

É bem mais belo que esse sangue amargo. ”

 

Legião Urbana - Tempo Perdido

Ninguém gosta de derrotados, mesmo quando torcem para você perder. Ainda que em algum recanto escondido Seu Rafael e Dona Renée estivessem felizes pôr ter seu filho de volta, a receptividade foi morna. Da minha parte, apesar do gosto amargo de retornar com o rabo entre as pernas, estava claro que os dias de meu pai estavam contados e queria tentar diminuir o fosso que nos separava antes que fosse tarde demais. Para eles, meu retorno reacendeu a esperança de que deixaria de lado uma luta que nunca entenderam.

 

Por falta de melhores opções, no fim do verão destranquei minha matrícula e voltei para o curso de Economia. O que aconteceu foi previsível. Não me sentia mais parte daquilo; o pessoal que tinha entrado comigo me menosprezava por não ter conseguido o que queria e meus novos colegas de turma ou me viam como um rebelde incompreensível ou como um idiota que tinha ficado para trás nos estudos. Minhas notas eram baixas, detestava as aulas e sentia a realidade implacável de perder um ano inteiro para voltar ao ponto de onde tinha saído. Com o país e minha família se desintegrando, era difícil encontrar sentido nas coisas.

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No entanto, a vida continuou. A eterna cura carioca para pressões, depressões e frustrações - a praia - era infalível. Depois de um dia regado a mar, sol e beleza tanto paisagística quanto humana, o mundo parecia voltar ao lugar de onde nunca deveria ter saído. Num domingo ensolarado no Posto Nove de Ipanema, esbarrei com o Eduardo, um antigo colega de sala do Colégio Andrews. Estranhei vê-lo ali, já que nunca tinha sido frequentador da área nem tinha sido parte da galera. Estava mudado, não era mais o cara introvertido e magricela que todos conheciam, estava cabeludo e era óbvio que também tinha dado uma passada pela academia, pois estava todo bombado.

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Uma das primeiras coisas que me contou, com orgulho, foi que tinha aprendido a tocar guitarra. Sem ter certeza de qual era a dele, mas sempre interessado em levar um som, concordei em marcar uma guitarrada em sua casa depois da praia. Na despedida, Eduardo me perguntou se poderia chamar seu amigo Pedro, um baixista. Concordei e me lembrei do Mauro, um amigo da faculdade que tocava bateria, e fiquei de ver se ele poderia ir também. Foi assim que a banda nasceu.

 

A primeira sessão foi uma loucura boa demais e, depois dela, aquilo virou rotina obrigatória nos fins de semana. Descobrimos na barulheira uma diversão recompensante, barata e terapêutica. Havia a sensação delirante de flutuar acima de todo o baixo astral que nos cercava. As frustrações se canalizavam na agressividade das guitarras e do baixo, nas pancadas da bateria e nos gritos no microfone. Quanto a qualidade, bem… estávamos aprendendo.

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Como qualquer outra banda da época, havia a esperança de um dia tocar no Circo Voador e quem sabe alçar voos mais altos. As músicas que levávamos no começo eram de outras bandas; clássicos dos Rolling Stones, Deep Purple e Jimi Hendrix. Aos poucos, fomos introduzindo as nossas, todas fáceis de tocar e catárticas.

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Como num início de namoro, depois que a coisa se tornou mais séria vieram as formalidades. A principal foi achar um nome. No começo fomos de “Papa Clitóris e os Oligofrênicos”, mas depois, pensamos melhor e decidimos por um nome mais palatável, “Arrepio”, uma gíria surfista para se dizer impressionado – “O cara arrepiou na guitarra.”

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*

 

A casa do Eduardo era apertada para ensaios e por isso passaram a ser na minha, sempre liberada nos fins de semana devido às idas dos meus pais para Teresópolis. Porém não demorou para que os vizinhos fizessem um abaixo assinado por causa do barulho. Voltamos à casa do Eduardo. Seus pais também sempre estavam fora nos finais de semana e lá os vizinhos pareciam não se importar com o ruído. A gente usava o escritório do apartamento, que ficava de frente para a favela do Morro do Leme, no final de Copacabana. Nos dias que ensaiávamos, tinha uma banda punk que também ensaiava num dos barracos. Uma rivalidade muda surgiu, mas com ela também um acordo tácito de cavalheiros; quando fazíamos uma pausa, eles começavam e vice-versa. Igual ao punk inglês, suas letras cruas refletiam uma realidade mais dura e simples do que a nossa. Mas não tinha jeito, sua revolta inocente nos fazia rolar no chão de tanta risada.

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Mulher foi assaltada,

a moça estuprada

e a polícia nada, nada, nada!

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Prefiro não pensar sobre o que achavam da gente.

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A liberação dos vizinhos de prédio do Eduardo era boa demais para ser verdade. Não demorou muito para que também fizessem um abaixo assinado exigindo o fim da barulheira. Isso nos forçou a procurar uma sala de ensaio de verdade, o que, por sua vez, nos fez entrar ainda mais fundo na toca do coelho do rock carioca. Com todo mundo formando bandas, as guitarradas viraram centrais para a juventude do Rio e os estúdios de ensaio se tornaram uma extensão do Posto Nove. Entrando e saindo das salas apertadas repletas de equipamento, a gente cruzava com as mesmas pessoas que víamos na praia. Nos intervalos, ficávamos sabendo das melhores festas, das melhores transações de bagulho, além das fofocas a respeito de outras bandas, tanto as já estabelecidas quanto as em ascensão.

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Com esses novos contatos, veio o primeiro show. Nossa estreia foi num palco armado em frente ao Museu de Arte Moderna no aterro do Flamengo. O evento fazia parte do aquecimento para o primeiro Rock in Rio. Excitados com a oportunidade de ouro, fomos vestidos a caráter, todos com roupas bizarras. Por ser vocalista e guitarrista caprichei; coloquei uma cartola do meu avô, um blazer superdimensionado sem camisa por baixo, uma bermuda listrada verde e branca e um tênis de basquete laranja. Quando chegou a hora, encaramos a pequena multidão com garra. O público adorou e respondeu dançando freneticamente durante as músicas e gritando o nome da banda nos intervalos. Um dos números que mais causou sensação foi nossa versão de "Wild Thing" do the Throggs e eternizada pelo Jimi Hendrix, Vadia.

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"Vadia!

Você é uma vadia!

Você cutuca a minha ferida!

Atazana a minha vida!"

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Depois daquele sucesso prematuro, nos animamos e caímos na armadilha de nos levarmos a sério. Na busca pela perfeição, experimentamos várias salas de ensaio e acabamos escolhendo uma na favela do Morro de São Carlos. O dono era o professor de bateria do Mauro, Charles – um cara alto, com cabelos louros cacheados e barba encaracolada, que faziam com que ele se parecesse com uma figura grega. Charles tinha sido o baterista do lendário Tim Maia e da musa da Tropicália Gal Costa, entre outros.

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A favela, porém, era famosa por pertencer a uma das mais perigosas facções criminosas do Rio, o Terceiro Comando. Esse era um lugar onde polícia só se aventurava subir com veículos blindados e protegida por helicópteros. Os muros altos do estúdio, o arame farpado e os cinco rottweilers, faziam com que aquela propriedade parecesse um bunker de um chefão do narcotráfico.

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Por sermos a primeira banda a ter a coragem de ensaiar lá, tivemos uma acolhida VIP na espaçosa sala ainda cheirando a cimento. Depois de alguns meses, por ser amplo e bem aparelhado, o lugar se tornaria um dos estúdios de ensaio mais procurados do Rio, utilizado pelos artistas e bandas mais consagrados da cidade, como Cazuza, Lobão, Hanói Hanói e Azul Limão. Charles nunca se esqueceria da gente e continuaria fazendo um preço camarada. Ele também era generoso ao nos deixar tocar nos amplificadores profissionais que os famosos deixavam por lá.

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Ainda que adorássemos o estúdio e, melhor ainda, tocarmos a todo volume no equipamento dos astros, chegar lá era sempre uma experiência tensa, principalmente com equipamento e instrumentos caros na traseira do carro. Sempre que dirigíamos pelas ruas estreitas, o pessoal da favela nos observava, sem saber direito se éramos da polícia, membros de uma facção rival ou clientes. Charles devia ter algum acordo, tanto com os traficantes quanto com a polícia, pois nunca fomos abordados, embora de vez em quando ele ligasse para o Mauro, avisando gente que não ia dar naquele dia porque o bicho estava pegando.

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