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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 32

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Foto: autor desconhecido

“Porque és o avesso do avesso do avesso”

 

Caetano Veloso - Sampa

As tentativas da Renée e do Rafael em fazer o seu filho ser como desejavam foram um fracasso. Ao contrário, minha fixação na guitarra elétrica e em viver de música crescia a cada dia. Ninguém aguentava mais aquele conflito. Me tornei agressivo, Rafael não me dirigia a palavra e Renée surtava direto por tudo e por nada. Até a Sarah e a dona Isabel passaram a me olhar de cara fechada. Quando anunciei que iria para São Paulo meses antes do planejado, não houve drama. Rafael tinha feito parecido quando tinha aquela idade e deu certo. Quem sabe numa nova cidade, em novas condições, fosse “levar a vida a sério”.

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De qualquer forma, independente da perspectiva da qual se visse a decisão, sair de casa de vez era um momento importante, um grande salto no escuro. Todos, inclusive eu, sabíamos que dali para frente tudo seria diferente.

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Parti tarde da noite, sem violão nem guitarra. Escolhi aquele horário porque chegaria de manhã cedo e teria o dia seguinte inteiro para procurar a casa do estudante universitário. Apesar de ter garantido a todos que tinha arranjado um lugar ali, não havia. Havia tentado pelo telefone, mas o contato era impossível; ou a linha ficava ocupada direto, ou ninguém atendia, ou alguém atendia e me deixava esperando para sempre, ou simplesmente atendia, dizia que não podia dar a informação e desligava na minha cara.

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*

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Apesar da rodoviária estar vazia, havia uma fila no balcão para São Paulo. Enquanto esperava, do nada, um cara de trinta e pouco anos, bem arrumado, veio me perguntar se queria uma carona. Disse que não.

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Apesar da negativa, ele insistiu. "Estou na estrada há doze horas e com sono. Preciso de alguém para ficar conversando para não dormir. Tenho que trabalhar cedo amanhã de manhã.”

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“Obrigado, mas não estou a fim.”

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“Mas, por quê?”

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Sem conseguir achar uma resposta convincente, mas querendo me livrar da aporrinhação, respondi “Estou pegando um ônibus leito para dormir na viagem. Amanhã tenho um encontro importante.”

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“Ônibus leito?! É muito caro! Meu carro é de graça e é confortável.” Ele tirou a carteira. “Está vendo isso aqui, é a minha carteira de médico. Sou cardiologista registrado, está vendo? No Hospital Albert Einstein, conhece?”

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Até eu conhecia o Hospital Albert Einstein. A carteira me pareceu verdadeira e minha vez na fila estava chegando. Sentindo a vacilação, ele continuou: “Você deve estar com medo, achando que eu sou um maluco, né? Eu pensaria a mesma coisa, mas não se preocupe, sou do bem! Só preciso ficar conversando para ficar acordado. Olha, te levo até o carro e você pode revistar à vontade.”

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“Meu irmão, não tenho medo de nada!” Estava começando a mudar de ideia. O cara parecia mesmo um médico estressado e eu era maior do que ele. No caso de a coisa ficar esquisita me garantiria. Além do que, uma passagem de ônibus leito equivalia a umas cinco ou seis refeições. Poderia tirar um cochilo no carro e mesmo se estivesse virado conseguiria arrumar um lugar na casa do estudante no dia seguinte.

 

“Vamos ver teu carro para ver qual é.”

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Na ida ele não parava de repetir que era médico, que tinha que trabalhar cedo no dia seguinte, que tinha ido visitar às pressas a mãe que estava doente no Espírito Santo e que estava dirigindo há doze horas. O único problema é que parecia ligado demais para quem se dizia cansadíssimo. Talvez fosse a ansiedade, café, sei lá.

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Chegamos no estacionamento e paramos num Monza novo e em ótimo estado. Ele abriu a porta e colocou os bancos para frente. “Pode examinar se tem alguma coisa aí dentro. Aqui, dá uma olhada no porta luvas, não tem nada. Olha debaixo dos bancos, vai lá, faço questão."

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Depois ele foi abrir o porta-malas. “Dá uma olhada aqui. Viu? Nem mala tem, fui de última hora e não levei nada. Olha aqui no estepe; só tem estas ferramentas, mas isto não é arma, é obrigatório. Quer que eu abra a frente para checar o motor?”

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“Não, tá na boa.” Cocei a cabeça, achando que o cara estava nervoso demais para o meu gosto. “Mas não sei...”

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“Olha, se você não quiser ir, tudo bem, mas diz logo porque vou ter que voltar na fila, em meia hora os ônibus param de circular.”

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Realmente, não havia nada estranho no carro, a história era plausível, o preço da passagem passou pela minha cabeça e pensei: “Foda-se..."

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Virei para o cara e disse: “Então tudo bem, vamo nessa.”

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O doutor agradeceu todo sério. "Muitíssimo obrigado, como te disse, é um favor que você me faz. Mas chega de conversa, né? Vamos embora.”

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Coloquei a mochila no banco de trás, entramos no carro, fechamos as portas, ele ligou o motor e saímos rumo à via Dutra.

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“Por sinal meu nome é Ivan e o teu?”

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“Richard.”

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“Prazer Richard, se importa se eu ligar o ar-condicionado?”

 

Mesmo estranhando a situação, estava calor e não ia dizer que não. Depois ficou um silêncio desconfortável, que ele quebrou perguntando. “Você gosta de que tipo de música? Pode pegar a caixa de fitas cassete debaixo do teu banco. Fica à vontade para colocar o que você quiser.”

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“Valeu, mas estou legal.”

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"Se importa se eu ligar o rádio, então?" Ele colocou numa estação de música ligeiramente brega.

 

Na subida da serra já estávamos conversando. Quando chegamos em cima, o ar estava mais frio e demos uma parada num posto semivazio onde tomamos um café e voltamos para o carro logo em seguida. Na altura de Resende, na metade do caminho, o doutor disse que estava cansado.

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“Não estou conseguindo dirigir, deveria ter tomado mais café. Os olhos já estão quase fechando.”

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“Sem problemas, estou acordadão, tenho carteira de motorista, quer ver? Para o carro e a gente troca.” Falei, animado com a ideia de dirigir na Dutra à noite num carro bom.

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Ele retrucou com um olhar estranho e sorriu. “Sabe o que é? Estou doido para passar a noite num motel contigo.”

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A ficha caiu. Me senti um idiota completo por ter caído no papo, mas o que ele queria não ia rolar de jeito nenhum.

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“Não senhor, estou aqui pela carona! Você não tinha que trabalhar cedo?!”

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Dali em diante rolou uma batalha de insistência versus recusa.

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“Mas como é que você pode dizer que não gosta de uma coisa que nunca provou?’

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“Amigo, nunca provei nem vou provar. E você? Nasceu viado ou foi porque apanhava muito na escola?”

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“Isto não vem ao caso, mas não ia ser legal a gente ficar tirando a cueca um do outro num quarto gostoso?”

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“Meu irmão, dá para parar o carro na próxima parada?”

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“Mas daqui a pouco estamos chegando!”

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“Então que porra é essa de parar em motel?”

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“É que estou exausto!”

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“Se você está exausto deixa eu dirigir, olha a minha carteira aqui!”

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O doutor não se dava por vencido e comecei a ficar preocupado com sua recusa de parar. Quando amanheceu, já estávamos nos aproximando da periferia de São Paulo. Finalmente convencido de que não ia acontecer nada, mal-humorado, ele parou o carro num ponto de ônibus. Dando graças por ser mais forte que aquele maníaco pentelho, peguei minhas coisas e saí daquele inferno.

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O carro desapareceu na rodovia e minha atenção se voltou para os arredores. Estava num lugar que parecia uma favela. Já tinha subido vários morros em diferentes ocasiões para comprar bagulho, mas era completamente diferente ver o dia a dia de moradores que não eram parte da malandragem. Teoricamente, sabia que tinham uma vida difícil, mesmo assim, foi um choque ver o que se passava, em primeira mão. A próxima hora e meia seria um curso intensivo de realidade urbana brasileira.

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Ainda estava escuro e frio, mas o ponto de ônibus descoberto já estava amontoado. Havia lanchonetes próximas, todas muito simples, onde tinha gente tomando café da manhã, sendo o aroma da bebida o único conforto na área.

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A maioria, senão todas as pessoas ali, eram nordestinas. Com certeza ou eles ou os pais tinham saído de lá em busca de uma vida melhor. Seus rostos pareciam com os que tinha visto nas viagens, mas a metrópole tinha tido seu efeito. Moloch estava se alimentando da sua vivacidade, fazendo suas peles cinza e dando a suas faces uma expressão autômata.

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Cansado, chateado com a minha burrice em ter aceitado a carona, com frio e com um pouco de fome, fiquei esperando o ônibus. Ao olhar para aquele povo, não podia deixar de acreditar que uma força maior havia me colocado ali, para me mostrar o outro lado da moeda das minhas aventuras de verão.

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Quando o transporte chegou, me apertei com os demais para entrar na condução lotada. Sem poder mexer um dedo, passamos pelas enormes fábricas da Ford, Volkswagen, Gessy Lever e outras multinacionais. Alguns passageiros saltaram, mas o destino da maioria era o mesmo que o meu: o Centro da Cidade. Amontoados como sardinhas numa lata por uma hora e meia, nos contorcendo quando alguém tinha que passar para descer, tive uma amostra da rotina diária daquela gente. Elas teriam que fazer aquela mesma viagem de volta, nas mesmas condições, naquela noite e pelo restante das noites de suas vidas. Tudo isso para receberem um salário miserável e serem tratados como cidadãos de segunda categoria, sem qualquer perspectiva de melhora.

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