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Image by Annie Spratt
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Foto: acervo O Globo

O Asdrúbal herdou a posição de abelhas rainhas da malucada carioca, antes pertencente aos Novos Baianos e depois ao revolucionário chique Fernando Gabeira. Como benesse do seu reinado, o grupo virou promotor cultural e, com a ajuda da prefeitura do Rio e de alguns patrocinadores, abriu um espaço próprio na forma de um circo de verdade no Arpoador, um minibairro entre Copacabana e Ipanema. O nome que deram foi “Circo Voador”, copiado dos Rolling Stones, que tinham feito algo parecido na Londres psicodélica dos anos sessenta.

 

Os cursos do Asdrúbal foram um tremendo sucesso. Todo ano, formavam umas cinco ou seis turmas com cerca de vinte alunos cada. No final do ano, as novas trupes faziam apresentações de peças que eles mesmos tinham escrito com a ajuda de seus mentores. Todas eram boas e falavam diretamente aos jovens que abarrotavam as plateias. Todo mundo queria vê-las e os alunos mais dedicados continuavam de uma forma ou outra atrelados ao grupo.

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Antes do circo, as apresentações eram espalhadas em teatros alternativos pela cidade inteira. Depois que o montaram, ele se tornou o palco principal desses grupos.

Só que a proposta do Asdrúbal ia além do teatro; a ideia era criar um espaço para todas as formas de expressão. No tocante a música, o Circo mudou tudo; com ele veio uma enxurrada de bandas de rock novas. Para a nova geração, as outras casas de shows, além de caras, só se só se interessavam em bichos grilo do Nordeste e as já antiquadas estrelas da música popular brasileira, com os quais não se identificavam.

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A piada que corria na boca do pessoal que ia ao Circo era que sob aquela tenda só tocavam dois gêneros: o “rock” e o “roll”.

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As bandas que surgiram lá não tinham nada a ver com as dos roqueiros cabeludos, viciados e barra-pesada dos anos setenta. Agora elas podiam ser, e às vezes eram, de colegas da escola ou da faculdade, amigos e vizinhos. Para nós, não eram estrelas, eram conhecidos, ou conhecidos de conhecidos, que eletrizavam a moçada com seus instrumentos amplificados. Se o que tinha motivado os shows nos anos setenta era passar algumas horas sem o peso da ditadura e da pressão da família, agora o que motivava essas guitarradas era dar um tempo da crise e do caos numa noitada com bandas sem nenhum conteúdo intelectual, mas com muita energia. Aquele espírito se espalhou pelo país e definiu o rock como a expressão cultural da classe média jovem nos anos oitenta.  

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Em retrospecto, o Circo Voador marcou o fim de uma época em que a Zona Sul do Rio ditava os gostos musicais e culturais para o resto do Brasil. O centro logo se mudaria para São Paulo, onde o mercado era muito maior e a indústria fonográfica era mais estruturada. Como o rock daquela época era umbilicalmente ligado ao que acontecia no Reino Unido e nos Estados Unidos, com uma estética e uma temática urbana, o estilo de vida paulistano tinha muito mais a ver. Brasília também marcou presença fornecendo um monte de bandas boas, entre elas carros chefes como a Legião Urbana e os Paralamas do Sucesso. O contato direto de filhos de funcionários públicos de alto escalão com diplomatas de fora, estadias de famílias no exterior e o tédio inerente à cidade, certamente ajudaram na formação daqueles talentos.

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Se pertencer a grupos de teatro não tinha me apetecido, o mesmo não valeu para o sonho de formar uma banda. Depois de ir a alguns shows no Circo, tive certeza de que tinha condições de tocar para aquele público e decidi ir em frente. Para o desespero dos meus pais, comprei um amplificador barato e uma guitarra elétrica com o dinheiro da venda quase forçada do Blues Boy. Com ela, estava pronto meu caminho até a ribalta do rock.

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Mudar do violão para a guitarra elétrica foi como trocar uma bicicleta por uma moto. Agora podia balançar as paredes do quarto com uma simples palhetada numa corda. Por conta de ninguém estar feliz comigo em casa, tinha que segurar o volume, mas nos finais de semana, quando meus pais iam para Teresópolis, minha irmã ia para a casa do namorado e Dona Isabel ia para a casa dela, as coisas eram diferentes. Com o apartamento só para mim, me sentindo como um rei louco num castelo miserável, a fera surgia. Ligava a guitarra no amplificador, colocava o volume no máximo e saía atazanando os ouvidos dos pobres vizinhos.  

 

Comecei a escrever músicas. Usava lembranças sonoras das minhas viagens a Mauá e pelo Nordeste e novas ideias que foram surgindo. Sendo verdadeiro comigo mesmo, tentava misturar rock com ritmos brasileiros. Essa mistura tinha causado controvérsia nos dias dos festivais, quando Caetano Veloso tocou Tropicália com uma banda de rock argentina e foi vaiado. A receita voltou a ser utilizada mais tarde, com uma recepção muito melhor, por artistas nordestinos como os Novos Baianos e Alceu Valença, que faziam interpretações roqueiras e psicodélicas das suas culturas regionais. Isso sem contar com os trios elétricos de Salvador que começaram essa alquimia antes mesmo da Jovem Guarda.

 

Agora, aqui estava eu, um garoto de Ipanema de origem judaica e britânica, trabalhando com ritmos regionais brasileiros e tentando fazê-los soar como rock pesado. O problema era que nos anos oitenta, o rock e a música brasileira tinham tomado caminhos divergentes, ambos se tornando mais “puristas” e antagônicos. Bandas fazendo esse tipo de música somente conseguiriam se estabelecer uma geração mais tarde, como no caso de Chico Science e a Nação Zumbi. Apesar de não encaixar perfeitamente no que estava acontecendo, por um breve momento tive certeza de que esse era meu destino. Porém, a autoconfiança sumiu depois que minhas fitas cassete com gravações caseiras foram rejeitadas por todas as gravadoras e produtores com quem entrei em contato.

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Devido à sua experiência no Nordeste, Pedro também abandonou a Economia e seguiu o seu chamado para ser artista plástico. Apesar de não ser tarado em arte como se esperaria de um aspirante a pintor, ele desenhava bem. Para tanto, se inscreveu no curso do Parque Lage. Foi uma boa decisão. O curso era excelente. As turmas eram pequenas, o que permitia uma atenção especial dos professores, todos do mais alto nível, inclusive alguns eram estrangeiros. Além disso, depois do Circo, esse era o lugar mais badalado da Zona Sul do Rio de Janeiro. A sede do parque, onde davam o curso, era uma mansão enorme em estilo italiano clássico construído por um milionário no século 19. O contraste com mata tropical densa a sua volta o dava uma aura surreal. O espaço era tão bem conservado que atrás dele ainda havia as ruínas de uma senzala, agora transformada numa gruta, com camas de pedra cobertas de musgos que causavam calafrios em quem entrasse.

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As aulas eram no pátio interno da mansão, famoso por ter sido o cenário de sequências famosas de alguns dos mais importantes filmes do Cinema Novo, como a obra-prima de Glauber Rocha, Terra em Transe e em Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade. Nos anos setenta, também havia sido palco de shows memoráveis, mas por causa da reclamação de vizinhos, tinha fechado. Depois de alguns anos de silêncio, o local foi reaberto como um lugar para shows. Nos finais de semana, passou a competir com o Circo Voador para atrair corações e mentes daquela geração. Se antes havia espetáculos com Alceu Valença, Zé Ramalho, Moraes Moreira, a Barca do Sol, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal entre vários outros, nos anos oitenta haveria Ultraje a Rigor, Ira, Legião Urbana, Camisa de Vênus, Cazuza, Lobão e muito mais. Por ser da casa, a Blitz só se apresentava no Circo. 

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Uma das apresentações mais marcantes que aconteceu ali, unindo as duas gerações do rock, foi uma do Raul Seixas. Junto com a Rita Lee, Raul era o padrinho musical oficial da nova geração. Os seus shows tinham uma aura anárquica, quase satânica. Seu público era especial; havia muitas figuras estranhas que pareciam ter saído do passado, mais a ver com os hippies de Mauá do que com a galera bronzeada do Posto Nove. 

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Naquela noite, a casa estava lotada. Quando Raul subiu no palco com uma hora atraso, todos foram ao delírio com a lenda viva. Só que depois das primeiras músicas ficou patente que as coisas que tinha tomado ao longo da vida estavam cobrando a conta. Ele se esquecia das letras e parecia meio letárgico. Mesmo assim, o teatro veio abaixo quando tocou clássicos como Mosca na Sopa e Gita. O show terminou com a canção Sociedade Alternativa. Como de costume, no final da música Raul recitou as leis que regeriam a tal sociedade alternativa, todas muito legais e cabeça aberta. A última lei, no entanto, foi para causar efeito.

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“Na sociedade alternativa o homem terá o direito de matar aquele que o incomode.”

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Após mandar a bomba, saiu​ do palco. A banda parou de tocar logo depois e também foi para os camarins. Aquela frase continuou no ar de uma forma meio incômoda. Um cara com ar de ativista político universitário subiu ao palco e, inconformado com o que o Raul tinha dito, pegou no microfone ainda ligado e protestou. 

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“Companheiros, discordo do que o Raul disse. Não estamos aqui para cultuar o assassinato, deveríamos estar celebrando a vida numa noite dessas!”

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Aquele minidiscurso caiu mal e veio vaia de tudo quanto é lado.

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“Sai daí, seu viado!”

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“Vai falar merda pra tua mãe!!!”

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“Desce daí, seu filho da puta!”

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O cara, um sujeito franzino de óculos e com cabelo black power, continuou: “Podem vaiar, vocês ouviram bem o que o Raul disse? Isso é coisa de animal!”

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As vaias aumentaram e alguém jogou uma lata de cerveja nele. 

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“Isso mesmo, podem jogar lata, mostrem que vocês são um monte de ignorantes.”

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Depois do convite, latas, garrafas e tudo mais em que o público conseguiu pôr às mãos, literalmente choveram no palco. O teatro era a céu aberto e quando se olhava para cima parecia que tinha uma mangueira gigante jorrando projéteis. O cara desceu correndo, o Raul não voltou para o bis, mas, mesmo assim, a galera ficou gritando o seu nome como num ritual primitivo.

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“Raul! Raul! Raul!”

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Apesar daquela cena dantesca, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV) era respeitadíssima. O reconhecimento aconteceu quando o curso que Pedro estava fazendo decidiu unir forças com a faculdade de Belas Artes da Universidade Federal. Juntos, conseguiram permissão para pintar os muros de concreto do Parque. Alunos selecionados dos dois cursos, junto com artistas já consolidados, contribuíram com criações incríveis. Aquele exercício ganhou uma cobertura ampla na imprensa e definiu quem seria quem na “Geração 80”, o movimento mais importante da década nas artes plásticas. O evento acabaria sendo a porta de entrada para muitos artistas, e uma reinvenção estratégica para os veteranos.

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Pedro pintou um dos pedaços do muro e com isso se tornou membro oficial daquele grupo seleto. Aquilo abriu as portas para que circulasse de cabeça erguida entre as “pessoas interessantes” com as quais sempre desejou se relacionar. Com o seu novo status, agora era o Pedro quem passou a me introduzir a círculos sociais que eram de fato atraentes. A despeito de nunca ter conseguido curtir, nem respeitar, a artificialidade chamativa das roupas e dos cortes de cabelo daquela turma, com o preconceito fora da equação e conhecendo melhor suas propostas radicais de liberdade de expressão, passei a pelo menos entender o que estava se passando. Havia muita criatividade e contestação saudável por trás das máscaras, apesar da superficialidade e do elitismo das comitivas. Dessa forma, me tornei um participante periférico da nata da estética dos anos oitenta que me haviam estragado o Nordeste.

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