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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 31

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Foto: Arquivo Asrdubal Trouxe o Trombone

"Inútel, a gente somos inútil"

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Ultraje a Rigor - Inútil

Levei dias para me readaptar à rotina doméstica e aos confortos de sempre. Quando consegui, ao invés de estar contente por ter vivido uma viagem épica, a sensação foi de estranhamento. Ter uma empregada para arrumar minhas coisas, um quarto só para mim e comida sempre à disposição, sem que precisasse trabalhar para nada daquilo, parecia errado. Era como se fosse um animal enjaulado numa existência limitada e limitante.  

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O clima estava péssimo. Ansiosos e um tanto decepcionados, Renée e Rafael achavam que minhas aventuras tinham ido longe demais. Aos seus olhos, estava perdendo tempo precioso; precisava tomar um rumo na vida, fazer sentido, mudar de visual e de atitude. Para um casal já idoso e com o passado complicado deles, ver o filho largado daquela maneira em tempos tão incertos era difícil. A tática foi partir para o ataque. Do lado do Rafael tomei um gelo profundo que durou meses e do lado da Renée muita gritaria e ofensas.

 

Do meu lado, a liberdade do Nordeste era incompatível com aquela realidade. Não era só em casa; era na faculdade e nos outros círculos. Parecia que todos tinham voltado à sala de aula, menos eu. Nada me interessava e achava tudo e todos insuportáveis. Mais uma vez, me sentia como Ícaro, caído dos céus por ter voado alto demais, ou como Gulliver, imobilizado por seres minúsculos por não caber em seu mundinho. 

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Pelo país afora, a situação também estava pesada. Por conta da crise econômica havia medo, o instinto de gado tinha tomado conta e todos estavam mais caretas que nunca. Para manter vivos minha identidade e meus princípios, me vi forçado a nadar contra uma corrente de conformismo. Para conhecidos e desconhecidos parecia que eu havia perdido o contato com o que consideravam a realidade. Agora, era um cidadão de segunda classe a ser evitado.

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Foi difícil voltar às aulas. O curso estava se aprofundando em teorias micro e macroeconômicas, cálculo e outras matérias exigentes. Completamente fora de sintonia, não tinha nem concentração nem vontade de continuar. A necessidade de digerir o que tinha acontecido, meu antigo sonho de ser diretor de cinema, as descobertas musicais, a falta de pessoas com quem me identificasse, a distância da minha família e dos amigos, a falta de um relacionamento amoroso para amenizar o caos; tudo parecia uma montanha de tijolos desabando na minha cabeça.  

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Precisava de tempo e espaço para recalibrar. Pedi para passar um ano trabalhando em um kibutz, um tipo de comunidade agrícola anarquista, em Israel, mas a resposta foi um sonoro não. Para eles, o tempo para diversão e de divagações tinha esgotado. Agora era hora de virar homem e trabalhar duro para construir um futuro. É claro que seus argumentos faziam sentido, mas não estava disposto a capitular mesmo não tendo forças - nem razão - para pairar acima daquele mar de confusão.

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Para complicar as coisas, um dia Rafael, já nos seus 80 anos, passou mal ao voltar do almoço no escritório. Ele desmaiou no elevador e seus funcionários, assustados, o levaram depressa a um hospital. No CTI, os médicos disseram que seu coração estava fraco. Ainda que em retrospecto isso fosse previsível, o episódio pegou a família de surpresa.

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Suas andadas solitárias de madrugada na praia de Ipanema continuavam. Nos fins de semana, ele subia para Teresópolis e repousava na tranquilidade do sítio. Isso, somado a uma dieta saudável, o tinham levado àquela idade avançada com saúde e lucidez, mas estava difícil. Após tantas conquistas, o paraíso tropical, onde havia desembarcado trinta anos atrás, parecia agora estar reclamando tudo que lhe havia dado. Com uma inflação mensal beirando os trinta por cento ao mês e uma estagnação econômica devorando o país, manter sua empresa viva tinha se tornado um inferno. 

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Como se isso não bastasse, do seu ponto de vista a família estava em frangalhos; para ele eu tinha enlouquecido e, apesar da Sarah – a sua grande esperança – estar indo bem em sua carreira de dentista, tinha entrado em um relacionamento tóxico e não estava falando com nenhum de nós. Até o sítio em Teresópolis, o lugar onde deveria estar aproveitando sua aposentadoria, tinha se tornado um problema de manutenção sem fim, um ralo financeiro e mais uma pedra no seu sapato.

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Apesar das recomendações do médico, meu velho não se permitia descansar. Se parasse de trabalhar o estilo de vida da família desapareceria. Viciados que estávamos no seu esforço, achávamos que ele estaria ali para sempre nos provendo. Não tínhamos o preparo para perceber o seu martírio. No meu caso, estava absorvido demais comigo mesmo para oferecer qualquer tipo de ajuda. De qualquer forma, ele descartava de cara qualquer sugestão que desse – como a de vender o negócio e a casa para que pudesse aproveitar seus últimos anos em paz.

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Embora pensasse muito a respeito, sair de casa e mandar tudo para “aquele lugar” não era uma opção. Naquele tempo, jovens de classe média no Brasil só saíam de casa quando achavam um bom trabalho ou quando se casavam. Na Zona Sul carioca, ninguém jamais consideraria dividir um apartamento com amigos ou alugar um quarto na casa de estranhos. Mesmo se tivesse resolvido, pesquisando os classificados nos jornais descobri que os poucos empregos disponíveis para gente sem qualificação e sem experiência pagavam menos que a minha mesada. 

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A minha recusa em permanecer a mesma pessoa em vez de me tornar o seu projeto fez com que a tensão chegasse a um patamar insano. Quando ficou insuportável para todos, conseguimos chegar a um acordo. Eu abandonaria meu curso de Economia para seguir meu plano original de ser cineasta e tentaria uma vaga em uma faculdade de cinema em São Paulo. Para mim, essa escolha me colocaria de volta nos trilhos, para eles a opção era melhor do que eu largar tudo e ficar em casa de vagabundagem.

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Alheia ao meu e aos dramas de muitas outras familiares, a vida no Rio seguiu em frente com toda a sua intensidade. Havia novidades. A estrela da hora era o grupo de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone. De várias maneiras, eram o que a nova geração estava precisando: uma voz própria. Sua inovação é que eram “gente como a gente”, meninos e meninas de classe média aprendendo a viver e a lidar com a vida dentro e fora de casa. Diferente do que aconteceu em gerações passadas, eram totalmente apolíticos. 

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Representando o que estava acontecendo nas praias e na cena cultural carioca, influenciados por Monty Python e pela contracultura em geral, o Asdrúbal era uma versão mais inteligente, inclusiva e bem-humorada dos surfistas e dos roqueiros que povoaram os anos setenta. A trupe, formada por atores e diretores amadores ou quase profissionais da Zona Sul carioca, se lançou com a peça "Trate-me Leão". Por seu conteúdo atrevido e engraçado, que abordava assuntos e situações com que todos se identificavam, a peça foi um tremendo sucesso pelo Brasil afora.

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O Asdrúbal entrou - ou melhor, não entrou - na minha vida da seguinte maneira:

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Estava em casa de calção me preparando para ir ao Nove num glorioso sábado de praia. Meus pais tinham ido para Teresópolis e estava batendo papo com Dona Isabel na cozinha enquanto almoçava meu habitual bife acebolado. A televisão estava ligada e, de relance, vi alguns dos atores do já famoso Asdrúbal dando uma entrevista. No final, anunciaram que estavam oferecendo aulas de teatro grátis e convidando a todos que participassem.

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Aquilo chamou minha atenção e me tentou. Enquanto fui andando descalço para a praia fiquei pesando os prós e os contras de participar do curso. Poderia ser uma oportunidade para conhecer gente parecida e, quem sabe, uma chance para me aproximar do objetivo de fazer cinema. Porém, no fim da conversa interna, meu instinto de rato de praia falou mais alto, concluindo que aquilo era coisa de usuário de fio dental e de caretinha tirador de onda. Além do mais, não dava para ator, com e sem trocadilho. 

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Aquele acesso de homofobia juvenil foi um dos maiores erros da minha vida. Muitos dos maiores atores e roqueiros cariocas da minha geração, como a banda Blitz, o cantor Cazuza, comediantes como Luis Fernando Guimarães, a atriz e apresentadora Regina Casé, entre outros, surgiram daquele curso ou eram os professores lá.

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Apareceram tantos alunos que tiveram que separar o pessoal em grupos. Bruno, um amigo meu, entrou para um deles. Ainda que não fosse um ator nato, tinha uma câmera de vídeo e talento para filmar e editar. Para a trupe, esses dois atributos foram um presente dos deuses e começaram a lhe pedir que filmasse peças e outros eventos. O projeto cresceu e o Bruno cresceu junto. Décadas mais tarde, Bruno tinha ganhado vários prêmios como melhor diretor de vídeo musical na MTV Brasil e é hoje um dos maiores editores do país. 

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