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Image by Annie Spratt
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Foto: autor desconhecido

Aquela rotina desvairada acabou pesando para o corpo. No último dia de Carnaval estava totalmente acabado. Acordei cedo e, numa rajada de sanidade, sai de short para desintoxicar e curtir o sossego colonial nas vias mais afastadas, longe do carnaval. Eram umas onze e meia da manhã. Fui explorando a cidade até chegar numa rua que terminava na subida do viaduto que ligava Olinda a Recife. Não dava para continuar dali, não havia passagem para pedestres. Vendo aquilo como um desafio, alguma força insana me levou a arriscar uma travessia pela amurada desprotegida.

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Sem ter nada em que pudesse segurar, segui pelo concreto estreito que chegava a ficar a uns vinte metros de altura sobre uma avenida movimentada. Qualquer tropeço seria fatal. Nunca tive um bom senso de equilíbrio, mas na hora isso não pareceu importar. Olhei em frente e segui como um equilibrista numa corda bamba. Não estava sob o efeito de nada e nunca consegui entender o que me levou a fazer aquilo. Seriam tendências suicidas? Estava tentando provar alguma coisa a mim mesmo? Excesso de autoconfiança? Ou simplesmente não estava nem aí? 

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Do outro lado, desci numa rua calma, também colonial. Na primeira janela aberta, deparei com uma mãe ajudando seu filho com o dever de casa. Atônito, parei para olhar os dois alheios à minha confusão mental e ao barulho ensurdecedor do trânsito. Quando me viram, tomaram um susto e demos uma encarada intensa; eles com medo do maluco parado na janela e eu tentando entender como aquela cena pacata e racional era possível. Segui em frente me perguntando se havia uma mensagem do universo no ocorrido.

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Voltei para Olinda de ônibus. Assim que desci, voltei aos braços do Carnaval que já estava pegando fogo. Fiz uma parada na casa VIP, onde as pessoas estavam se preparando para sair num bloco famoso. Como era a saideira, a australiana ruiva caprichou na tatuagem de verão e meu rosto ficou fantasiado do que estava sentindo. Todos prontos e calibrados, saímos para rua, dessa vez parecendo personagens surrealistas. A maioria foi seguir o bloco, mas preferi me aventurar sozinho. Não demorou muito para agarrar uma gostosa e levá-la para o parque onde os casais iam. Tinha pegado várias, nenhuma com magia da Gê, mas deu para matar a saudade.

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Quando caiu a noite, fui com ela num bar para encontrar seus amigos caretíssimos. Depois que se foram, comecei a conversar com uns caras meio barra pesada da mesa do lado. O papo se tornou bizarro e os dois acabaram me convidando para viajar de graça de navio para Europa levando cocaína. Sentindo aquilo carregado demais, saí fora e voltei para a confusão, onde cruzei com um colega de sala da faculdade. Felizes com a coincidência, saímos abraçados atrás de um bloco. Ficamos na farra até às quatro da manhã. Com as ruas esvaziando, fomos para um bar deserto onde batemos papo até ele ir embora.

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Naquela altura, o céu já estava ameaçando clarear. Era a hora de dar o carnaval por encerrado. No caminho de casa, cruzei com o Betinho, o filho do prefeito, acompanhado de amigos, subindo a ladeira que eu estava descendo.

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Fiquei surpreso quando ele me chamou do outro lado da rua: “Fala carioca! Tu não é o amigo da Dinah?”

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“Sou, e aí? Beleza?”

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“Tu tinha um nome gringo, não é mesmo? Richard?”

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“Isso mesmo." Me aproximei. "E aí? Resolveu sair?”

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“Pois é, meu irmão, ser anfitrião é um saco!” Deu para sentir que os amigos estavam a fim de me dispensar, mas para contrariar, ele me convidou “E aí? Bora fumar a saideira do Carnaval ali em cima no parque?”

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Não ia dizer que não. “Opa! Vambora!”

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Para irritar seus amigos, ele continuou conversando comigo. “E então, carioca, gostaste do Carnaval de Olinda?”

 

O cansaço não tinha roubado o bom humor. “A parte que me lembro foi demais, a parte que não me lembro deve ter sido melhor ainda.”

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Ele deu um sorriso. “Pois é rapaz, todo ano fazemos uma festa dessas. A gente abre a casa para os outros se divertirem e nos divertirmos com eles."

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Um dos amigos emendou: "A festa na casa do Betinho é uma tradição do Carnaval de Olinda. Merecia entrar no calendário oficial!"

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Betinho, visivelmente de saco cheio da bajulação, voltou a falar comigo. "Carioca, te garanto que tu vai fechar o Carnaval com chave de ouro.” Ele tirou do bolso uma muda ressecada. “Isto aqui é o famoso Manga-rosa. Tirado do pé faz nem uma semana em Cabrobó. Já ouviste falar?””

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“Caralho! Manga-rosa! Nunca pensei que fosse fumar isso na vida!”

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Ele passou para eu dar uma olhada. Um outro amigo falou: “Chega até a ser bonito. Dá uma cheirada para sentir. Não existe melhor!”

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O cheiro era fortíssimo. “Cheira a bagulho bom!”

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“E é! Made in Pernambuco!"

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Chegamos no topo de um parque onde nos sentamos numa escadaria de pedra para esperar o sol nascer. Depois de uns minutos de silêncio alguém pediu.

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"Passa aqui pra eu apertar.”

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O cara era um artista, saiu perfeito. “Isso também é uma tradição a gente sempre guarda um para agora.”

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“É verdade, a gente faz isso desde moleque. Sempre fechamos o Carnaval com um desses para depois sair no Galo da Madrugada." Esse era o famoso bloco que fechava o Carnaval de Olinda.

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Passaram o baseado para o Betinho acender. Quando chegou minha vez, deu uma onda quase tão forte quanto os cogumelos de Mauá. Dois pegas bastavam.

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Ficamos ali, com a cidade só para nós. Em pouco tempo o horizonte foi alaranjando até o sol aparecer como um círculo brilhante subindo e iluminando a natureza à nossa volta. As cores magníficas, o silêncio e a temperatura amena fizeram aquele momento ser perfeito. Relaxado, depois de sorver tanta vida, não só no Carnaval mas no verão inteiro, estava em estado de graça.

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Do nada, dois estranhos chegaram e se juntaram sem ser convidados. Eram mais velhos, nos seus trinta e poucos, um era louro, grande, de cabelos compridos e com ar de surfista e o outro era musculoso, de camiseta de malhador apertada e com um corte de cabelo estilo escovinha.

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O cabeludo puxou conversa: “Barbaridade, que visual incrível!”

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Estava na cara que era gaúcho, só que ninguém estava a fim de papo. Ignoramos, mas eles insistiram.

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O outro, meio agressivo, falou em inglês com sotaque americano. “Diz para eles que a gente sabe que eles estão chapados, mas que estamos muito mais chapados que eles.”

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O gaúcho traduziu e depois explicou: “Esse maluco é americano, não fala uma palavra de português.”

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Um dos amigos do Betinho respondeu:

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“Não existe essa de estar mais ou menos chapado, estamos aqui curtindo a paz do visual." E completou em inglês. "Aqui todo mundo fala inglês, relaxa.”

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O gaúcho continuou “Este americano é tri-louco, grudou em mim e agora que tomamos um ácido ele está mais louco ainda.”

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Ao ouvir a palavra ácido, olhamos em sincronia para os dois, mas a vontade de ficar em silêncio continuou. Talvez por se sentir na obrigação de fazer turistas se sentirem bem-vindos na sua cidade, Betinho se tornou nosso porta-voz.

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O cara era um político nato. “Curtiram o Carnaval? Did you enjoy the Carnival of Olinda?”

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Quem respondeu foi o gaúcho “Eu venho todo ano passar o Carnaval com a minha irmã que mora em Recife. O Mark aqui está estacionado em uma base militar no Caribe e veio passar as férias.”

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O americano ainda não tinha se dado conta de que todo mundo ali falava inglês. Quando ouviu Caribe ficou agitado.

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“Caribbean yeah, Guantánamo!” Bateu no peito “Sou um Marine, entende?! Adoro armas, combate e mulheres brasileiras. Fala para eles que eu estive no Vietnã! ”

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A menção de Guantánamo deixou todo mundo de orelha em pé. Mesmo assim, a presença deles e o papo eram tão fora de contexto que ficou difícil distinguir se aquilo estava acontecendo ou não. De qualquer forma, ninguém estava a fim de rebater o cara em inglês. Eu é que não ia me meter.

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O gaúcho, sem perceber as nuances, continuou no papel de intérprete lisérgico: “Não estou dizendo que este americano é doido?! Agora ele inventou que lutou no Vietnã.”

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Pela idade era impossível, como também era muito pouco provável que estivesse estacionado em Guantánamo. Por outro lado, o físico, a atitude e o corte de cabelo pareciam confirmar que se tratava de um Marine. Novamente ninguém falou nada, torcendo que descessem da nossa nuvem o mais rápido possível.

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O americano continuou a nos desafiar, acenou com a cabeça, colocou dois dedos nas nossas caras, e continuou num português fraquíssimo “Sim, dois anos, eu in Vietnam.”

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O gaúcho estava hiperativo. “Liga não, tchê. Ele é maluco assim mesmo. Faz cara feia, inventa histórias e volta e meia se mete em confusão. No fundo é gente boa, mas o melhor é ignorar.”

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Aquilo de absurdo estava ficando chato.  Deu vontade de ter um controle de televisão para trocar de canal. Finalmente a ficha do americano caiu e se voltou ao companheiro: “Hey buddy! Let's go!”

 

O cara traduziu: “Moçada, a gente vai nessa.”

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Os dois partiram da mesma maneira que chegaram e aliviaram o ambiente. Ficamos uns quinze minutos sem falar nada. Alguém acendeu o baseado de novo e no final da rodada o Betinho interrompeu o silêncio. “Galera, daqui a pouco o Galo da Madrugada vai sair, vamos lá?”

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Todo mundo foi, mas resolvi ficar. Minha quota de Carnaval já estava pra lá de preenchida. Agradeci e a gente se despediu. Fiquei ali sozinho, apreciando a beleza de Olinda até a lombra passar. Aquelas primeiras horas da manhã, em uma cidade histórica no Nordeste brasileiro, marcou a minha despedida de uma época especial; um período de minha vida do qual sempre sentirei saudades.

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O Pedro, com quem cruzei apenas uma vez durante o Carnaval, tinha conseguido carona na caravana dos amigos da Carla e ia voltar com eles para o Rio. Voltei sozinho e tive sorte de pegar caronas longas. A grana acabou quando cheguei em Campos, no estado do Rio. Como precisava chegar em casa a tempo do início das aulas, pela única vez na vida, pedi dinheiro a estranhos para completar o dinheiro da passagem e para comer alguma coisa; uma situação oposta da que tinha rolado na casa do Betinho e uma lição importante de humildade.

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