

CAPÍTULO 30

Foto: Minuto Ligado
"Na Madalena revi teu nome
Na Boa Vista quis te encontrar
Rua do Sol, da Boa Hora
Rua da Aurora, vou caminhar."
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Alceu Valença - Pelas ruas que andei
Numa época sem celulares, o único contato com nossas famílias era a ligada semanal que fazíamos da telefônica da cidade onde estivéssemos - se houvesse uma. Como de praxe, na quinta feira antes do Carnaval, fomos na de Olinda. Quando sua vez chegou, Pedro fez duas ligações, uma para mãe e outra para Carla, sua namorada. De um hotel em Fortaleza, ela veio com a surpresa de que tinha alugado um apartamento em Boa Viagem, no Recife, e que estava vindo de avião no dia seguinte para passar o Carnaval com ele. O Pedro ficou nas nuvens, mas para mim a notícia de que passaria o Carnaval sozinho me deixou puto.
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Para compensar o furo, Pedro me deu o contato da Dinah, uma jornalista que havia conhecido em Porto Seguro. Sua amiga estava hospedada na casa do - nada mais, nada menos - filho do prefeito de Olinda. Depois que saiu do quarto, sem graça com suas tralhas, fiquei olhando para a porcaria do papelzinho com o número, pensando se ligava ou não. Só a conhecia de vista, com certeza ia me mandar pastar assim que atendesse. De qualquer forma fui para o orelhão da esquina e arrisquei. Quando a Dinah atendeu, para minha surpresa, me tratou como se fossemos amigos de longa data.
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Ela ja estava sabendo: “Richard! Claro que me lembro! Quer dizer que o Pedro, aquele galinha, vai passar o Carnaval no bem-bom e te deixou na mão.”
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Simpaticíssima, me convidou para passar o Carnaval com ela. “Olha, o pessoal está se encontrando todo dia aqui na casa do Betinho Arruda. O Pedro te falou quem ele é? Pois é! Aparece aqui hoje à noite para eu te apresentar ao pessoal! Você vai adorar!”
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Não dava para recusar aquele convite. Anotei o endereço e mais tarde fui meio sem jeito à propriedade VIP.
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Quando cheguei, a Dinah já estava a minha espera na portaria. Depois dos beijinhos na bochecha, foi falar com os seguranças, que liberaram minha entrada. Lá dentro, pendurada no meu braço ela foi logo dizendo: “Já te arrumei um crachá, querido! Este vai ser um Carnaval que você não vai esquecer nunca, o Pedro se deu mal!”
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Dinah era uma mulata baixinha e troncuda. Não era das mais bonitas, mas pegaria tranquilo. Contudo, senti que não havia qualquer tipo de atração da parte dela e que estava fazendo aquilo por ser autenticamente gente boa.
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Animada, ela me deu um tour da casa antiga, imponente e bem conservada. Nos salões, nos jardins e nos corredores haviam convidados numa sofisticação que combinava com a decoração, mas que era incompatível com os festejos bombando nas ruas. Garçons andavam de um lado para o outro servindo bebidas e canapés. Para quem quisesse algo mais substancial, havia um buffet generoso de comidas frias e quentes. Ao lado havia pratos e talheres de primeira linha. A mesa era enorme, de madeira talhada e ficava numa sala colonial que parecia uma ala de um museu.
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Terminamos num saguão cheio de gente de fora e de estrangeiros, todos bem mais velhos e conversando com compostura. Ninguém estava de terno por ser o Carnaval, mas estavam todos muito bem-vestidos. Preocupado em não fazer a Dinah se arrepender do convite, tinha colocado uma roupa convencional. Não era chique, mas também não era de hippie afrescalhado.
Enturmada, ela saiu me apresentando a todos. “Oi, este é um amigo do Rio, Richard. É filho de ingleses, músico, estudante de Economia e muito legal!”
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As socializações não duravam muito, mas eram educadamente simpáticas. Ela chegou até a me apresentar ao Betinho e o dono da festa pareceu ter ido com a minha cara.
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Depois das apresentações, Dinah foi com conversar com um bonitão por quem parecia interessada. Sem querer dar uma de mala e ficar na aba dela, pedi licença e fui dar uma volta. Não pude deixar de pensar que aquele lugar e aquela gente seriam o paraíso para o Pedro. Apesar da estranha justiça divina, estava mais preocupado em curtir a folia nas ruas do que em me enturmar naquela festa, que prometia ser chata. Na pior das hipóteses, ia comer e beber bem e de graça antes de enfiar o pé na jaca. Quando já estava a ponto de ir embora, fui percebendo que além da fartura de bebidas - whisky, caipirinha, gin com tônica e cerveja - estava rolando de tudo: tinha gente nos cantos oferecendo lenços com lança-perfume, rodas de cocaína em alguns quartos e o quintal estava fedendo a maconha. Mais tarde escutei, inclusive, alguém dizer que estavam distribuindo LSD.
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Gostando mais das possibilidades, fui percebendo o motivo da aparência formal da festa; é que depois de se chapar, a galera mais doida saía para o Carnaval de rua. Quem ficava na casa eram os caretas e os coroas.
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Continuei na minha exploração e após descolar uns pegas numa roda, achei num dos cantos do jardim um grupo de achei um grupo de espanhóis perdidos com um estilo parecido ao meu. Cheguei junto e puxei papo em um portunhol terrível. Conforme os garçons foram enchendo nossos copos com doses generosas de whisky, fomos ficando mais desinibidos.
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"Mira, conoces el dueño de esta fiesta?"
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"Mais ou menos, soy convidado de uma convidada, compreendes? e ustedes?"
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"Hombre, somos nadie, dissimos que trabajamos en el consulado y nos deran permisso. Que tontos!"
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Cai na gargalhada.
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"Sabes quien es el dueño desta casa?" Me perguntou de novo um outro.
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"Es el filho do prefeito de Olinda, entiende? Hijo del prefecto!?"
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"Ah si, hijo del alcaide! Hoder! Que loco!" O espanhol virou para os amigos para contar o que tinha acabado de ouvir.
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Ficaram espantados e acharam engraçado ao mesmo tempo. Uma garota, bonita, falou: "Puta madre! La casa ni es del alcalde, es de su hijo! Como tienen plata estos cabrones!"
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Já amigos, quando nos sentimos calibrados saímos e fomos nos juntar à massa nas ruas. Como a maioria dos outros convidados, a gente só voltava de vez em quando para um “pit stop”.
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Não demorou muito para que perdesse os espanhóis e Dinah de vista. Nos dias seguintes, com carta branca para entrar e sair do casarão na hora que quisesse, meu cotidiano não poderia ser mais estranho. Acordava no quarto alugado, que apesar da localização privilegiada mais parecia o de um barraco, e ia para um dos melhores endereços da cidade para tomar café e "fazer a cabeça". O buffet do matinal ficava à disposição até às duas da tarde. Com a barriga cheia, ficava conversando com um pessoal que conheci, interessante e amigo. Havia duas meninas australianas que curtiam pintar caras e assim, nos fins de tarde saíamos todos para pular um dos melhores carnavais do mundo parecendo a turma do Batman.
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Lá fora nos dispersávamos, encontrando-nos ocasionalmente na confusão ou quando retornávamos para os reabastecimentos necessários. O carnaval era excelente. A qualquer hora do dia, as ruas eram abarrotadas de gente de todas as classes sociais, cores e proveniências, consumidas pela loucura coletiva do frevo. O tempo todo me esbarrava com conhecidos; gente das várias paradas no litoral, amigos do Rio, os espanhóis do casarão, enfim, com todo mundo menos o Pedro, que sumiu e que não estava fazendo falta nenhuma. Longe dos blues existenciais de Canoa Quebrada, ficava me esbaldando na doideira até o amanhecer. De madrugada, tal como Cinderela, voltava ao covil miserável, onde tirava algumas horas de sono.