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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 29

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Foto: Pinterest (dominio publico)

“Não tenho medo do escuro

Mas deixe as luzes acesas agora."

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Renato Russo - Tempo Perdido

Acordamos cedo e percebemos, sem jeito, que os gaúchos tinham deixado a gente ficar com o quarto. Tomando cuidado para não fazer barulho, continuamos onde tínhamos parado na noite anterior.

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Revitalizados, saímos em silêncio e fomos para praia aproveitar a manhã. Só que na luz do dia, não rolou a felicidade prometida. Quando começamos a nos comunicar por meio de palavras, descobrimos que éramos incompatíveis. Para ela, eu era um garoto mimado da Zona Sul do Rio, perdido no meio de um exercício de autoconhecimento. Para mim ela era uma menina desinteressante de uma cidadezinha próxima, preocupada em voltar logo para casa porque sua mãe a queria na loja da família naquela tarde. Quando nos despedimos, sabíamos que o relacionamento tinha durado apenas aquela noite. No fim de semana seguinte, a vi andando de mãos dadas com um dos gaúchos. Não me importei. O momento havia sido meu, embora a garota não fosse mais.

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Pedro, por sua vez, tinha deixado de ser de muitas e tinha arrumado uma namorada. Carla era uma lourona de farmácia de trinta e muitos anos e marchand no Rio. Junto ao entusiasmo inicial havia o encantamento com a galera dela, seus possíveis novos companheiros de viagem, que estavam subindo a costa nordestina em uma caravana motorizada. Talvez sua obsessão por aquele pessoal afluente viesse de uma necessidade de estabilidade financeira já que não tinha um pai que cuidasse dele. Seja qual fosse a razão, contente por ter achado sua turma, meu companheiro de viagem se afastou.  

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Sem ter como , nem vontade, de me aproximar daquela turma nem muito saco para as gauchices dos gaúchos passei a andar com os músicos e a malucada do artesanato. Foi assim que o zen que adquirido com seu Chico e a paz da noite mágica evaporaram. De repente me vi num lugar estranho. Devido a um elitismo que rolava entre os veranistas e até entre os mochileiros, aquele grupo era tido como um clube de hippies perdedores. Foi como tivesse sido transferido para a área dos detentos difíceis num sistema penitenciário.

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A verdade é que quanto melhor conhecia gente do circuito de caroneiros no Nordeste,  mais percebia que ali não tinha nada de alternativo. Fora os discípulos teleguiados do Rajneesh, ninguém tinha nada a dizer. O negócio era tirar onda. A diferença entre eles e os caretas de sempre, era que tinham menos dinheiro e acreditavam que suas histórias, seus cortes de cabelo diferentes e suas roupas transadas os tornavam melhores e mais legais do que todo mundo. Essa arrogância superficial era a marca dos anos oitenta, o início da era do individualismo exacerbado.

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Mentalmente e geograficamente, estava num lugar distante. Um senso de estranhamento me inundou. Estava ciente de que era para estar contente, aproveitando os melhores dias de minha vida, talvez no melhor lugar do melhor país do mundo para isso. Do lado de fora havia sol e curtição, a beleza do lugar e das pessoas, mas do lado de dentro a coisa era muito diferente. A tempestade econômica, a carência afetiva, o isolamento num mundo onde o egoísmo era a matéria prima do tecido social, faziam chover e às vezes trovejar.

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Numa tarde, Pedro e eu nos sentamos para conversar na praia. Já tinha ficado claro que estávamos procurando coisas diferentes naquela viagem. Ele contou que a coisa estava uma maravilha entre ele e a Carla, mas que não tinha lugar para ele na caravana. Talvez por falta de opção, chegamos à conclusão de que, apesar das diferenças, estávamos juntos e que seguiríamos com o plano original. Eu iria ter que aturar um hippie de araque se esforçando para parecer descolado para conseguir o que queria, enquanto ele iria ter que engolir um cara que se julgava um hippie de verdade, mas que havia perdido a noção da realidade.

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Dando sequência à aventura, depois de Canoa Quebrada iríamos começar a descer de volta para casa. O Carnaval estava chegando e íamos passá-lo em Olinda. A amizade voltou com aquela conversa e agora não podíamos ver a hora pular o frevo nas suas ruas históricas.

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Três dias depois estávamos na estrada de novo, mais bronzeados que nunca e de alma lavada após um mês e meio sob o sol do Nordeste, reencontrando o vento e a liberdade dos caminhões na rodovia. 

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Antes de voltar para a terra do melhor carnaval da minha vida, resolvemos parar por alguns dias em Natal. Sendo o ponto mais próximo entre a África e a América do Sul, a cidade tinha servido como base para navios e aviões americanos durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda havia uma forte presença militar e, talvez por isso, foi a cidade mais ordeira que visitamos. O albergue para estudantes foi também o melhor em que ficamos, com quartos modernos, limpos e amplos. Com suas ruas calmas, Natal mostrava o que o Brasil poderia ter sido caso “Ordem e Progresso”, o lema positivista da bandeira brasileira, tivesse sido seguido.

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Fomos acampar na praia da Redinha, na época um lugar quase selvagem e de difícil acesso do outro lado do rio Potenji, que bordeia a cidade. A areia branca e fina de dunas enormes faria de lá um cenário ideal para a gravação de vários comerciais de praia, tanto nacionais quanto internacionais. O vento fosse forte faria daquela praia e dos seus arredores um dos melhores lugares do mundo para a  prática do kitesurf. As ondas também eram excelentes. O problema era que a água era infestada de caravelas, um tipo de água-viva cujos tentáculos causavam uma ardência de dar febre; daí que, apesar de ficarmos doidos para se esbaldar naquele mar convidativo, preferimos permanecer na praia bebendo cerveja.

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Natal não era bem cotada no circuito mochileiro devido à sua aura militar. Isto ficou evidente quando chegamos na praia da Redinha. Fora os pescadores nativos e algumas famílias da capital que tinham casas de veraneio ali, não havia mais ninguém. Mesmo sendo um lugar perfeito para um verão de primeira categoria, voltamos no mesmo dia. Pelo lado positivo, a experiência deu uma ideia de como deveria ter sido explorar a costa Nordestina em gerações anteriores.

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A calmaria e o conforto daquela cidade caíram como umas férias das férias. Aproveitamos para colocar as coisas em dia e entre outros assuntos falamos sobre dinheiro. Para nossa surpresa, percebemos que havíamos gastado bem menos do que o previsto. Como prêmio pela frugalidade, nos demos de presente uma passagem de ônibus até o Recife.

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Na manhã seguinte, num raro dia nublado acordei cedo e me ofereci para ir à rodoviária comprar as passagens. Como viajaríamos naquela noite, levei a mochila para já deixá-la no guarda-volumes.

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Saí pelas ruas semidesertas, já acostumado com a sensação que causava pelo visual diferente. Na rodoviária, na hora de pagar as passagens, a atendente disse que não dava para comprar o bilhete do Pedro porque não estava com sua identidade. Irritado, insisti e ela acabou me aconselhando a tentar pegar uma autorização na delegacia da estação. Fui lá, mas a porta estava trancada. Sem ter nada programado para aquele dia, fiquei esperando alguém chegar. Quarenta minutos depois, um homem de uns cinquenta e poucos anos e de barba por fazer apareceu.

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Enquanto tirava as chaves do bolso, perguntei: “O senhor é o delegado da estação?”

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O policial, que parecia uma versão deteriorada do bigodudo de Aracajú, me olhou de cima a baixo e respondeu seco. “Sou sim, mas se o senhor quiser falar comigo vai ter que ser lá dentro.”

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Pelo bafo, dava para sentir que estava bêbado. A coisa estava feia, a ponto dele se esforçar para colocar a chave na fechadura. Depois de alguns segundos embaraçosos, conseguimos entrar. Antes que começasse a explicar o motivo de estar ali, ele me mandou colocar minha mochila na mesa e abrir.

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“Abre esta merda agora.”

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Sem acreditar no que ouvi e querendo sair logo com a autorização do Pedro concordei.

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Enquanto o cara foi jogando as coisas no chão falei serenamente: “Depois que o senhor acabar a revista, posso pedir uma autorização para comprar a passagem do meu amigo? Estou sem a carteira de identidade dele.”

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“Autorização é o caralho, cadê a maconha!?” O cara continuou a tirar as coisas, claro, sem encontrar nada. Infelizmente – mas felizmente para a ocasião – o veneno de Maceió tinha acabado em Canoa Quebrada. Frustrado e com um monte de roupa suja espalhada na mesa e no chão, ele não desistiu.

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“Cadê a porra da maconha?!”

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“Eu não fumo isso. Pode procurar à vontade, o senhor não vai achar nada.”

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“Ah, e isso daqui?” Ele tirou duas conchas enormes que tinha achado na praia e que ia dar de presente para minha mãe e para a Dona Isabel.

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“Isso aí são conchas.” Já sentindo o nível da psicopatia.

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Ele deu uma sacudida para ver se caia alguma coisa de dentro delas, mas nem um barulhinho.

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“Agora a gente pode falar sobre a autorização?”

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“Aqui não tem autorização nenhuma." Ele me deu um olhar torto e desafiador. "Essas conchas estão apreendidas. Vão ficar aqui comigo!”

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“Como assim? Aprendidas porquê?”

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O cara começou a tremer de raiva e abriu a gaveta para pegar uma coisa. Pensei que fosse o documento, mas não, ele tirou um martelo que colocou próximo à minha orelha.

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“Tu é um veado frouxo, ouviu? Eu falei que essas duas conchas são minhas. São ou não são !?”

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Com a adrenalina já jorrando, subi o tom: “Meu irmão, se acontecer alguma coisa comigo nessa merda, tu tá fodido, meu pai é jornalista da Globo, já ouviu falar? Ele fode você e a polícia inteira dessa rodoviária. Tu vai preso ou pro olho da rua! Abaixa essa porra agora e me devolve as conchas, entendeu?”

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O cara comprou meu blefe e engolindo a raiva, colocou o martelo de volta na gaveta.

 

Me levantei, coloquei as tralhas e as conchas de volta e saí sem nem perguntar como aquilo ia ficar. Voltei para o guichê para pedir uma satisfação, mas a moça era outra. A substituta explicou que a tal autorização não existia. A primeira menina tinha mentido.

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Comprei a minha passagem e deixei que Pedro resolvesse o problema de sua passagem sozinho.  Não teve problema na hora e à noite viajamos para Recife. Quando descemos do ônibus estávamos a dois dias do Carnaval e já dava para sentir o clima no ar. Do nada encontramos o Mineiro, um amigo de Salvador. Foi uma feliz coincidência já que não tínhamos lugar para ficar e ele estava doido atrás de alguém para rachar o quarto que tinha conseguido em Olinda, algo que todo mundo dizia que era impossível naquela época do ano. Fomos para lá num clima ótimo e logo que chegamos, percebemos a sorte que demos; nosso quartel general seria a duas quadras da Praça do Carmo, o coração da folia.

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