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Image by Annie Spratt
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Foto: autor desconhecido

Se os primos da Francesca suspeitavam que éramos gay, assim que o tio do Pedro botou o olho na gente, ele teve certeza. A hostilidade começou quando sua esposa nos mostrou de cara fechada o quarto com cama de casal. O desgosto ficou evidente quando nosso anfitrião jogou a comida no meu prato, ao invés de me servir. Que me lembre, nunca desmunhequei, nem usei roupas de hippie fresco, mas, aos seus olhos, eu era uma bicha comunista e maconheira levando o filho jovem e saudável do seu finado irmão para um caminho de subversão, drogas e perversão homossexual. Fico imaginando o que ele faria se soubesse que além daquilo tudo ainda era judeu...

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Naquele tempo, naquela parte do mundo, os mesmos caras que gastavam seu dinheiro com amantes, prostitutas, álcool e que batiam em suas esposas, consideravam a juventude do sul degenerada. Não podia deixar de pensar na sua reação se visse o Luiz de Vitória, saindo do quarto com a “Maysa” pendurada em seu pescoço e dizendo que havia perdido a virgindade. De qualquer forma, do ponto de vista antropológico, a situação trouxe o entendimento de como as coisas deviam ser em gerações anteriores, no Rio e em diversos lugares do planeta.

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Aquele universo claustrofóbico e canalha, havia sido construído em torno da uma classe dominante ancestral escravista e assassina de nativos. Como na época das capitanias hereditárias, além dela ainda controlar tudo e todos à sua volta, odiava quem quer que ameaçasse seu domínio. Para qualquer pessoa com visão crítica que não fizesse parte daquela elite, a vida ali era opressiva. Para pessoas de classes menos privilegiadas, então, a existência era servil, comparável com a da Idade Média.

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Apesar do ambiente pesado em casa, gostamos de Fortaleza. Era uma das capitais mais modernas do Nordeste e tinha uma vibração cosmopolita. O clima, as praias imensas, o vento, as múltiplas áreas de lazer, os prédios modernos e as avenidas largas e bem planejadas faziam com que a cidade parecesse a capital de um país avançado no Oriente Médio, tal como Tel Aviv ou Beirute. Talvez a postura do tio de Pedro fosse uma exceção, já que os cearenses tinham a fama de serem espertos e engraçados, dando ao Brasil alguns de seus maiores humoristas, como Chico Anysio, Tom Cavalcanti e Renato Aragão.

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O Ceará foi o estado mais ao norte da nossa excursão. Além da vantagem, que se provou teórica, de podermos ficar de graça com tudo pago na casa de um parente do Pedro, o motivo para termos ido tão longe era uma aldeia de pescadores chamada Canoa Quebrada, parada obrigatória no circuito neo-hippie. Depois de cinco dias, partimos para lá. Fomos de carona até Aracati e de lá pegamos uma Kombi até o pé de uma duna gigantesca. Subir aquela parede de areia fofa, da altura de um prédio de tres andares, foi uma tarefa difícil. Chegamos ao topo cobertos de areia e com falta de ar. Já estava escuro, mas à distância dava para ver as silhuetas de um grupo de cabanas mal iluminadas lembrando um lugar perdido entre o deserto e o mar. Esquecemos o cansaço e ficamos encantados na hora.

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De fôlego recuperado, animados, armamos a barraca num descampado fora do vilarejo e fomos conhecer o local. Ele tinha o charme primitivo e a autenticidade que só lugares remotos e intocados conseguem ter. Os casebres eram rústicos, castigados pelo vento e pelo sol e os espaços entre eles criavam trilhas de areia que, em sua maioria, terminavam abruptamente numa falésia gigantesca. A praia lá embaixo era a mais larga de todas as que visitamos.

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Na sua areia dura havia jangadas por todo lado. Icônicos da região, estes barcos artesanais eram planos, feitos de troncos de árvores secos, atados com cordas e tinham um mastro segurando uma enorme vela triangular. Ao raiar do dia, os pescadores rolavam as embarcações sobre troncos secos de coqueiro até chegar na água. No mar, flutuavam leve e eram fáceis de manobrar. Com suas velas desfraldadas, sua elegância simples parecia parte integrante da paisagem.

 

O povo local sabia como lidar com o clima quase desértico e osol equatorial melhor que os visitantes. Eles só se expunham de manhã bem cedo ou no final da tarde. No resto do dia, os homens ficavam na sombra remendando suas redes, vendendo o que tinham pescado, comprando provisões ou simplesmente descansando. Enquanto isso, as mulheres ficavam em casa fazendo rendas. Sua técnica artesanal e seus produtos eram famosos em todo o Brasil.

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Por outro lado, o miniexército de mochileiros que se aglomerava ali durante o verão, ía para a praia na hora mais quente do dia, por volta das onze da manhã. Quando o calor ficava insuportável, nos abrigávamos na sombra dos quiosques à beira da falésia para beber cerveja e ficar ouvindo os relatos das viagens uns dos outros. Nas conversas, trocávamos dicas sobre lugares na rota costeira, em meio a discussões político-existenciais. Havia machismo até entre os mochileiros, as garotas não participavam das conversas, mas ficavam sentadas em seu canto batendo seus papos e retribuindo nossos olhares.

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No dia seguinte, alugamos por quase nada um quarto na cabana de um pescador. Mais típica impossível; a família dormia em redes penduradas pela casa enquanto o quarto alugado era o único separado por uma parede de tijolos e por uma porta recentes. Nossas camas eram tapetes de vime estendidos sobre o chão de areia. A água vinha de um poço no quintal, a família cozinhava num fogão à lenha feito de tijolos e à noite uma lamparina de querosene iluminava a casa. As paredes de pau a pique eram cheias de buracos, que permitiam que o ar de fora refrescasse o ambiente. Tanto esses quanto os buracos no telhado não eram problema, uma vez que raramente chovia.

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Do lado de fora, e por todo o vilarejo, cachorros vadios, porcos, galinhas e patos circulavam por todo canto fazendo com que toda hora pegássemos bicho de pé. No final da estadia já estava craque em tirá-los com uma agulha.

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Seu Chico, o dono da casa, era o patriarca das três gerações que viviam sob aquele teto de palha. Apesar de grisalho, seu corpo ainda era forte, graças aos anos passados no mar. Tranquilo e de poucas palavras, impunha respeito. Sua sabedoria não vinha de livros, mas dos seus sentidos aguçados por uma vida passada interagindo diariamente com a natureza. Gostei dele, e nas conversas que consegui puxar, passei a apreciar sua visão de mundo. De várias formas, era mais profundo do que muitos de meus professores na faculdade. Aprendi com ele os hábitos de todos os peixes e dos bichos da região e os segredos de como apanhá-los.

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A curiosidade era mútua e suas perguntas sobre nosso estilo de vida eram interessantes.

“Mas se ocês faiz faculdade, porque ocês anda vestido que nem mendigo?”

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“Não sei, seu Chico. Deve ser porque no fundo a gente não quer aquilo.”, respondi entre garfadas no meu feijão com arroz amalgamado por farinha que sua sua mulher tinha preparado. “Lá tem muito mais dinheiro que aqui, mas parece que falta alguma coisa.”

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Ele apontou para o mar por trás do quintal, olhou para o céu azul de fim de tarde. “Então pra eis falta isto daqui.”

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Um grupo de aves estava cruzando o céu em formação. Quando desapareceram ele emendou: “Isso aqui tudo é uma coisa só, quem entende isso num precisa entender mais nada.”

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Caso algum urbanóide desdenhasse dele por não saber ler ou escrever, seu Chico poderia retrucar fácil – e corretamente – que o sujeito não tinha nenhum conhecimento sobre o meio ambiente onde vivia, isso se ainda tivesse restado algum. O elo homem-natureza estava perdido para os seguidores de Moloch. Para eles, fora o dinheiro, nada era sagrado. Com a cabeça entupida de coisas inúteis, eram ignorantes sobre o mais importante; a natureza tanto fora quanto dentro deles. Não era seu Chico que precisava pagar psicólogos ou gurus de meia-tigela nos Estados Unidos para resolver os seus problemas existenciais, nem era ele que precisava viajar tão longe por não gostar do mundo em que vivia.

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No pôr do sol, a galera se agrupava em cima da duna gigantesca por onde chegamos no vilarejo. No Rio – bem como em todos os estados por onde havíamos passado – o sol se punha no lado direito da praia. Como o Ceará fica depois da curva que a costa do Nordeste faz, lá o sol se põe em terra. Por isso, a paisagem daquela montanha de areia fina parecia de outra galáxia, o sol se punha por trás de uma planície sem fim de onde saíam sons de inúmeros pássaros se preparando para o cair da noite. A imensa bola brilhava na areia e nos rostos criando um tom alaranjado que contrastava como fogo contra o céu azul escuro. O vento era forte e, por conta de a região ser tão seca, mesmo no auge do verão, ficava frio. Com os arredores escurecendo, sem nenhuma luz elétrica num raio de quilômetros, parecia que a terra estava absorvendo a claridade e o calor do dia e oferecendo em troca um visual lunar mas fresco e uma paz parecida com a de Trancoso de dois anos atrás.

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Numa noite especial, o pessoal em volta me pediu para tocar violão. Corri para a barraca e o peguei. Quando voltei, clima ficou tão bom que todos se levantaram e fomos juntos para um campo logo atrás da duna. Lá, o pessoal abriu um círculo ao meu redor e saí tocando. Aquela roda de umas trinta pessoas cantando e dançando em torno de mim sob o luar e as estrelas foi um momento de redenção e de promessa para as ansiedades que assolavam a todos.

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Conforme fui relaxando e deixando a energia positiva tomar conta, minha sorte com o sexo oposto começou a mudar. Houve um momento maravilhoso, daqueles com que um cara comum pode apenas sonhar. Estava em um bar com um amigo de São Paulo, quando percebi uma loura linda de olhos verdes e pele bronzeada olhando para mim.

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Tomei coragem e me aproximei. “Oi gata, que olhos lindos.” 

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Ela deu uma risada provocante. “Obrigada, me deixaste sem graça agora, nem sei o que dizer.”

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“Se você não tem nada a dizer, vamos comigo até a praia dar uma olhada no visual?”

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Ela aceitou aquele convite à queima roupa e saímos de mãos dadas pela trilha que descia a falésia. Nos deitamos com as ondas tocando nossos pés. Não precisei falar muito. Quando a encarei, ela me retribuiu com um olhar mágico. Ficamos namorando por um tempão, nos aconchegando um ao outro sob a luz da lua.

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Tinha gente passeando por ali e sussurrei: “Quer vir comigo para um lugar mais tranquilo?” Ela não falou nada, mas me deu a mão e nos levantamos.

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Fomos para uma casa em construção onde adivinhem quem estava acampando? Os gaúchos da Praia do Francês. Quando chegamos, vi que tinham saído. Deviam ter ido para a farra. Achamos um quarto com porta e com a janela ainda por fazer que parecia desocupado. Assim que nos acomodamos, fiquei sem falar nada, viajando em sua absoluta beleza e em seu cheiro delicioso. Depois da pausa, começamos a sentir a pele um do outro e amor veio furioso num furacão de prazer. Quando acabamos, ficamos deitados abraçados absorvendo o que tinha acontecido e apreciando a noite sem nuvens. O vento sobre a vegetação seca do lado de fora, o barulho dos grãos de areia batendo na parede e a luz da lua entrando pela janela, eram como um sonho. De repente, senti algo que quase não me lembrava que existia: a sensação de estar em paz com o mundo.

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