

CAPÍTULO 28

Foto: Pinterest (dominio publico)
"Todo dia o sol levanta
E a gente canta
Ao sol de todo dia".
Caetano Veloso - Canto Para o Povo de um Lugar
O próximo destino era João Pessoa, capital da Paraíba. Dessa vez deixamos as caronas de lado e resolvemos ir de trem. Tinha uma linha que entrava pelo sertão à dentro que era quase de graça. O passeio nos permitiria conhecer, mesmo que de relance, essa região tornada famosa em verso, prosa e música. Dada a escassez de ferrovias no Brasil isso era uma viagem única e imperdível.
Depois de saciar a fome e de dar uma volta por Maceió, fomos para a estação com os gaúchos, que tinham gostado da ideia e tinham resolvido se juntar. Assim que pusemos os pés dentro do terminal, ​causamos uma comoção. Para os locais, era como presenciar a entrada de uma versão moderna da gangue de Pat Garrett e Billy the Kid ou de uma banda de rock recém-saída do inferno. Só faltava a câmera lenta e a música de filmes de faroeste ao fundo. Sob olhares constantes e mal disfarçados, compramos passagens para o próximo trem que sairia dentro de uma hora. Sem mais nada para fazer, ficamos vagando pela estação, achando graça do pessoal boquiaberto.
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Achamos um vagão vazio e tomamos posse. Depois que o trem partiu, ficamos vendo pelas janelas, a paisagem se tornando muito diferente das que tínhamos visto até então pelo Nordeste afora. Quando o verde litorâneo se distanciou, primeiro veio o cerrado com sua vegetação densa, porém seca e espinhosa e uma meia hora depois entramos na aridez do sertão.
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Essa região semidesértica era a mais pobre e atrasada do Brasil, a ponto de ser apontada por estudiosos na época como a região mais semelhante à Europa medieval no mundo. Nela, o povo profundamente católico e supersticioso tinha um relacionamento semifeudal com os donos da terra. A cultura era machista ao extremo e havia um altíssimo grau de analfabetismo. Mesmo sabendo que não interagiríamos com o povo lá fora, só o fato de estar ali, influenciou nosso estado de espírito. Ficamos em silêncio absorvendo os vilarejos que passavam, a vegetação rala e o ar quente do outro lado do vidro.
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As estações dilapidadas onde parávamos pareciam remanescentes de uma promessa nunca cumprida de prosperidade. Quando o trem chegava, uma pequena multidão aglomerava nas janelas para vender todo tipo de coisa, desde garrafas d'água de plástico até animais silvestres. Em todo lugar, o trem era o maior evento do dia e nós – os cabeludos – o destaque. O povo se amontoava apontando para nós, rindo como se fossemos uma banda de rock de gays drogados.
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Algumas vezes faziam piadas sobre nós.“O sulista! Isso aí é cabelo de homem?” A meninada ria.
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“Por que, bonitão? Quer que o teu macho fique gato como eu?” A meninada ria mais ainda, mas alguns não gostavam e ameaçavam jogar coisas.
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Atrás das plataformas, mercados mambembes alojavam lojas de roupas baratas, botequins, açougues malcheirosos e lojas de discos tocando alto músicas que davam arrepios na gente de tão brega que eram. Homens andavam a cavalo pelas ruas de terra batida entre carros enferrujados, jumentos sonolentos e cães magrelos. Por todo lado crianças descalças corriam sob o sol escaldante. Era um outro Brasil.
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A paisagem árida e desolada fora das cidadezinhas, lembrava as de faroestes italianos. Os habitantes, porém, não eram camponeses mexicanos, mas uma mistura de descendentes de índios, brancos e africanos vivendo em casebres de barro com cobertura de palha. Seus pequenos lotes de terra lutavam para parecer fazendas naquele calor insuportável. As plantações eram mínimas e o gado era magro de se poder contar as costelas.
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A locomotiva e os vagões eram azuis e antigos. Nas últimas, pareciam em harmonia com o que nos cercava. Por conta do horror dos outros passageiros em compartilhar seus assentos com gente “do demo", ficamos sozinhos durante a viagem inteira. Vez por outra, funcionários entravam para conferir o que estávamos fazendo, gerando um silêncio hostil. Claro que, apesar da vigilância apertada, conseguimos fumar nosso veneno com as cabeças para fora das janelas. Isso fez com que, apesar da extrema pobreza passando do lado de fora e do clima tenso do lado de dentro, todos viajassem na "viagem".
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No Rio, “paraíba” era o termo pejorativo dado aos membros do seu enorme contingente de nordestinos, sem distinção de onde vinham. Eles preenchiam o papel que mexicanos exercem nos Estados Unidos, árabes na França e paquistaneses no Reino Unido. Igual aos preconceituosos dos países ricos, os preconceituosos cariocas tinham sentimentos contraditórios em relação ao Nordestinos. Junto com o fascínio pela sua cultura e a admiração pelas suas belezas naturais, vinha a rejeição dos seus imigrantes pobres.
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Quando o trem chegou em João Pessoa, a capital da Paraíba, descobrimos que, contrariando os rótulos, a cidade tinha – pelo menos arquitetonicamente - uma sofisticação clássica que comparava com a do Rio. Suas construções bem conservadas do século dezenove e suas avenidas elegantes delimitadas por árvores exuberantes com postes de luz de estilo antigo, faziam a cidade muito charmosa.
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Porém, o principal motivo de estarmos contentes por estar ali era que uma amiga da faculdade, Francesca, estava passando as férias na cidade com sua família Paraibana. Como muitos outros membros da elite local, ela era descendente de italianos. Loura de olhos azuis, era deslumbrante, a ponto de uma revista carioca a ter elegido como a musa daquele verão. Apesar disto, o seu atributo mais atraente era seu espírito de moleque e a gente se dava muito bem.
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Dessa vez iriamos ficar na casa do estudante universitário. Nos despedimos dos gaúchos, achamos a casa onde depois de mostrarmos as carteiras da universidade, quase sem acreditar, fomos admitidos e nos instalamos num dos quartos. Ligamos para nossa amiga assim que achamos um telefone pago naquele casarão antigo.
“Richard! Pedro! Seus malucos!!! Como que vocês chegaram até aqui!!?? De carona de caminhão?? Pegaram o trem pelo sertão?! Hahahaha! Vocês são muito loucos!”
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Depois das piadas e de contar alguns “causos”, fui à pergunta inevitável: “E aí, Francesca? Vamos se encontrar?”
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“Claro!!” Daí ela cochichou baixinho: “Mas nada de pãpãpã porque o pessoal daqui é caretasso!!”
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“Beleza, claro que não, só que você vai perder o veneno que trouxemos de Maceió.”
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Ela deu uma risada. “Vocês tão aonde?”
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“Na casa do estudante universitário, conhece?”
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“Claro! Daqui a pouco tô passando aí!”
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Receando que fôssemos constrangê-la junto a sua família endinheirada, nos vestimos da melhor maneira possível. Na falta de outra opção, colocamos umas roupas ripongas metidas a chique compradas em Salvador. Não demorou muito e ela chegou com dois primos, ambos educadíssimos, vestidos em trajes sociais esportivos, cabelo curto e amparado, com certeza membros eminentes da elite local. Após as apresentações, fomos conhecer João Pessoa num carro novo e com ar-condicionado. Depois, nos convidaram para jantar num restaurante fino. Apesar de nos tratarem com o devido respeito a estudantes de Economia da UFRJ e de nos termos esforçado o máximo para fazer nossa amiga aparecer bem na foto, foi um jantar estranho.
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Não teve noitada nem nada. A social acabou ali, com eles fazendo questão de pagar a conta da peixada, por sinal maravilhosa. Diferente do jantar bizarro com dupla de mergulhadores em Vitória e suas "amigas", não havia nenhum interesse escuso na sua generosidade. Mesmo assim, descobriríamos mais tarde, entre risadas, que nos confundiram com um casal gay. Não era para menos: nossos esforços para sermos educados nossas batas neo-hippies, as calças floridas e soltas, jamais poderiam ser classificadas como coisa de macho em qualquer cidade do mundo em qualquer tempo da história.
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Na realidade, mesmo com a impressão errada, tinha esperanças de, quem sabe, engatar uma aventura de verão com a Francesca. Apesar de ter um namorado no Rio, sempre rolava um clima nas matadas de aula nos jardins da faculdade. Entretanto, com a família dela por perto - e eu parecendo um extraterrestre - as chances de que algo acontecesse eram zero.
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Além da inacessibilidade da Francesca e da elegante arquitetura de João Pessoa, não havia muito o que nos atraísse ou nos prendesse lá. Decepcionados, depois de três dias, seguimos rumo ao norte, para Fortaleza, a capital do estado do Ceará, onde ficaríamos com um tio de Pedro.
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