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Image by Annie Spratt
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Foto: autor desconhecido

Na manhã seguinte, saímos rumo às praias de cartão-postal de Maceió, nas Alagoas. Suas águas cristalinas e seus coqueirais estendidos ao longo da costa inteira cairiam bem depois de Aracaju.

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Seguindo uma recomendação que nos deram ainda no Rio, passamos direto por Maceió e fomos para a Praia do Francês, a uma meia hora e pouco da cidade. Chegamos num fim de tarde ensolarado e ficamos encantados com a beleza do lugar. O pessoal de fora era diferente de tudo o que tínhamos visto até então; garotas e garotos bronzeados, saudáveis e com ares de surfista, todos relaxados, num astral ótimo e muito diferente daquele que havia feito de Arraial d’Ajuda uma decepção.

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A experiência já havia ensinado que a primeira coisa a se resolver era achar um lugar para ficar. Perguntamos por ali e o dono da venda da aldeia nos falou de uma construção. “Tão construindo uma casa lá no final da praia. Os obreiros só vão voltar em março. Já tem uns cabeludos acampando lá. Acho que deve ter lugar para vocês.”

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Fomos lá. A base da obra já estava pronta, mas estava coberta só por um teto de palha mal-acabado. Conforme o dono da venda tinha dito, havia um grupo de seis ou sete mochileiros já acampados lá. Fomos falar com eles.

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“Fala aê, beleza?”

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“Beleza!" respondeu o mais velho, um cara de cabelo crespo, brinco na orelha e cavanhaque.

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“Tamo chegando aqui e a gente queria saber se dava para acampar num canto.”

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“Sem problemas, tchê. Se vocês não tiverem problemas com gaúchos podem ficar à vontade.” O sotaque e a maneira cantada de falar não podiam ser mais típicos.

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Agradecemos, pedimos licença, montamos a barraca e depois fomos conversar com a moçada. Como não seria surpresa, estavam sentados em roda, bebendo chimarrão na sombra e apreciando o fim de dia.

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“Conhecem chimarrão? Querem provar um pouco?” O Pedro recusou. Eu que já tinha experimentado, até gostava, aceitei.

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“Isso não é para beber no frio?”

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O cara deu uma risada. “A gente bebe chimarrão até debaixo d’água, tchê.”

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Um outro, com uma cabeleira lisa que ia até debaixo do ombro, perguntou: “É a primeira vez de vocês aqui?”

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“É, a gente está viajando a costa e tamo indo até o Ceará, pelo menos esse é o plano. E vocês?”

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“Saímos de Porto Alegre há um mês e viemos de carona até aqui. Bá! É muito chão e em sete é tri-complicado.”

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A maioria era loiro, todos educadíssimos apesar do visual inconformista. Naquele calor, aquele monte de cabeludo me trouxe à memória as bandas de rock do sul dos Estados Unidos. O que havia nos dado as boas-vindas foi direto ao assunto.

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“Pois é, carioca, vocês fumam um, né?”

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“É, somos do clube.”

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“É o seguinte brother, a gente descobriu um plantador em Barra de São Miguel, uma cidadezinha perto daqui. A coisa é um veneno, tchê.”

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Um outro emendou: “Fomos lá para experimentar, e bááá! Voltamos tri-loucos!”

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Todos confirmaram que era “tri-bom”.

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O primeiro continuou: “Então, tchê, nós estamos fazendo uma vaquinha para comprar um peso. Se a gente juntar trezentas pilas compramos seiscentas gramas, faltam cinquenta, cês podem entrar?”

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“Sei lá. Tem um pouco aí para a gente experimentar?”

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O de cabelo até a cintura respondeu na hora: “Claro, tchê!”

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Um deles tirou um baseado do bolso, acendeu e passou para a gente. Como qualquer do bom, depois de duas baforadas deu para sentir a qualidade. Os caras estavam certos. A parada era “tri-boa”.

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Pelos cálculos, íamos ficar com quase cem gramas daquele veneno por um quarto do preço que custaria no Rio, uma oportunidade imperdível num lugar perfeito. Não pensamos duas vezes e concordamos. Raspamos o dinheiro escondido na mochila e entregamos. Na manhã seguinte, dois deles foram buscar a parada. Assim que voltaram, por volta das duas da tarde, foi uma fumelhança desatinada. 

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Quando larica bateu, caiu a ficha de que apesar do generoso estoque do bom, estávamos completamente lisos. Os gaúchos ficaram igual. A única possibilidade de a gente reabastecer os bolsos implicaria em uma ida de uma hora de ônibus até Maceió, de manhã cedo. O ônibus de volta só saía no final do dia. Praia boa e bagulho bom eram um convite à preguiça e ninguém estava disposto a perder um dia inteiro com aquilo. Do lado positivo, isso significaria um alívio para nossos bolsos rasos.

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A salvação alimentar foi um coqueiral imenso logo atrás do acampamento. Nem era preciso subir nas árvores, era só sair catando os côcos caídos no chão. Com eles, passamos uma semana inteira nos alimentando. No café e como sobremesa, comíamos a carne macia dos côcos mais verdes. Côcos mais maduros tinham a polpa mais grossa, mais nutritiva e eram o prato principal. A água deles saciava nossa sede e, também nutriente, ajudava a nos manter. Usávamos um facão da obra para abri-los e tínhamos que tomar cuidado para não acertarmos nosso dedo ou atingir os outros naquela chapação generalizada.

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A Praia do Francês é famosa por seu coral e pela sua vida marinha. Isto, e sua água limpa e transparente, rara no Nordeste, fazia com que houvesse um monte de visitantes do país inteiro mergulhando ali. Consegui uma máscara de mergulho e um tubo emprestados de um paulista que tinha virado entusiasta da nossa compra na Barra de São Miguel. Por conta da sua generosidade, passava os dias fazendo o que o Pedro fazia com seu pai. Navegar naquele mundo submerso de corais e peixes coloridos, respirando por um tubo sob a influência do veneno verde, era como explorar por algumas horas um outo planeta. Quando chegava o pôr do sol, me sentindo abençoado, saía em caminhadas ao longo do coqueiral. Levava a viola e seguia até encontrar um lugar protegido para tentar criar música enquanto a brisa do mar balançava as árvores numa coreografia estranha.

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Enquanto o Pedro não sabia por onde começar com o banquete de mulheres bonitas passando o verão ali, não demorou para que eu achasse outros músicos. O pessoal se reunia na cabana de uns argentinos gente boa. Se não estivesse mergulhando ou passeando no coqueiral, estava ali. Talvez devido a minha generosidade canábica, o som que a gente fazia era de qualidade. No Nordeste as levadas eram uma experiência especial. Talvez o ar seco e a latitude fizessem com que a vibração musical que na região fosse mais saariana e indígena. A qualidade do THC junto à desintoxicação alimentar forçada pela dieta à base de coco trouxeram inspiração. Com os outros devia ser parecido porque os espaços que abríamos para digressões inusitadas era de tirar o fôlego. Tocavamos direto no calor do dia e no vento frio da noite, como um bando de beduínos envoltos numa magia Sufi a beira mar.

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Quando ficava escuro, às vezes levávamos os instrumentos para a praia. Ali as sessões em torno das fogueiras que o pessoal acendia viravam apresentações para os outros veranistas. Eles adoravam o toque hippie às suas férias. Com vários instrumentistas bons envolvidos, a gente se recusava a tocar músicas conhecidas. Fazíamos improvisações que, pelo menos para nós, eram de altíssimo nível. Para os ouvintes parecia ser o mesmo, já que ninguém ia embora e, apesar do silêncio, dava para sentir um certo respeito e um astral especial no ar. As levadas começavam com algo fácil até alguém se inspirar e trazer o que estávamos fazendo para um lugar mais especial. Conforme o som ia evoluindo, voltávamos à frase inicial e ficávamos nela até que outro alçasse voo para novas alturas. A coisa fluía trazendo ritmos e texturas da redondeza à tona. A interação energética entre os músicos e os ouvintes gerava algo que parecia ter fugido de Trancoso e Ajuda para parar ali.

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Apesar das sessões fantásticas, depois de um tempo começamos a sentir um clima estranho naquele lugar que no início parecia um paraíso. Nos demos conta de que a Praia do Francês era, na verdade, um destino turístico mais de elite do que o sul da Bahia, onde nós, os outros músicos e os gaúchos do acampamento, éramos minoria. Inacreditavelmente, deparávamos com muita cara virada por não estarmos viajando com um carro do ano e dormindo em pousadas boas. Não pensamos muito sobre o assunto, mas de maneira inconsciente isso nos levou a ficar ali menos tempo do que gostaríamos.

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Levantamos acampamento junto com os gaúchos. Quando chegamos em Maceió, a primeira coisa que fizemos foi ir à cata de um caixa eletrônico, na época uma novidade não só no Brasil mas no mundo inteiro. Achamos um alojado numa cabine de vidro futurista, contrastante com a arquitetura colonial ao redor. Novamente com algum dinheiro no bolso, fomos aliviados a um pé sujo à beira da praia para desfrutar de uma refeição decente. O que pedimos foi o básico – arroz com feijão, farinha de mandioca, peixe frito e uma cerveja gelada para completar. Por mais simples que fosse, aquilo caiu como um manjar dos deuses depois de uma semana e pouco vivendo de côco.

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