

CAPÍTULO 27

Foto: Pinterest (dominio publico)
“...Até onde a gente chegar
Numa praça na beira do mar
Num pedaço de qualquer lugar.”
Geraldo Azevedo, Dia Branco
A próxima parada foi Aracaju, a capital de Sergipe. Apesar do nome bonito e de uma música inspirada do Caetano exaltando a cidade, o lugar não desceu bem. Chegamos à noite, e de cara pareceu uma cidadezinha de interior, sem charme, com ruas desertas e quase sem comércio. Nos deparamos com um povo reservado nos vendo como astronautas de um planeta estranho.
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Saímos perguntando onde ficava a praia da Coroa do Meio, um bairro indicado por um amigo em Salvador. Com esforço e paciência, conseguimos chegar no nosso destino. A única coisa positiva que aquele lugar sem graça parecia oferecer, era que dava para acampar na praia deserta. Quando acabamos de armar a barraca, já eram por volta das nove e meia da noite. Apesar da discreta elegância da vizinhança, tudo parecia fechado. Mesmo assim, a fome nos fez esquecer o risco de deixar as tralhas ali e fomos à cata de um lugar aberto. Achamos um bar às moscas de frente para a praia. Um garçom de uniforme sujo nos recebeu. Para agradar, nos colocou ao lado da única outra mesa ocupada onde duas mulheres, que pareciam ser de fora, estavam apreciando sua refeição.
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Elas sorriram e começamos a papear. Paulistas, eram pertencentes ao público-alvo de Pedro: trinta e poucos anos, cultas, bem de vida e interessadas em espiritualidade oriental. A comida e as cervejas vieram e, tentando disfarçar a fome entre garfadas e goles de cerveja, descobrimos que uma delas levava o Rajneesh tão a sério que tinha ido passar uma temporada no seu caríssimo Ashram no Oregon. Contamos o que estávamos fazendo ali e conquistamos a sua simpatia. Uma delas se engraçou tanto com o Pedro, que depois de pagarmos a conta, partiu com ele para a barraca a fim de empreender seu “caminho para a sabedoria”. Naquela altura, já havia me acostumado a ver ele se dando bem e levava minha desgraça com bom humor.
Embora a outra também fosse atraente, não rolou química nenhuma. Isso não impediu que fossemos dar um passeio pela praia onde matamos uma ponta generosa que tinha guardado. Tivemos um papo desconfortável e voltamos para o bar, mas depois de um tempo ela decidiu manter seu “eu interior” para si mesma e retornou ao hotel.
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Sozinho na noite desinteressante de Aracajú, fiquei esperando que liberassem a barraca. Como num filme surrealista, do nada, apareceu um grupo de lésbicas bêbadas que saiu debochando do garçom, falando um monte de besteiras, rindo alto na maior sarração e beijação. Certamente eram as únicas mulheres abertamente homossexuais no estado inteiro.
No meio da confusão surgiu um sujeito esquisito que se sentou na mesa ao lado, colocou os pés em outra cadeira e saiu puxando conversa.
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“Caralho, meu irmão! Fumei uma maconha boa pra caralho! tô viajando legal!" Ele virou para mim e perguntou. "E você? tá doidão também?”
Aquilo foi estranho. O bigode mexicano, os sapatos brilhantes e a camisa engomada para dentro da calça me diziam que pertencíamos a tribos diferentes. “Não, tô legal aqui, curtindo a noite.”
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“Porra! Eu quero ficar mais doidão ainda! Apresenta aê um do bom para a gente fumar!”
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“Desculpa, mas não fumo essa coisa.” Pela reação quase hostil, deu para ver que ali tinha problema.
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“Porra, cara! Senti que tu tem! Vai enrustir?” e deu uma risada forçada.
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Eu já tinha desmascarado o escroto, mas se era para entrar no seu joguinho resolvi sacanear. “Chapado como? Tipo um ferro quente? Não estou entendendo.”
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O cara insistiu. “Você é carioca, não é? Tou doido para experimentar a de lá, aperta um para a gente!”
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“Sou do Espírito Santo, amigo! Apertar o quê? Tem alguma coisa frouxa nessa mesa?” Dei uma balançada nela. “Não… Ela está firme. Não estou entendendo.”
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A conversa continuou até ele resolver sair, mas sem perder a pose. “Não vai apresentar, né brother? Tá bom, vou nessa.” Ele tirou o pé da mesa, ajeitou o cinto, arrumou a camisa e desceu do platô piscando para mim e mandando um sinal de legal.
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Depois que foi embora, o garçom veio falar comigo. “O senhor fez muito bem em não dar trela para aquele sujeito. Ele é capitão da polícia. Tava doido para morder uma grana.”
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“Eu percebi na hora. Obrigado.” Deu vontade de perguntar por que ele não tinha me avisado logo. Agora era fácil. De qualquer forma, continuei no bar, tentando me certificar que o policial tinha desaparecido.
Lá pelas tantas, o Pedro apareceu para me dizer que ia dormir no hotel. “Porra, Richard! Como é que tu não ficou com a outra? Tu não viu que ela tava dando mole?”
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Sem saber se ele estava me sacaneando ou não, respondi: “Tu não sabe que sou uma merda nisso?”
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Ele deu uma risada. “A minha falou que ela tinha gostado de você, mas que você não fez nada. Meu irmão, tu paga para vacilar!”
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Depois que ele partiu feliz da vida com sua paulista, fui dar uma volta na beira do mar e fiquei pensando naquilo. Desencanei logo e relaxei com o vento noturno, o céu aberto e o barulho das ondas. Depois de um tempo, tomei coragem e voltei para a barraca, ainda receoso que o bigodudo do bar tinha me seguido e fosse me acordar no meio da noite para me levar.
Entrei, deitei e deixei a porta da barraca aberta para ficar apreciando a noite gostosa la fora. Com o silêncio e a tranquilidade da natureza em volta, bateu uma paz ímpar. Com tanta coisa acontecendo, era fácil esquecer que estava naquela viagem para isso. Talvez se não existisse cidade, aquele lugar seria maravilhoso. E a paulista? Será que tinha me dado mole? Como seria transar com uma mulher mais velha? Com aquilo rodando na cabeça peguei no sono e dormi pesado.
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No dia seguinte, o Pedro veio me acordar cedo. Apesar do dia sem uma nuvem no céu, o sofrimento continuou: a praia era terrível, as pessoas não tinham atrativos e a comida era incomível. Era hora de voltar para a estrada.