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Image by Annie Spratt
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Foto: autor desconhecido

Como em todo o litoral brasileiro, a praia era o coração do verão soteropolitano. Assim como em todas as cidades por onde passamos no Nordeste, nas suas areias havia figuras há muito desaparecidas nas do Rio: vendedores de caranguejos carregando as criaturas ainda vivas, amarradas a um pedaço de pau, gente vendendo queijo coalho derretido na hora, carroças oferecendo sorvete caseiro e vendedores de abacaxi fatiado. Talvez o único diferencial da orla daquela capital eram as tradicionais baianas vendendo acarajé e outras delícias locais. Separando a linha da costa dos intermináveis calçadões, uma infinidade de quiosques de madeira cobertos de palha vendiam cerveja, água de coco e iguarias da cozinha baiana preparadas com frutos do mar da área.

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Na segunda visita a Salvador já conhecia as melhores; Piatã e Itapuã que eram enormes e lindíssima. O problema é que eram distantes demais. Por isso, adotamos o Porto da Barra que ficava do lado de onde estávamos. Localizada um pouco antes da saída da Baía de Todos os Santos, apesar de não ser oceânica, as correntes se encarregavam de deixar o mar limpo. Sua água calma e morna abrigava um grande número de pequenos barcos de pesca que ficavam ancorados em frente a davam um charme único ao lugar. De dia ficavam vazias e por isso podíamos nadar até eles, pular para dentro e desfrutar o privilégio descompromissado de relaxar flutuando sob o sol escaldante.

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A moçada que frequentava ali era parecida com a do Posto Nove, Todos em busca de curtição, música, amigos interessantes e, claro, sexo. Talvez até amor. Não demorou muito para conhecermos um pessoal local. Em Salvador, como em todo o Nordeste, a rapaziada gostava do status de andar com pessoas de fora e por isso convites para festas eram frequentes e sempre bem-vindos. 

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“Hoje à noite vai ter um som porreta na casa de Capilé. O lugar é massa; um casarão antigo na Ribeira. Peguem o endereço!”

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As festas eram excelentes, com gente jovem e bonita de todas as cores, muito riso e muito charme. Sendo os baianos poetas natos, havia muitas discussões coloridas e acaloradas acerca de cultura, música, política e filosofia. Havia também o atrativo, quase inconfessável, de oferecerem comida e bebida de graça e de não se importarem com gente passando a noite e dormindo nos cantos.

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Se você não tivesse a sorte de estar transando no banheiro – quando o Pedro sumia já sabia onde ele estava - o melhor lugar era sempre a cozinha, onde os convidados compartilhavam a animação com o dono da casa. Havia sempre um quarto ou uma varanda com pessoas reunidas em torno de um violonista de talento. A qualidade e a quantidade deles era impressionante. Nunca consegui entender como nunca alcançariam sucesso enquanto tantas bandas ruins estourariam no Rio e São Paulo nos anos 1980.

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Às vezes também tocava, mas logo percebi que para causar uma boa impressão tinha que me ater ao rock e ao reggae que ninguém se sentia à vontade para tocar por ser fácil demais. Um violeiro local passaria vergonha levando estilos tão mundanos depois de alguém tocar suas próprias composições ou de exalar talento interpretando uma de Caetano Veloso, Gilberto Gil e dos Novos Baianos. Sem poder competir com o que faziam de melhor, descobri que um carioca tocando Bob Marley, Jimi Hendrix, Pink Floyd e Rolling Stones em um inglês “legitimo” era uma novidade bem-vinda.

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A farra, a praia, conhecer pessoas novas, o charme dos lugares, tocar violão e as experiências amorosas, eram apenas um lado da nossa aventura de verão. Nosso meio de transporte, as caronas, eram um dos pontos altos da experiência. A rotina era sempre a mesma: chegar de ônibus até um posto de gasolina na rodovia e lá ir de caminhão em caminhão pedindo uma carona. Muitos dos motoristas mandavam a gente embora na hora, mas alguns apreciavam nossa companhia inofensiva e, talvez, interessante.

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A malha ferroviária brasileira era, e ainda é, quase inexistente e apesar de 80% da população do país viver perto ou junto à costa, ninguém parece ter tido a ideia de transportar mercadorias e passageiros por navio. Pelo contrário, quase todo o transporte entre as vastas distâncias era, e continua sendo, feito por estradas, motivo pelo qual havia um exército de motoristas de caminhão. Como qualquer outra categoria de trabalhadores brasileiros, eram explorados, dormindo muito pouco e viajando dias a fio pelas estradas malconservadas do país. Faziam isso correndo o risco de serem vítimas de assaltos e de policiais corruptos. Mesmo assim, os caminhoneiros que conhecemos eram pessoas espetaculares, possuidores de sua própria cultura e de um forte senso de camaradagem. Eles conheciam todas as curvas, saliências e buracos das estradas, bem como os bons e maus lugares em termos de segurança, comida, diversão e mulheres. Todos tinham grandes histórias para contar e as famosas namoradas, ou até mesmo famílias, em cada parada.

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Na maioria das vezes, íamos com o camioneiro na cabine. Normalmente havia uma cama de bom tamanho atrás do banco onde revezávamos nos cochilos. Outras vezes tínhamos que ir na carroceria, onde vivíamos a liberdade mágica da BR trazida pelo ar livre, pelo céu aberto, pelos barulhos e pelo vento. À noite, víamos os faróis passando voados, as luzes das cidades na distância e as estrelas cadentes cruzando o céu ou passando sobre as montanhas enluaradas. Durante o dia, o sol forte trazia o cheiro doce da cana-de-açúcar que vinha das plantações ao lado da estrada. 

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