

CAPÍTULO 26

Foto: Pinterest (dopminio publico)
“No Farol da Barra, o encontro é pouco
A conversa é curta,
tudo é tão rápido como se furta”
Novos Baianos - Farol da Barra
A próxima parada era Salvador. Lá, ficaríamos na casa de uma amiga, Rochelle, com quem tinha tido um caso em Mauá. Mignon e gata, seu jeito inocente e sua voz suave escondiam um lado selvagem e irresistível. O tom marrom da sua pele e suas feições possivelmente árabes a faziam parecer indiana. Por estar na moda, ela realçava o look usando vestidos soltos e batas. Seus cabelos escuros, longos e encaracolados nas pontas faziam o resto.
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Rochelle estava nos esperando num apartamento perto do Farol da Barra, a Ipanema de Salvador. O bairro tinha uma das praias mais bem frequentadas de cidade, o Porto da Barra, o Posto Nove de lá. O marco que dominava a área era o farol antigo na ponta da praia de onde se tinha uma vista panorâmica da enorme Baía de Todos os Santos. A rapaziada mais antenada ia ali para curtir o pôr do sol nas pedras beirando o mar. Atrás, havia um gramado enorme onde, durante o verão, aconteciam shows carnavalescos gratuitos que atraíam multidões. Aquele ponto nevrálgico de Salvador era a dois quarteirões de onde a gente ia ficar.
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Depois de um dia inteiro pulando de caminhão em caminhão, o endereço perfeito não era o único motivo de estar doido para chegar. Além de nos vermos livres dos mosquitos, teríamos o luxo de um banheiro decente, camas de verdade e ar-condicionado. Para mim, ainda havia a certeza de poder reviver o romance e passar noites em companhia feminina para aliviar os tempos difíceis de Trancoso.
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Só que quando batemos na porta, não foi a Rochelle quem atendeu, foi um francês novinho com jeito de almofadinha.
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“Sim, posso ajudarr em alguma coisa?”
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Não acreditei, tinha conferido o endereço várias vezes com ela antes de sair do Rio e nenhum francês havia sido mencionado. Por outro lado, a conhecia o suficiente bem para saber que de jeito nenhum estaria morando com um estrangeiro em Salvador.
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Decepcionado respondi: “Desculpa, devo ter batido na porta errada.”
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Antes dele fechar a porta e de aceitar que a danada tinha me dado o endereço errado de propósito, cocei a cabeça e, por via das dúvidas, perguntei: “Por acaso você sabe se no prédio tem uma garota carioca com cara de indiana, baixinha? O nome dela é Rochelle. Talvez seja uma vizinha.”
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“Ah, a Rochelle!” Ele me corrigiu com o sotaque “certo”. “Si, ela é a irrmã da Bebelle, minha namorrada, está morrando com a gente.”
Ele abriu a porta um pouco mais, mediu a gente dos pés à cabeça e sem parecer muito impressionado, perguntou: “Ella está no quarrto, quem devo anunciarr?”
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Me segurando para não corrigir a pronúncia de Bebel, respondi: “Rique, um amigo do Rio, este é Pedro meu camarada de carona.”
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“Un momento.”
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Ele fechou a porta na nossa cara sem cerimônia. No corredor, a gente ficou olhando um para a cara do outro sem saber se caía na gargalhada ou se chorava. Nem foi preciso dizer que a gente tinha achado o cara um babaca. Digerindo o ocorrido em silêncio, ouvimos o francês bater numa porta. “Rochelle!! Teim uns carras do Rio lá forra parra falarr com você.”
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Demorou um pouco, a porta se abriu e a gente ouviu a Rochelle responder com voz de sono: “Quem era?"
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“Um deles falou que erra teu amigo, Rique.”
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A gente ouviu os passos dela chegando e quando abriu porta, lá estava ela com o cabelo desarrumado pela soneca me dando um sorriso amarelo. Ela perguntou para o francês, Alain, se a gente podia entrar.
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“Clarro, clarro, por favorr, podein entrrar.”
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O ar-condicionado na sala estava uma delícia e fazia tempo que a gente não se sentava num sofá tão confortável. O apartamento era muito bem arrumado com uma decoração afrobaiana de bom gosto. Depois de reparar na sua elegância, voltamos a prestar atenção no Alain. “A Bebelle foi darr uma volta com umas amigas. Posso oferecerr uma cerrveja? Vinho?”
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Fomos de cerveja, mas ela não desfez o desconforto. Estava na cara que não tinha lugar para a gente naquele sala e dois quartos apertadíssimo. Pela porta aberta, dava para ver que o quarto da Rochelle era mínimo. Mesmo se estivesse sozinho, duvido muito que ele tivesse liberado. Assim que ficou claro o motivo da nossa visita, ele falou na hora que não dava, e entendemos. Do nosso lado, pelo menos eu não estava com a menor vontade de encarar a frescurada que devia rolar ali. Contudo, nosso não anfitrião se mostrou mais gente boa que o esperado.
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“Se vocês quiserrem, non vejo prroblema em vocês deixarrem as coisas aqui.” Vendo a decepção ainda estampada nas nossas caras, foi mais adiante. “Podem até vir tomarr banho e cozinharr. Mas vocês eston vendo; o aparrtamento é pequeno demais parra cinco pessoas. Desculpe.”
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Depois de um papo forçado no qual nos seguramos para poupar a Rochelle, que não parecia estar muito aí, aceitamos deixar as coisas no apartamento. Agradecemos e descemos para explorar a área e ver onde a gente podia acampar ali por perto. Ficou claro que a única maneira para continuar naquele lugar privilegiado, perto da moleza de ter um chuveiro, uma latrina limpa e um lugar para cozinhar, era dormir no palco que tinham montado para o carnaval.
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Apesar de ser uma boa ideia, por ser o auge do verão, havia shows quase todas as noites ali, o que significava que teríamos que esperar até que todos fossem embora para podermos subir no palco e passar a noite.
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Foi isso que fizemos. Depois de tomarmos um banho gostoso e de jantar com o Alain e irmãs, ficamos esperando o lugar esvaziar. Quando a barulheira parou por volta das duas da manhã, fomos lá, desenrolamos os sacos de dormir no piso de madeira e, cansados do dia longo e maluco, caímos no sono instantaneamente. Horas mais tarde, para nossa apreensão, descobrimos que não estávamos sós; havia uns mendigos dormindo embaixo do palco. Nunca interagimos, a não ser numa manhã quando vimos um deles, visivelmente de ressaca, saindo para praticar a rotina de ginástica mais esdrúxula que tínhamos visto na vida.
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A solução acabou sendo melhor que o esperado. O lugar se revelou seguro, retivemos as mordomias do apartamento e continuamos num dos melhores pontos da cidade. Talvez por não ter conseguido ficar zangado com a Rochelle, dei fim ao jejum que estava me incomodando. No mais, as pessoas achavam graça quando a gente explicava onde estava dormindo, o que ajudava a quebrar o gelo nas conversas.
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No início dos anos oitenta a era do trio elétrico estava caindo na obsolescência e abrindo espaço para novos gêneros de músicas de carnaval. Nos bairros populares, o reggae havia tocado, corações e mentes na comunidade culturalmente dominante na cidade: a afrodescendente. Nela - com a ajuda de Jimi Cliff, uma estrela do reggae agora radicado em Salvador - uma forma nova e adaptada de se tocar o ritmo jamaicano tinha surgido misturando o samba e o reggae, o samba-reggae. Esse gênero dominava a cidade e onde quer que passássemos: quiosques, vendas, carrinhos ambulantes e bancas de jornal tocavam essa música alto para que todos pudessem ouvir, seja em rádios ou em toca-fitas.
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O maior expoente do gênero era o Olodum, uma banda do Pelourinho, o bairro mais antigo de todo o país e um ícone da cultura afro-brasileira. Ao contrário do que acontecia em outras cidades pelo mundo onde casarões históricos eram atualmente habitados por suas elites econômicas, agora, os moradores eram os descendentes dos escravos que recebiam castigos cruéis naquela praça. A UNESCO acabaria tombando a área como patrimônio histórico mundial em 1985. O Olodum, oriundo do bairro, galvanizava com orgulho essa herança africana em forma de música. A inovação, a qualidade e a energia eram tantas que a banda ganharia atenção internacional ao gravar com Paul Simon e Michael Jackson.
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Na outra extremidade do espectro social, havia a novidade musical de bandas voltadas para o público branco e privilegiado. Usando teclados eletrônicos, caminhões futurísticos, aparelhagem de última geração e dançarinos performáticos, tentavam reinventar o trio elétrico. Elas faziam parte de blocos pagos nos quais aquele pessoal se isolava do povão e das suas brigas. Sua música era uma mistura dolorosa de salsa, soca e outros ritmos caribenhos. Fiquei aliviado ao saber que o Trio Elétrico de Dodô e Osmar e blocos afro tradicionais como o Ilê Aye e o Filhos de Gandhi ainda estivessem ativos. Tivemos a oportunidade de vê-los juntamente com o Olodum em eventos pré-Carnavalescos. Só que em nenhum momento senti algo que chegasse aos pés do encontro dos trios que tinha presenciado quando fui com o Maurício.
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