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Image by Annie Spratt
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Foto: autor desconhecido

Já na primeira ida ao Sul da Bahia, dava para ver que quem passava o verão em Porto Seguro eram turistas convencionais do Brasil inteiro. Esse não era o nosso caso; estávamos ali para nos juntar à malucada que ia a Ajuda e Trancoso, por isso no dia seguinte levantamos acampamento. Porém, a volta a Shangri-la foi decepcionante. O lugar estava abarrotado. A temida luz elétrica já havia chegado e, agora com uma balsa melhor, havia carros estacionados por tudo quanto é canto. Para o público endinheirado havia pousadas, bares e restaurantes requintados. Para o resto dos visitantes, as opções eram ou acampar no meio de um monte de outras barracas ou dividir um quarto cheio de desconhecidos. A inflação de vinte por cento ao mês tinha chegado lá também e tudo estava caro. Cheguei a perguntar por pescadores que conhecia e descobri, com tristeza, que a maioria tinha deixado o vilarejo depois de vender seus barcos e suas casas muito provavelmente a preço de banana.

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Não era só o excesso de exploração turística que estava ofendendo a santidade do lugar, era o tipo de gente que agora se via ali. O mais difícil de engolir era o monte de cortes de cabelo estilo anos oitenta e a maquiagem gótica de muitos dos presentes - e até mesmo de alguns jovens da terra. Aquela energia não era compatível com o Sul da Bahia. Queria distância da maioria daquelas pessoas e o sentimento parecia mútuo.

 

Para piorar as coisas, comecei a reparar que a agenda do Pedro era a de se enturmar com gente “interessante”, leia-se abonada, porém "cabeça". Essa turma era mais velha e com vidas estáveis, geralmente ligada às artes e à neo-sofisticação mística-zen em voga que se traduzia em uma vida alternativa amparada por muitos produtos refinados a preços salgados. No geral, estavam fazendo o mesmo circuito que a gente, só que de carro e parando em pousadas voltadas para eles.

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Este grupo se encontrava no topo da nova hierarquia do Arrail d'Ajuda. Igual ao que o Gabeira tinha feito a dois verões passados, se isolavam em praias afastadas e eram tratados como melhores pelos locais por terem mais dinheiro. Pedro mergulhou de cabeça nesse meio, achando que seria uma porta de entrada para um mundo de conforto financeiro e de sucesso profissional. Não que tivesse qualquer coisa contra aquela turma, cada um na sua, mas amizades por interesse não faziam parte da minha viagem.

 

À noite, com todos relaxados pelos dias mágicos que aquelas praias maravilhosas ofereciam, as pessoas se juntavam em rodas de violão num espírito mais comunal, não se importando em que pousada, barraca ou quarto apertado passariam a noite. Afinal de contas, esse sentimento era o motivo pelo qual todos estavam ali. Nessas horas, ficava claro que o que aqueles urbanóides procuravam, era uma experiência parecida com a que eu tinha tido na primeira vez, só que aquela energia já tinha alçado voo.

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Mesmo naquele vazio espiritual, com esforço e sinceridade dava para dava para trazer de volta o espírito da região pela via musical. Naquele segundo verão em Ajuda, já tocava fazia cinco anos. Tinha melhorado a técnica e tinha incluído um monte de canções e estilos novos no repertório. Também tinha desenvolvido manhas para cativar ouvintes nas rodas e festinhas da escola e agora da faculdade. Quando um pessoal se juntava a volta, era com o maior prazer que saia tocando pela noite à fora. Aquela troca de energia entre quem tocava e quem ouvia parecia a razão por eu estar ali. Não só por atender minha necessidade de sanidade existencial, mas por uma questão karmica maior envolvendo todos os presentes.

 

Mesmo com alguns restaurantes estarem contratando músicos amplificados para fazer fundos musicais robóticos, sessões na praia, onde a luz elétrica ainda não tinha chegado, atraíam bastante gente. Quando descia lá, era comum encontrar um ou outro músico já fazendo um som. A gente se juntava e saía tocando enquanto o pessoal ia se chegando. Se rolasse o clima certo, saía cantando.

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Começava com músicas mais intimistas e psicodélicas como Terra, de Caetano Veloso, Caravana, de Geraldo Azevedo e Chão de Giz, de Zé Ramalho. Conforme a atenção ia aumentando, tocava algumas do Milton Nascimento, do Beto Guedes, dos Secos e Molhados, do Fagner e do Belchior. Depois de estabelecer o clima, introduzia clássicos da bossa nova como Wave e Garota de Ipanema. Depois' quebrava a suavidade engrenando numa parte mais ritmada: músicas dos Novos Baianos e do Djavan, João Bosco forrós de Luiz Gonzaga, algum rock nacional da Rita Lee, Jorge Mautner ou do Raul Seixas. Quando sentia animação e gente cantando junto, partia para sucessos do Gilberto Gil e do Caetano Veloso. Com todos em clima de festa, mandava canções carnavalescas de Alceu Valença e de Moraes Moreira e fechava a noite com Jorge Ben.

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Havia vários outros violeiros na área. Muitas vezes, não era eu no volante e quando isso ocorria fazia o melhor para adicionar lenha na fogueira. Quando a música decolava, dava alegria ver o ar clarear e sentir Ajuda voltando a ser Ajuda, as pessoas sendo maiores do que negatividade ao redor, celebrando o céu estrelado e a natureza dentro e fora delas.

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Nem todos apreciavam a experiência. Violeiros acústicos eram considerados ultrapassados e até detestáveis, pelos mochileiros heavy metal e pela legião de góticos circulando pelo vilarejo e acampados no mesmo terreno baldio onde outrora tinha dividido a cabana com as brasilienses. Por todo lado havia gente agressiva, ninguém se conhecia direito e mesmo o pessoal da terra estava antipático e dinheirista. Nos fins de semana gente das cidades vizinhas chegava de carro e, para se mostrar, ligavam o som nas alturas com um repertório para lá de brega. Trocar Ipanema por aquilo não fazia sentido e queria ir embora.

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Não era possível que Trancoso fosse ser tão decepcionante. A eletricidade ainda não tinha chegado lá e o acesso continuava difícil. Mesmo se esbaldando na enturmação com o monte de gente "interessante" passando o verão em Ajuda, Pedro também estava de saco cheio de ser tratado como turista e de lidar com gente mal-encarada. Foi fácil convencê-lo de que se trocássemos de vila, a experiência seria mais autêntica, mais em conta e haveria um número igual, ou talvez maior, de pessoas “expressivas” para conhecer.

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Dessa vez não foi necessário cruzar rios fundos no meio do nada e no escuro para dormir num barraco remoto, afinal tínhamos uma barraca que montamos num canto do quadrado assim que chegamos. Contudo, as coisas haviam mudado em Trancoso também. Não encontrei ninguém conhecido. Mesmo Seu Manuel, o dono do bar, tinha sido substituído por um sujeito sisudo e antipático de Eunápolis.

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A introdução à nova realidade veio logo na primeira noite. Estava dormindo e o Pedro me cutucou: “Aê, Rique, tu ouviu isso? ”

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Confuso e meio puto por ter sido acordado perguntei: “O que?”

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Ele sussurrou: “Tem alguém mexendo nas nossas paradas lá fora.” Fiquei alerta na hora. “Shhh, abre a barraca quietinho e vamos pegar esse merda agora.”

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Ele se agachou na porta da barraca, segurei no zíper e abri o mais rápido e mais silencioso possível, só que o cara ouviu, tomou um susto e saiu correndo. Quando saímos já era tarde demais. O louro falso, de cabelos encaracolados e de shorts já estava longe, correndo sob a luz da lua.

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O Pedro ainda gritou: “Volta aqui, ladrão filho da puta!”

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A gente tinha guardado as carteiras dentro da barraca por precaução. De qualquer forma, fomos checar as mochilas e foi um alívio ver que ainda estava tudo lá lá, só que a ilusão de estarmos num paraíso evaporou-se. No dia seguinte, vimos o ladrãozinho na praia, todo enturmado, jogando vôlei com a moçada. Como não podíamos provar nada, a única coisa ao nosso alcance foi ficar encarando o bostinha com a cara fechada, o que ele fingiu ignorar.

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Tomar cuidado para não roubarem nossas coisas não foi a única lição naquela noite. Quando começou a clarear me dei conta que os mosquitos de Trancoso usavam as barracas dos campistas como centros de convenções. A claridade revelou um tapete deles cobrindo as paredes de nylon. Da outra vez, não tinha sido assim no barraco arejado, devia ser o abafado quente que os atraía. Depois de ver aquilo, não deu para voltar a dormir ali dentro. A única maneira de conseguirmos algum alívio foi sair com o saco de dormir, se deitar na sombra de uma casa e deixar o vento os levasse. Isso virou rotina.

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Ao contrário de mim, um vara pau desengonçado com cara de viajandão, em quem se podia contar as costelas, Pedro tinha o corpo de um jogador de polo aquático. Com olhos pequenos e maliciosos, voz grave, pele cor de caramelo e cabelos encaracolados meio louros, ele fazia sucesso com o sexo oposto. Com um talento natural para aquilo, era supertranquilo, ia direto ao ponto e sabia as palavras certas e a hora certa de dizê-las.

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Depois de uma semana e pouco de Trancoso, os insetos e os ladrões não eram as únicas coisas me incomodando: minha falta de sucesso com as mulheres comparada com os triunfos dele estava difícil de digerir.

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À noite, enquanto ele se dava bem, quando não estava tocando e todos estavam se divertindo perto de fogueiras, a seriedade da minha situação fora dali me invadia. Como seria o futuro naquela faculdade que não era para mim? E a crise econômica cada vez pior junto com a idade do meu pai avançando? Onde estava a namorada que se importava comigo e que gostava das mesmas coisas que eu? O quanto as coisas teriam que piorar até que elas começassem a melhorar? Se é que iriam.

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Me sentia como se tivesse alcançado o topo de uma montanha em meio a uma linda paisagem, para descobrir que do outro lado havia um depósito de lixo. Aqueles problemas eram como a parede de mosquitos na barraca: podia espantá-los temporariamente, mas eles voltariam, não importa o que fizesse.

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Muitas pessoas de classe média estavam na mesma situação. Minha geração, órfã da prosperidade e da ideologia libertária e igualitária dos anos setenta, estava desprotegida e despreparada frente ao choque econômico. Alguns nos viam como um nicho de mercado. Um destes era Rajneesh, atualmente Osho, um guru indiano radicado nos Estados Unidos. Criador de uma seita mundial, misturando psicologia ocidental com filosofias orientais, ele pregava que o caminho para a iluminação espiritual era pela aniquilação do ego por meio da exaustão da exaustão da libido. Sexo e loucura para atingir a paz soava estranho se levássemos em conta o conservadorismo da sociedade hindú. A nova leva de urbanóides em Trancoso só falava dele, havia inclusive vários iniciados e iniciadas usando camisas/uniformes laranjas e carregando um colar de contas com a sua foto.

 

Mais tarde, cheguei a ler alguns dos seus livros. Eram tão bem escritos que davam vontade de participar – principalmente porque havia muitas saniasins gostosíssimas – mas o preço exorbitante dos encontros e das estadias nos seus ashrams me convenceu a ficar de fora.  Havia paralelos entre a filosofia do mestre indiano com o discurso do Gabeira. Os dois pregavam mudanças individuais pelo uso do corpo. A diferença era que o ex-exilado estava interessado em se promover como autor e como político enquanto a seita era voltada para tirar dinheiro dos seguidores. Encontramos pessoas que tinham chegado a conhecer Rajneesh, ou o Bagwan, pessoalmente no seu centro gigantesco no estado do Oregon, nos Estados Unidos, um caro privilégio. Elas falavam em cair aos prantos ao ver seu olhar “penetrante e amoroso” que havia “libertado suas almas”.

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As praias de Trancoso continuavam maravilhosas, bem mais tranquilas e vazias do que as de Ajuda. Igual ao que tinha acontecido na minha ida anterior, passávamos os dias sentados ali no sol conversando, olhando para o horizonte e curtindo a brisa suave nos refrescando e balançando as árvores logo atrás. Num flagrante contraste com minha primeira visita, ao invés de falar das maravilhas do aqui e agora, o assunto principal eram os livros e as terapias tântricas daquele guru. Nas cabeças daquelas pessoas ele era o único que, por uma quantia fixa, podia deixá-los em um estado de paz semelhante ao que tinha sentido apenas por estar presente ali há dois verões atrás. Para começar um quebra-pau ou se tornar impopular, era só lembrar que ele estava nadando em dinheiro em outro país, sendo conduzido de Rolls Royce no seu ashram dando tchauzinho para seus seguidores que pagavam uma pequena fortuna para estar ali.

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Eu ficava na minha, pensando que esse era “o” produto que todos queriam: alcançar iluminação espiritual e se desligar da realidade num orgasmo infinito. Isso não era novidade; vender ficções reconfortantes como refúgio de realidades hostis já eram - e ainda são - o que as grandes religiões tem oferecido há séculos. Já tinha problemas suficientes com a minha para brigar com os outros por causa disso.

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Era compreensível que em um lugar com Trancoso, ninguém quisesse falar sobre suas angústias naqueles tempos difíceis. Mas, para que o Rajneesh? Meu instinto me dizia que os infortúnios estavam além do nosso controle, da mesma forma que as bênçãos que havíamos recebidos nos bons tempos. Tínhamos o poder de decidir como reagir aos contratempos, mas nenhum guru ou pílula mágica poderia abrandar o que o destino tinha guardado para nós. Podíamos tentar transformar a realidade. Deixar a realidade nos transformar em rebanho alheio? Para mim, nunca!

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