

CAPÍTULO 25

Foto: Pinterest (dopminio publico)
O barulho dos carros em alta velocidade indo em direção à Bahia sob o sol quente, nos trouxe de volta ao que estávamos fazendo ali. Tínhamos dois meses de aventura pela frente e depois daquela noite bizarra, o que estaria nos aguardando estrada afora? Animados, fomos de caminhão em caminhão pedindo carona para nosso próximo destino: Porto Seguro. Em pouco tempo conseguimos uma.
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“Podem deixar as coisas aqui na cabine, mas a viagem vai ter que ser lá em cima com os outros.”
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Largamos nossos pertences com um cara bem-vestido, sentado ao lado do motorista e fomos subir na traseira. Colocamos um pé no pneu, as mãos nas cordas grossas que prendiam a carga e num impulso paramos na boleia. Lá, nos juntamos a um grupo de trabalhadores sentados em cima do plástico grosso. Logo depois o motor ligou e partimos para a estrada.
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Sem entender o que dois bacanas do Sul estavam fazendo ali, nossos companheiros deram umas boas-vindas desconfiadas. Vestindo roupas rasgadas e chinelos pré-históricos, pareciam pareciam extras num filme sobre revolução na América Central. Quando o caminhão pegou velocidade, ficamos todos curtindo em silêncio o vento da rodovia, eles segurando seus chapéus de palha e seus bonés para que não voassem.
Viajar sem proteção em cima de um caminhão, além de ser perigoso era ilegal. De repente, o almofadinha da cabine abriu a porta, inclinou-se para fora e gritou: “Polícia!”
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Foi ali que descobrimos qual era a carga: carne seca. Todos tivemos que nos esconder embaixo do plástico engordurado por dez minutos enquanto ouvíamos o cara conversar com os policiais. Quando o caminhão partiu, ficamos deslizando sobre o sal e a gordura escorregadia até ele gritar dizendo que podíamos sair novamente. De volta a parte de cima do plástico passamos a fazer parte da turma e começamos a conversar. Para se fazer ouvir tínhamos que falar alto.
“Ó xente! Cês foi assaltado? Tão pegando carona por quê?”
“Estamos viajando de carona pelo Nordeste, vamos subir até o Ceará.”
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“Ceará?! Mas esse caminhão só vai até Feira de Santana!”
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“A gente tá sabendo. Vamos descer em Eunápolis e de lá vamos para Porto Seguro.”
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“Ah Porto Seguro, cês são sabido, terra de visitante rico e de mulher bonita."
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Um outro se juntou na conversa. “Nóis trabaia num frigorífico fora de Vitória. Tamo voltando para casa depois de um mês.”
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Um terceiro interrompeu: “Nós mora em Santa Maria do Paré, já ouviu falar?”
Respondi: “Não, nunca ouvi falar.”
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“Ô Chico, esse carioca nunca ouviu falar de nossa cidade, passe aquela garrafa da cachaça de lá.”
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A garrafa sem rótulo chegou em dois toques. “Essa cachaça é de lá, de alambique, é a mió dessa região toda.”
Um outro riu e gritou lá de trás: “Fala que é a mió do mundo!!”
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O que tinha começado a falar com a gente disse: “Zeca, mostre a eles como que nóis bebe da garrafa. Num podi encostá na boca.”
As tremidas do caminhão e o vento forte faziam a manobra difícil. Depois dos três que estavam com a gente darem um gole, passaram a garrafa. “Beba aí, carioca!”
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O Pedro foi primeiro e foi na manha, não caiu um pingo e ele sorriu para a galera tirando uma onda.
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“Muito bem, carioca! Agora é você!”
Comigo não teve jeito, o caminhão deu uma sacolejada e a cachaça caiu fora da boca, escorreu até o pescoço e todos caíram na gargalhada.
Depois que a cana brava tinha passado pelas mãos de todos, outros se juntaram. A garrafa terminou logo, mas apareceu outra. Quando a gente se deu conta, já estávamos bêbados e falando bobagem.
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“Meu irmão, essa carne seca foi a coisa mais fedida em que eu já me deitei.”
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“Minha mulher cheira mal assim, mas é de peixe!”
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Após algumas horas subindo a BR aos solavancos, já com três garrafas de cachaça jogadas para o mato, o caminhão pegou uma estrada de terra e parou num bar no meio do nada. Todos saltamos e fomos para o balcão daquela cabana rústica. Nossos novos amigos fizeram questão de nos dar mais cachaça e nos ofereceram uma iguaria local: um órgão desconhecido assado, escuro, forte e em forma de um disco.
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“Isso aí é roela de boi, vai te curar da cachaça.” Orgulhoso por nós sentirmos nojo, continuou: “Isso é uma dilícia e aínda faz o cabra dar cinco sem tirar de dentro.”
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“Isso é o saco do boi amassado, não é não? Deixa eu cheirar esse negócio.” O cheiro era tão ruim quanto o da carne seca debaixo do plástico quente.
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Um deles pegou o pedaço dele, entornou um gole de cachaça, arrancou uma metade, mastigou um pouco e engoliu. “É assim que a gente come, come aí!”
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Nosso orgulho nos forçou a fazer o mesmo. Estávamos embriagados demais para ficar com nojo. Quando coloquei a coisa na boca, o gosto era tão intragável que curou a bebedeira na hora.
O sujeito bem-vestido que tinha nos avisado da polícia - provavelmente um administrador - veio nos dizer que o caminhão já estava de saída e que o motorista estava a nossa espera. Ele e a rapaziada iam ficar ali até que o ônibus deles passasse e os levasse para casa. Nos despedimos da moçada e voltamos para o caminhão.
Dessa vez fomos na cabine e descemos em Eunápolis. Agora, estávamos apenas a uma hora de ônibus de Porto Seguro. Chegamos lá exaustos, mas com a sensação de que tínhamos cumprido a primeira missão. Foi fácil encontrar um camping perto da praia. Depois de montar a barraca, fomos curar a ressaca e limpar o fedor na água salgada apreciando o visual. A noite caiu logo na praia longa e cercada de coqueiros. Voltamos para o camping onde achamos um chuveiro, tomamos banho e fomos dormir um sono merecido.
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Passamos o dia seguinte nos esbaldando na água azul clara do sul da Bahia e curtindo a paz que buscávamos ali. À noite, fomos conhecer a vida noturna de Porto Seguro. A cidade colonial tinha muito charme e era quase urbana. O lugar estava animado. Para a temporada, pessoal da terra enchia seus quintais com luzes coloridas, colocava mesas e cadeiras do lado de fora, entupia as geladeiras de cerveja, ligavam o som no máximo e, pronto, suas casas viravam lambaterias.
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A decoração e as pistas de dança pareciam com a de festas escolares, mas depois de convidar as garotas locais para dançar, logo se via que o jeito delas se esfregarem nas nossas coxas não tinha nada a ver com brincadeiras de recreio. Havia lugares mais caros e refinados abertos por pessoas de cidades grandes que tinham se mudado para lá, mas mesmo ali, não era surpresa sentir uma galinha bicar seu pé enquanto dançava.
O engraçado é que, partindo dessa origem modesta, as lambaterias logo se espalhariam pelo país e seu sucesso ecoaria até mesmo na Europa.
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