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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 24

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Foto: Joao Alexandre

“... E passo aos olhos nus,

Ou vestidos de luneta

Passado, presente, particípio

Sendo o mistério do planeta”

 

Novos Baianos - Mistério do Planeta

No final daquele ano fatídico, Pedro e eu éramos melhores amigos e tidos como a malandragem da sala. Com a chegada do verão, determinados a ser mais fortes que a crise, resolvemos dar uma volta pelo Nordeste. O orçamento desta vez seria muito mais curto devido às novas condições. Não havia feito nada de extraordinário naquele ano, negócios estavam difíceis, a falta de dinheiro estava começando a virar um assunto em casa e, farto do meu distanciamento do “mundo real”, Rafael se recusou a financiar a viagem. Do lado do Pedro, sua mãe viúva também não tinha muito para colocar na mesa. Para tornar a coisa viável, tive que vender meu querido Blues Boy e ele teve que pegar parte do dinheiro que seu pai lhe havia deixado. Mesmo assim, pelos nossos cálculos, só teríamos o suficiente para ir de ônibus até Vitória. A partir de lá teríamos que pegar carona e acampar, tentando chegar o mais ao norte possível.

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Apesar do prejuízo e dos possíveis contratempos, não queríamos outra coisa. Seria uma oportunidade única de viver um sonho de mochileiro hippie, além de um alívio imprescindível das pressões cada vez maiores. Partimos logo depois do Ano Novo munidos de nossas mochilas, uma barraca e meu violão. Enquanto o ônibus atravessava a ponte Rio-Niterói rumo ao Nordeste, não via a hora de chegar naquele Brasil idílico, onde poderia voltar a ser eu mesmo.

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A primeira parada, Vitória, foi esdrúxula. Sem nem pertencer ao Sudeste rico nem ao Nordeste, não era nem moderna o bastante para a gente curtir a balada, nem exótica o suficiente para ser empolgante. O plano era acampar ali por no máximo dois dias, e de lá começarmos a fase de caronas para chegar ao Sul da Bahia o mais rápido possível.

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Chegamos na manhã de um dia ensolarado. Assim que saímos da rodoviária, pegamos um ônibus rumo ao bairro da Praia do Canto que segundo informações era o mais badalado da orla. Ver o mar deu uma vontade doida de dar um mergulho. Saltamos e logo achamos um quiosque na beira da areia que aceitou guardar nossas mochilas. Foi lá que rolou o primeiro contratempo. O dono da barraca, um mulato magro de cabelo parafinado, vestindo uma roupa de surfista, com óculos escuros coloridos, nos explicou que existia uma lei que proibia acampar em qualquer lugar da costa da cidade.

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“Tiveram uns malucos que tentaram acampar aqui há duas semanas atrás. A polícia chegou à noite, tirou eles à força e ainda ficaram com a barraca. Se vocês quiserem tentar, tentem, mas tá avisado.”

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“É só aqui ou em Vitória inteira?”

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“Na costa inteira, se vocês quiserem montar a barraca com os mendigos na praça é com vocês.” O cara encerrou com um sorriso irônico, já preocupado com os fregueses que tinham acabado de chegar.

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Virei para o Pedro. “Cara, e agora? A gente vai dormir aonde?”

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“Sei lá, depois a gente vê. Não estressa Rique, estamos de férias!”

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Aceitei a sugestão. Depois que os clientes foram embora, entramos para trocar de roupa rapidamente atrás do balcão. Agora de sunga, numa cidade estranha, com toda a liberdade do mundo, a praia cheia e o sol forte, não pensei mais no assunto. Queria mais era curar o desconforto de uma viagem de quinze horas. No final do dia, com o pôr do sol chegando, a pergunta sobre onde dormiríamos naquela noite voltou à tona.

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“Aê, de repente o cara falou aquilo só para assustar, vai ver que ele não quer ninguém acampado perto do quiosque.”

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“Pode crer, também achei o cara meio mané.”

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“De qualquer maneira, é melhor a gente ficar esperto, se a polícia chegar e levarem a barraca vai ser foda!”

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“E se de repente a gente for para aquele gramado ali em cima das pedras no final da praia?”

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“Cara, tu tá maluco? Se não deixam acampar aqui, tu acha que vão liberar ali num parque público?”

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“Então vamos para a casa do estudante universitário. Não coloquei a de Vitória na lista, mas deve ter.” A gente olhou para o balcão e ele já estava começando a arrumar as coisas para ir embora.

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“Tá muito tarde para isso, mas dá um guenta aê, que vou pegar as coisas lá no quiosque que o cara está fechando.”

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Quando voltei, o Pedro estava conversando sujeito de sunga com jeito de atrapalhado que tinha acabado de sair da água com uma máscara de mergulho e um arpão.

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Pedro, cujo pai tinha sido mergulhador, estava falando sobre o assunto genuinamente interessado. “Lá no Rio o mar é mais claro, mas volta e meia fica sujo assim também. Quando mergulhava com meu velho a gente chegou até a ver polvo.”

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“Conheço o Rio, mas nunca mergulhei lá. O mar é mais frio, né? Aqui é mais barrento, mas até que dá para ver uns peixes. O Luiz lá dentro pegou um polvo no ano passado, mas foi em Guarapari.”

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A conversa foi interrompida pelo tal do Luiz que saiu da água e tirou a máscara de mergulho para vir falar com a gente. “E aí? Beleza? Luiz.”  O rapaz estendeu a mão e apertamos.

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Depois, ficamos sentados na praia já semivazia conversando. Me surpreendi com o conhecimento do Pedro sobre o assunto, embora desconfiado de que metade do que estava dizendo era mentira. Não sabia nada de mergulho, fiquei boiando, mas enquanto o papo continuava, voltei a ficar ansioso por não ter ideia de onde íamos passar aquela noite.

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Finalmente, o assunto mudou. “Somos de BH e estamos na casa do tio do Fernando aqui, e vocês?”

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A gente explicou a situação torcendo que fosse rolar um convite. Luiz, que tinha jeito de soldado e um ar de mandão, virou para o Fernando.

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“E aí? Não dá para eles ficarem no quarto de empregada?” Ele se voltou para nós e perguntou. “É só por uma noite, né?”

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Nem precisou a gente se consultar, acenamos a cabeça na hora dizendo que sim.

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Fernando, ainda meio relutante, pensou um pouquinho. “É verdade, tem o quarto de empregada. Olha, é apertado e quente pra caralho, mas é melhor que ficar dormindo na rua que nem vagabundo.”

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A gente não estava numa posição de escolher. “Pô, obrigadão, pode deixar que é por uma noite só, a gente vai pegar a estrada amanhã.”

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O Luiz levantou impaciente. “Então tá decidido, a casa é aqui pertinho. Vamo nessa? Fiquei com fome depois desse mergulho.”

 

O Fernando, relutante, se levantou resignado. “Vamo nessa. Essas aí são as tralhas de vocês?”

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Pegamos as mochilas, a barraca e a viola e saímos atrás deles. O conjugado ficava num prédio alto em uma das ruas de trás. Era apertadíssimo. Depois de nos acomodarmos e tomarmos um banho, estávamos prontos para o rango. Quando o Luiz falou que não tinha nada na geladeira, ​entendemos que a gente deveria pagar uma janta em retribuição. Só que se não tínhamos dinheiro nem para pagar uma refeição boa para nós dois, quanto mais para quatro. Não falamos nada e ficou subentendido que não ia rolar. O clima ficou esquisito. De qualquer forma, pegamos o que estava na geladeira; pão, manteiga e queijo fatiado e devoramos uns sanduíches. A fome não passou e resolvemos ir de ônibus para a zona boêmia de Vitória, Vila Velha.

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Duros, com a barriga roncando, ficamos andando pelo passeio feito uma matilha de cães silenciosos. Acabamos num lugar cheio de trailers vendendo comes e bebes e tocando música a todo volume. Na confusão, alguém viu uma mesa vazia cheia de petiscos e de garrafas de cerveja intocadas. O Luiz, já chefe de nós todos, fez um sinal para a gente parar e ficar esperando. Passamos uns dez minutos vigiando e como os donos nunca voltaram, chegamos junto e discretamente tomamos conta.

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Fui direto numa garrafa de cerveja já aberta, mas cheia. Assim que o gelado desceu, ouvi uma voz masculina afeminada me chamando de atrevido. Olhei para o lado e não era o Pedro de brincadeira nem um dos outros dois, era um gay; uma "loura", alta com purpurina cintilando nos cabelos e na barba, olhando para mim com lábios hidratados.

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Quase cuspi a cerveja fora. “Desculpa, a gente pensou que não tinha ninguém na mesa, daí…”

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“Menino, essa cerveja tem dono.  Eu e minha amiga estávamos dando uma volta e deixamos as coisas aqui. Será que não dá para fazer isso numa noite de domingo!?”

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“Olha, desculpa mesmo! Te pago uma nova.”

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O cara não parecia incomodado. “Deixa de ser bobo, garoto, senta aí e bebe com a gente.”

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Quando olhei para o lado e vi a “amiga” dele, um moreno também coberto de purpurina com maquiagem nos olhos se derretendo para cima do Luiz, a ficha caiu: havíamos caído na armadilha da dupla. Estava claro que eles queriam muito mais que cervejas novas e nossas desculpas. De qualquer maneira, como os dois mergulhadores pareciam mais confortáveis com a situação, Pedro e eu saímos de fininho e deixamos o problema para eles.

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Rindo do acontecido, resolvemos deixar de ser pão duros e fomos comer uns hambúrgueres e tomar uns refrigerantes numa das barracas. Saciados, demos uma volta, mas a coisa logo ficou chata. Cansados, loucos para viajar na manhã seguinte, voltamos à mesa para ver quando iríamos embora. A novidade era que os quatro haviam se tornado íntimos e voltar para o apartamento não estava mais nos planos.

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A “loura” foi a porta voz da decisão. “A gente ficou muito amiga desses dois moços e vai levar eles para conhecer a minha casa. Se vocês quiserem nos acompanhar será um enorme prazer.”

 

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