

CAPÍTULO 23

Montagem: Pinterest (dominio publico)
“Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia, eu quero uma pra viver.”
Cazuza – Ideologia
Como eu, Pedro tinha caído de paraquedas na turma do primeiro semestre de Economia. No vestibular, deu a sorte de se sentar ao lado de um amigo de infância “Caxias”. Sem ter que insistir muito, o amigo deixou suas folhas de respostas a mostra e foi assim que conseguiu entrar conseguiu entrar para a UFRJ. Não era um membro típico de círculos acadêmicos. Morava fora da Zona Sul, tinha a pele mais escura, cabelo encaracolado e por ser da equipe de polo aquático do Fluminense, era sarado. Meio deslocados naquele meio e ligados em coisas similares, não demorou muito para que começássemos uma firme amizade, comigo sendo seu passaporte para festas na Zona Sul e com ele me ajudando na cultura de rua.
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Havia três faculdades principais no campus da Praia Vermelha: a nossa de Economia e Administração de Empresas, a de Comunicação (Jornalismo e Publicidade) e a de Psicologia. Por ser o mais prestigioso, nosso curso ficava no prédio mais suntuoso que abrigava o Teatro de Arena. O diretório central dos estudantes não usava mais o lugar para organizar protestos, mas como palco para bandas alternativas, muitas delas excelentes, como Premeditando o Breque, Grupo Rumo, Luhli e Lucina, entre outros.
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Instalados no melhor prédio e por acreditarem estar lidando com questões mais difíceis e importantes que os demais, os alunos de Economia se achavam um degrau acima dos demais. Mesmo que impuséssemos um certo respeito, os outros nos viam como riquinhos nerds metidos a besta.
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Pedro e eu não estávamos interessados nesses estereótipos. Em vez disso, saímos explorando o campus, fazendo amizade com os estudantes de Comunicação – eles sabiam das melhores festas – e com os de Psicologia – a grande maioria era de mulheres bonitas e dispostas a experimentar coisas novas.
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De qualquer forma, passamos a fazer parte de uma turma universitária que possuía vida social própria. Na faculdade de economia, minha habilidade no violão operava milagres e éramos convidados para festas dos membros mais conceituados do corpo acadêmico, muitas nos melhores endereços da cidade. Nelas, além de membros seletos da nossa turma de calouros, havia estudantes de anos mais avançados, jovens professores, suas namoradas, esposas e amigos, todos muito mais sofisticados do que a maioria das pessoas com as quais estávamos acostumados a nos relacionar.
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A elite da faculdade era de esquerda e vários chegariam a posições importantes em agências governamentais, na política e mesmo nos negócios. A maior parte vinha de famílias tradicionais e conceituadas e alguns dos pais eram envolvidos nas cúpulas dos recém-legalizados partidos de oposição.
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Num tempo de renascimento político esses círculos apreciavam a aura descontraída de um violeiro, versado no estilo de vida alternativo encontrado em Visconde de Mauá e em Trancoso. Durante um breve tempo, fomos cortejados pela nata estudantil, mas a novidade desbotou logo e nos deixaram de lado devido às notas baixas, contexto familiar inadequado e falta de base e de interesse nos assuntos sérios que todos deveriam estar focando.
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A acolhida dos alunos de outros cursos foi mais durável. Choviam convites para festas e levadas de som. Conhecemos garotas sensacionais e fizemos boas amizades. Imersos na farra e com um status elevado em casa, foi fácil esquecer a realidade econômica sombria pairando sobre nossas cabeças, bem como os esforços requeridos para sobreviver numa das melhores faculdades do país.
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Embora ausente na faculdade, lá fora a contrarrevolução neoliberal estava trazendo consigo uma espécie de caça às bruxas. Pessoas que não haviam colhido os frutos do milagre econômico dos anos 1970 ou que não tinham participado da festa, quer por proibição dos pais, quer por dedicação aos estudos ou por repúdio àquela postura, pareciam estar ajustando as contas e festejando a desgraça de inimigos agora afogando numa profunda crise econômica.
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O que anteriormente era curtição, passou a ser visto com maus olhos, o que havia sido revolucionário agora era considerado idiotice e o que antes era aproveitar a vida se tornou a causa de doenças sexuais e mentais. A jornada de uma geração que havia lutado contra uma ditadura e que mais tarde presenciou a volta da democracia foi relevada. O sentimento de irmandade que tinha surgido naqueles dias se dissipou. Tudo parecia de cabeça para baixo: o que o senso comum havia considerado até então como egoísta e detestável, agora era aplaudido como a coisa certa a se fazer.
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O choque econômico também trouxe novidades na maneira de se “fazer a cabeça”. A cocaína passou a substituir a maconha. Não nos encontros dos radicais chiques de esquerda do curso de Economia onde muitos nem fumavam, mas nas outras rodas que frequentávamos. O comando do tráfico carioca percebeu que o pó branco era mais fácil de transportar, mais difícil de rastrear, mais viciante, mais caro; enfim, muito mais lucrativo do que a erva. O submundo se profissionalizou em torno da novidade e passou a criar longos períodos de escassez de cannabis, enquanto o fornecimento de pó era abundante e barato. Logo, logo, os antigos maconheiros estavam caindo de napa nos espelhos do Rio de Janeiro. Grande parte passaria a ver a maconha como uma lembrança ruim, um entretenimento para hippies fracassados e outros perdedores.
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A "Brizola" – o nome do ex-exilado e futuro governador do Rio de Janeiro e por alguma razão o apelido da cocaína – era mais agressiva e mais nociva tanto à saúde, tanto a física quanto a mental. Essa mudança de hábito ilustrava bem as mudanças que estavam acontecendo. Ao invés de trazer à tona o lado contemplativo e artístico das pessoas, a cocaína deixava o raciocínio rápido e o ego inflado. Depois de se tornar popular, é claro que o tráfico aumentou o preço, o que fez com que seu consumo se tornasse um peso no orçamento. Por ser necessário consumir muito para manter a onda, em tempos de crise econômica muita gente acabou tomando caminhos à margem da lei.
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No começo, não gostava do clima superficial nem do egocentrismo que as linhas brancas traziam, mas o efeito era tão forte que acabei entrando na onda junto com a galera mais chegada. A ilusão de autoconfiança que conferia compensava as pancadas da recessão e das mudanças de mentalidade. Àquela altura, a realidade lembrava um caminhão desgovernado vindo a toda em nossa direção. Com a "Brizola" tínhamos a impressão de correr mais rápido que ela.
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No entanto, a implacável verdade era que o Brasil tinha se tornado um país assolado pela hiperinflação e pela recessão. Com uma crise à solta, havia muito desespero e mesmo suicídios, alguns próximos de nós. A saída era “cada um por si e Deus contra todos”, nas palavras de Mário de Andrade em seu livro Macunaíma. A válvula de escape para os abastados era a autodestruição através do excesso, para os mais pobres, era o crime e a violência. Histórias trágicas começaram a pipocar nos jornais; um aumento assustador no número de sequestros e assassinatos de um lado e do outro justiceiros contratados e milicianos matando suspeitos.
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No meu círculo social o desânimo era generalizado. Nossa inocência de achar que resistiríamos ao sistema não importando o que estivesse no nosso caminho se provou errada. Quando os dias ruins chegaram - algo que nunca imaginamos que pudesse acontecer - percebemos o quanto estávamos presos a tudo que achávamos que havia de errado no mundo. Moloch era muito maior que pensávamos. Ao contrário do que ditava a lógica, a crise o fortaleceu.
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Todos sentiam que isso era apenas o começo de um longo caminho no escuro. Ao final do primeiro ano na universidade, os efeitos do caos eram profundos. A crise tinha pegado todos de surpresa e ninguém sabia como reagir. Éramos como prisioneiros em estado de choque. Tentei me convencer de que podia lidar com o que viesse e de que era impossível que as coisas pudessem piorar. Estava errado.
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