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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 22

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Ilustração: Tiago Hoisel

" ... dizer que o pior aconteceu,

Pode guardar as panelas

Que hoje o dinheiro não deu."

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Paulinho da Viola – Pode Guardar as Panelas

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Todo ônibus que partia da Rua Visconde de Pirajá em Ipanema rumo ao centro pegava o mesmo itinerário: cruzava Copacabana e, na Avenida Princesa Isabel, virava à esquerda para atravessar o Túnel Novo e sair da Zona Sul. Do outro lado, passava pelo Shopping Rio Sul, pelo teatro do Canecão e pelo campo do Botafogo antes de virar novamente à esquerda em direção à praia de mesmo nome. De lá, beirava a Baía de Guanabara seguindo em direção a um mundo de escritórios e de repartições públicas. No meu primeiro dia como estudante universitário peguei o ônibus 511 que seguia a mesma rota até passar pelo campo do Botafogo, só que depois virava à direita para entrar na pacífica Praia Vermelha, terra do Iate Clube e dos quartéis mais ilustres e tradicionais do exército Brasileiro.

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No caminho, preso no eterno congestionamento da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, fiquei pensando sobre o ciclo que estava prestes a iniciar. Não era um curso de cinema tal como havia sonhado quando mais novo, mas estava curioso. Economia misturava história, que me interessava, e matemática, que sempre achei fácil, talvez fosse acabar gostando.

 

Quem tinha me convencido a cursar aquilo foi o Davi que estava estudando na mesma universidade. Para não trair meu sonho, tinha também passado - em oitavo lugar - para o curso de Comunicação da PUC, que iria cursar a noite. Quem sabe, me formando nas duas encontraria um caminho para ser cineasta ou talvez produtor.

 

Foi estranho saltar do ônibus em frente à Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, e entrar no campus como calouro. Já tinha passado por ali milhares de vezes, visto shows no seu anfiteatro, mas nunca imaginei que um dia fosse cruzar aquele portão como estudante.

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Lá dentro, árvores bem cuidadas margeavam ruazinhas sem trânsito que separavam construções grandes e bem preservadas do século passado. Depois dos trotes xoxos e das aulas introdutórias, viria a descobrir que originalmente o prédio da faculdade tinha servido como um hospício. Agora a ala psiquiátrica tinha sido transferida para um lugar mais moderno dentro do campus, o famoso Pinel. Em pouco tempo estaríamos deparando com enfermeiros correndo atrás de pacientes em fuga entre os carros estacionados e nos corredores da faculdade.

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Não sei bem quando passou a ser universidade, só sei que anos sessenta o prédio tinha sido da faculdade de Arquitetura, mas agora era o da FEA, a Faculdade de Economia e Administração. Suas salas eram amplas, antigas, com chão de madeira e janelas enormes. O anfiteatro semiaberto do prédio, o famoso Teatro de Arena, tinha sido palco dos primeiros shows de Bossa Nova e um espaço fundamental para a resistência estudantil à ditadura militar. A União Nacional do Estudantes (UNE) havia organizado muitos dos seus encontros cruciais ali. Muitos dos estudantes que optaram pela resistência armada tinham tomado a decisão nos mesmos corredores e salas que estavam nos recebendo.

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O legado político ainda estava vivo. Mesmo em 1981, ainda circulavam rumores de que alguns colegas eram policiais disfarçados – a carapuça servia, mas não dava para saber. O diretório central dos estudantes, o DCE, era agitado. Suas assembleias eram frequentadas por trotskistas, leninistas, maoístas e anarquistas, bem como membros dos partidos recém-formados, como o PT e o PDT, do Leonel Brizola. Havia também gente ligada a movimentos mais antigos e barra pesada como o MR-8 e o Partido Comunista bem como aqueles militando em defesa da ecologia, das nações indígenas e da diversidade sexual.

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O pau quebrava. Havia arranca-rabos sérios por quase tudo; como, por exemplo, qual deveria ser a postura do diretório dos estudantes perante a invasão soviética no Afeganistão? qual partido comunista representava de verdade as massas, o PCB ou o PCdoB? quem era melhor, Lenin, Trotsky, Mao, Bakunin ou Marx? Cada facção tentava tomar conta do diretório e as brigas entre elas eram insuportáveis, fazendo com que a experiência de se envolver em política estudantil parecesse com a de se pertencer ao clero na idade média com suas intrigas e com toda a sua rigidez. 

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Apenas seis anos antes, quando a Sarah entrou para a faculdade, a repressão era tão séria que reuniões com mais de seis alunos eram proibidas. Agora, os ventos haviam mudado e agora com a abertura, a militância progressista estava a mil.

 

A situação era assim: Poucos ainda acreditavam no caminho revolucionário dos Cubanos. Seu pai, a União Soviética, estava falido e há muito tinha parado de investir em levantes populares. Seu envelhecido arqui-inimigo no Brasil, o regime militar, estava em seu leito de morte. O caminho era pela democracia. Depois de quase duas décadas de ditadura e com uma situação econômica em declínio, havia descontentamento generalizado nas ruas e a sensação era de que uma reviravolta estava por vir.

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O objetivo das esquerdas ainda era o de transformar ou mesmo substituir o capitalismo por um modo de vida mais justo. Seus corações estavam no lugar certo, mas, como nos diretórios estudantis, seu maior problema era a desunião, presente desde os tempos mais remotos. Em cima disso havia problemas mais profundos e mais atuais. Tudo somado, apesar dos triunfos eleitorais que estavam por vir, esses problemas acabariam fazendo com que o pensamento de direita triunfasse em corações e mentes nas décadas a seguir.

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Para início de conversa, apesar de ter sido inspirador para múltiplas gerações, seu arcabouço teórico era obsoleto. Com certeza, a distribuição de renda continuava inaceitável e assegurava vitórias nas urnas em países como o Brasil. Contudo, a atualidade econômica e tecnológica eram muito mais complexas do que quando aquelas obras tinham sido escritas. Elas não explicavam a falência generalizada dos regimes ditos comunistas e o sucesso estrondoso - pelo menos naquela época - das democracias liberais. Várias questões importantes eram ignoradas em prol do tema central da esquerda: a luta de classes, como, por exemplo, o equilíbrio ambiental, as relações humanas, a saúde física e mental da população, entre outros. 

 

Igual a religiosos fundamentalistas, a maioria dos esquerdistas se recusavam a pensar fora das linhas das suas escolhas ideológicas, e viam nos seus escritos de escolha uma sacralização semelhante a textos sagrados. Essa paralisação teórica, e a recusa em renovar continuariam afetando as forças progressistas até o dia em que estas palavras foram escritas.

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Do outro lado, embora odiado e praticamente inexistente no Brasil universitário da época - principalmente na faculdade de Economia da UFRJ - o pensamento de direita estava retornando a todo vapor em círculos acadêmicos na Europa e no mundo Anglo-Saxão. Seus defensores prometiam um mundo novo, tecnologicamente avançado e rico parecido com o que se via em ficções científicas. Eles acreditavam que para isso acontecer o mercado - o nome que deram para Moloch - uma máquina perfeita, impessoal, apolítica e por isso extremamente dinâmica e confiável, tinha que tomar as rédeas do poder dos Estados decrépitos e esbanjadores de dinheiro. 

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"Não existe tal coisa como sociedade." Essa frase da esdrúxula primeira-ministra Britânica, Margaret Thatcher, uma das personalidades mais importantes daquele tempo, definiu o neoliberalismo. O egoísmo desenfreado seria a sua mola mestre. Para eles, se esquecêssemos que o ser humano é um animal social e nos concentrássemos no "necessário" - sobreviver e ficar rico - nossos melhores talentos viriam à tona e uma lei da selva benévola se estabeleceria. Apostando na concorrência e na vitória dos mais capazes, todos sairiam ganhando já que obteríamos os melhores resultados possíveis em todos os campos.

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É claro que nessa corrida a maioria correria descalça enquanto uma minoria correria de Ferrari. Sem ninguém para confrontá-las, as grandes corporações e outros detentores de capital se sagrariam vencedores. Apesar de terem ótimos empregados, dispostos a tudo para gerar seus lucros, como resultado, teriam completa liberdade para impor os salários que entendessem, poluir o que quisessem, desalojarem, demitirem e abusar quem bem entendessem. Não haveria escolas públicas, hospitais públicos, políticas de desenvolvimento, ou qualquer outro esforço para o interesse da população em geral, o mercado cuidaria para que tudo funcionasse da maneira mais eficaz possível. 

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Essa forma de pensar, liderada pela Faculdade de Economia de Chicago, tinha uma péssima reputação na América Latina. Em 1973, professores dessa universidade junto com o apoio explícito do governo americano, foram os mentores intelectuais da ditadura do General Pinochet, no Chile. Derrubando um governo eleito democraticamente, popular e que estava dando certo, usaram o país como laboratório para as suas teorias. A junta acabaria com todas as benesses governamentais, segurança social, todos os investimentos sociais e privatizaram tudo o que puderam, hospitais e universidades inclusive. Por outro lado, quase zeraram os impostos, derrubaram todas as restrições às importações, escancarando a economia para empresas estrangeiras.

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Embora os resultados econômicos fossem duvidosos e a ditadura fosse barbárica, este modelo se espalhou como fogueira no dito mundo civilizado nos anos 80. Choques neoliberais parecidos com o Chileno, foram introduzidos, entre vários outros países, no Reino Unido e nos Estados Unidos. Seus principais expoentes seriam homenageados por governos e ganhariam prêmios Nobel.

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Agraciando grandes corporações pelo mundo afora e o mercado financeiro global com desregulamentações e grandes reduções de impostos, a revolução neoliberal, no início, agradaria a muitos nas classes médias. Com privatizações pipocando a torto e a direita, as bolsas dispararam e muitos enriqueceram. Havia outros benefícios; no Reino Unido, por exemplo, o governo vendeu vários conjuntos habitacionais e muitos dos antigos inquilinos conseguiram se tornar proprietários pela primeira vez em gerações.

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O outro lado da moeda da euforia entre os privilegiados, foi a maioria dos habitantes do planeta sendo sugada para dentro da pobreza. Países periféricos interessados em adquirir “vantagens comparativas” nesse mundo novo passaram a oferecer mão de obra com salários de fome como seu principal atrativo econômico às grandes corporações. Essa política, imperialista de fato, criaria populações gigantescas que não conseguiam manter um nível de vida aceitável mesmo trabalhando o mais duro que podiam. A maioria vivia na ilusão de que com muito esforço - individual, nunca coletivo - melhorariam de vida com as novas oportunidades que o neoliberalismo oferecia. Por outro lado, grande parte dos trabalhadores nos países ocidentais veria seus empregos irem para recantos com salários mais "competitivos" no outro lado do mundo.

 

Depois que a poeira baixou, a diferença entre os salários dos executivos de alto escalão ganhavam e o dos assalariados nos degraus mais baixos saltou de 12 para 700 vezes. Apesar dos balanços positivos das grandes corporações e de suas ações irem para a estratosfera nas bolsas, trazendo oportunidades de enriquecimento fácil para os já endinheirados, com o poder de compra da população cada vez mais reduzido devido aos arrochos salariais, as economias neoliberais perderiam competitividade frente a economias mais planejadas como a Russa, a Chinesa e mesmo a alemã e as dos países nórdicos.

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O resultado desse turbilhão foi que a desigualdade social voltou a níveis de um século e meio atras. Os governos passaram a governar para companhias e não para a população e, como não estar nem aí para pessoas sempre caminhou lado a lado com não estar nem aí para a natureza, a pior consequência dessas mudanças dramáticas foram as ameaças ambientais, previamente inimagináveis, que agora pairam sobre a humanidade.

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Apesar das convicções políticas de muitos dos seus estudantes, a Faculdade de Economia e Administração da UFRJ não era de esquerda. Sua linha era desenvolvimentista, com conexão estreita à CEPAL, Centro de Estudos Para a América Latina, um instituto erguido pelos governos democráticos no pós-guerra para achar soluções para o continente. Seguindo esta linha, o objetivo principal do seu curso era o de preparar quadros para agências de desenvolvimento do governo e para suas companhias estatais: BNDES, IPEA, Eletrobrás, Petrobrás entre outras.

 

Seus professores mais influentes eram Keynesianos e defendiam uma aliança entre estado e capital privado como forma de desenvolver o país. O presidente Roosevelt adotou essa linha para tirar os Estados Unidos da recessão econômica dos anos 1930 com o seu New Deal. Os aliados também escolheram esse caminho para reerguer a Europa no pós-guerra com o plano Marshall. Para nossos professores, o empresariado brasileiro era descapitalizado e despreparado demais para levar adiante um projeto de desenvolvimento. Só um empurrão forte do Estado poderia, no jargão dos economistas, alavancar a economia brasileira. Para eles, a alternativa neoliberal não passava de um disfarce de neocolonialismo já que só empresas estrangeiras poderiam levar adiante um projeto real de desenvolvimento nessas condições.

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Apesar de não ter nada a ver com a Revolução Cubana, este pensamento se tornou o principal alvo da sua contrapartida criada pelo Departamento de Estado Norte Americano, a Escola das Américas. Seguidora fiel da Escola de Chicago e financiada por grupos interessados em assegurar o predomínio Estadunidense no continente, ela formaria vários ditadores e diversos personagens que teriam um peso nefasto no futuro do continente.

 

 

Tudo ia relativamente bem até que contraí uma hepatite num fim de semana em Mauá, o que me forçou a passar um mês e meio de cama logo no primeiro semestre. Aquela pausa marcaria o começo de uma reviravolta pessoal e, estranhamente, o início de uma reviravolta muito maior no país e até no mundo. Da minha parte ficou claro que aquela faculdade era uma contingência e não o início de uma carreira promissora, Para o pais, a liberdade política estava garantida, as eleições diretas para presidente eram uma questão de tempo, porém uma era de inferno econômico - eco dos choques monetaristas sendo aplicados em países em desenvolvimento - estava iniciando.

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Ao redor do planeta fundamentalistas religiosos cristãos, judeus e muçulmanos estavam desbancando a esquerda junto à opinião pública. A AIDS estava se espalhando e Ronald Reagan e Margaret Thatcher estavam consolidando suas políticas conservadoras. Um ciclo neoliberal e careta estava iniciando um reinado que se estenderia pelas próximas quatro décadas.

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Isolado do mundo, confinado à cama, me sentindo fraco, comendo e bebendo em pratos e copos separados para que minha infecção não se espalhasse em casa, presenciei o Fundo Monetário Internacional começar seu ataque. Representando os interesses dos países centrais, ele decretou que dívidas contraídas em empréstimos concedidos a ditadores e antigos aliados – empréstimos realizados com fins políticos e, por isso, com facilidades especiais – eram agora uma ameaça à estabilidade mundial. No Brasil, as taxas de juros, agora muito mais altas, fizeram com que a enorme dívida externa, iniciada na construção de Brasília e rolada até então com uma certa tranquilidade, chegasse a níveis impagáveis. As exigências do FMI e as condições para seu refinanciamento sufocaram não só a economia nacional, mas também as economias de inúmeros outros países em situações parecidas.

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Dívidas sempre foram uma forma de subjugar, tanto pessoas quanto povos. No Brasil, como de costume, a corda arrebentou para o lado dos mais fracos. Cedendo às imposições externas, o governo aumentou impostos e subiu a taxa de juros. Isto, por sua vez, dificultou a vida das empresas. Muitas foram forçadas a fechar ou a diminuir seus quadros de funcionários. Em outra frente, obrigado pelo FMI a cortar gastos, o governo também passou a demitir e a fazer menos contratos com empresas privadas. Quando essas fechavam as portas, engrossavam o exército de desempregados sem nenhuma forma de assistência social. 

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Para completar o quadro, devido à inexperiência das autoridades com condições tão adversas, o próximo passo foi apelar para a emissão de moeda para honrar obrigações internas e externas, um caminho certo para a inflação. Em pouco tempo ela se tornou galopante, o que diminuía ainda mais o poder de compra da população. A olhos vistos, a crise foi se alastrando como uma dor de dentes piorando a cada dia.

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Com uma média mensal entre vinte e trinta por cento durante os 15 anos seguintes, a inflação no Brasil chegou ao acumulado de 20.759.903.275.651 por cento, um recorde mundial absoluto. Para se ter uma ideia do tanto que a situação ficou feia, caso meu pai não tivesse resguardado seu patrimônio, pelo mesmo preço que havia comprado nosso confortável apartamento em Ipanema no boom da bolsa nos anos 1970, alguns anos depois só poderia ter comprado um cafezinho num boteco de esquina.

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No entanto, na FEA, essa turbulência caiu de uma maneira diferente no corpo docente. Acontece que o seu departamento de Economia estava na linha de frente da oposição às políticas governamentais muito antes da crise começar. Vários de nossos professores haviam dado o alerta sobre os perigos das políticas irresponsáveis do regime e de sua submissão cega ao FMI a tempos atras. Muitos brasileiros acreditavam que aqueles acadêmicos poderiam ser a salvação para o país naquela bagunça. Com isso, se tornaram figuras públicas, aparecendo direto em entrevistas e debates na televisão, publicando livros e escrevendo artigos de página inteira para os principais jornais do país.

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