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Image by Annie Spratt
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Foto: autor desconhecido

Muito antes da chegada dos hippies nos anos 70, Trancoso tinha sido uma missão para a conversão dos índios Pataxó. A modesta, porém charmosíssima igreja e a formação geométrica do quadrado remetiam a um passado disciplinador. A floresta que a rodeava, parte integrante do espírito da tribo, continuava intacta. Ela era o Éden de onde os portugueses os tinham expulsado. Garantidos por pólvora e chumbo, os colonizadores enviaram missionários para convenceram a tribo a trocar aquele paraíso por um imaginário aonde só chegariam depois que morressem. Havia uma condição importantíssima para que fossem aceitos: teriam que rejeitar quem eram e deveriam assentir um status servil num novo mundo que não era deles. O resultado foram descendentes ocidentalizados espalhados pelas reservas na região e os filhos da miscigenação vivendo nos vilarejos. Por mais deprimente que fosse, a situação lá era melhor do que a dos grandes centros urbanos, onde a presença nativa há muito tinha desaparecido.

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Talvez por causa do legado da missão ou por causa do espírito originário imanente na beleza mítica dos arredores, para o pessoal de fora, Trancoso parecia um campus onde se aprendia a viver. Essa gente ou era fugida das cidades grandes morando lá há um tempo, ou eram mochileiros e veranistas bem-informados atrás de uma experiência especial. A onda de Gabeira era inconcebível ali. Se tivesse decidido ir lá, seria considerado mais um, principalmente se descobrissem que por trás do auê se escondia um papel secundário na luta armada e muita sagacidade mercadológica. Outra grande atração do vilarejo era que, com a possível exceção do seu Manoel que tinha me acolhido, ainda não havia gente de cidades vizinhas abrindo negócios no vilarejo.

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O dia a dia era tranquilíssimo e não muito diferente do de Ajuda. As diferenças eram que os banhos depois da praia eram com a água dos poços nas casas dos pescadores e que, fora o pessoal da terra, não havia um careta lá. De dia transitávamos entre o quadrado e a praia, e no fim do dia nos reuníamos igualmente atrás da igreja, de frente para o mar. Só que em Trancoso não havia roda de capoeira, as conversas eram curtas, música só se fosse instrumental e especial, mas a energia e a harmonia eram muito maiores. 

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Atras da igreja, não havia muros, cercas, bancos ou qualquer outra coisa para turistas. Entre nós e o penhasco, havia apenas a grama bem cuidada. A parede caiada construída há séculos refletia o brilho forte do sol de dia e à noite a luz da lua caía ali como uma projeção numa tela de cinema.

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Sem dúvidas, antes de serem convertidos à religião dos brancos, os Pataxós deviam se reunir naquele mesmo lugar para cantar e dançar para seus deuses. Aquele solo ainda guardava algo de sagrado, mesmo com a construção europeia imposta em cima como uma declaração de quem ia mandar dali em diante. A vista dali era magnifica, por causa do ar cristalino e da posição elevada, o lugar dominava uma região de dezenas de quilômetros. Dava para ver a costa inteira para os dois lados. À noite, o único vestígio de civilização eram as luzes fracas de Porto Seguro, ligeiramente visíveis no canto do horizonte à esquerda. 

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Quando a lua cheia chegou, sabíamos que ela ofereceria um espetáculo único. Como sempre, fomos no nosso ponto predileto no pôr do sol e, quando escureceu, ficamos à sua espera com a atenção presa no céu estrelado e nas estrelas cadentes. Cerca de uma hora depois, ela apareceu como uma enorme bola prateada subindo no fim do oceano. Éramos em torno de dez pessoas e ninguém se atreveu a estragar o momento dizendo bobagens. Admiramos sua aparição com a reverência e o silêncio de quem presencia a abertura de uma sinfonia. Seu reflexo fortíssimo foi criando uma faixa brilhante na água. Conforme a lua foi subindo por trás das nuvens que estavam flutuando na mesma altura que a gente, elas foram se iluminando, primeiro por de trás e depois por cima, fazendo com que lembrassem pequenos montes de algodão. Suas bases eram planas; era como se um artista meticuloso as tivesse cortado. A poucos metros da água, lançavam sombras espessas sobre a claridade forte do prateado lunar.

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Enquanto contemplava aquele espetáculo da natureza, o universo me trouxe a clareza de que a saúde, a água que bebemos, o ar que respiramos, as belezas do mundo, o amor e as amizades, enfim, a vida, eram presentes dados a nós sem que tivéssemos que dar nada em troca. Não estávamos em outro planeta, estávamos atrás de uma pequena igreja em Trancoso, perto de onde a colonização do Brasil começou. Aquele momento não era um sonho. Toda aquela abundância do aqui e do agora podia se perpetuar eternamente se apenas aprendêssemos a dar valor ao que temos em comum. Eu desejei que aquela clareza – certamente taxada de lunática pela maioria esmagadora dos habitantes do planeta – ficasse para sempre.

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As últimas três semanas passaram num piscar de olhos. Depois que me familiarizei com a cabana, descobri um atalho melhor para a aldeia que evitava a parte funda do rio, agora minha banheira. Não houve aventuras amorosas, não que faltassem objetos de desejo, mas a concorrência era com caras mais velhos, todos com profissões, mestrados e passados mais interessantes que o meu. Até o violão ficou meio calado; encontrei outros músicos, a gente até que levava uns sons, mas era para nós mesmos. As festas eram mais comedidas, o pessoal era mais reservado, em suma, não seria errado dizer que a turma de Trancoso era mais seleta. Ficar tocando demais para os outros nos faria parecer os bardos bobos da corte.

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Quando a hora de voltar para a vida urbana chegou, me dei conta de que o dinheiro não dava para a passagem de volta. As opções eram ou ligar para casa de Porto Seguro pedindo uma transferência emergencial ou voltar de carona. Por sorte, perguntando para o pessoal, consegui uma com uns caras que estavam voltando para São Paulo. De uma maneira inacreditável, tinham chegado em Trancoso num fusca por uma trilha pelo meio da floresta que nunca tinha ouvido falar.

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No dia da despedida, todo mundo ficou dizendo que a gente era maluco de pegar aquele caminho. Depois de alguns minutos de conforto naquele Fusca insalubre, ficou claro que a trilha não era destinada a carros. Toda hora tínhamos que descer e empurrar a bagaça através da lama ou guiar o Paulão, o motorista, para evitar buracos e raízes, ou tirar troncos caídos na frente.

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“Aí não, Paulão, tem um puta buracão do meu lado, meu! Não tá vendo!”

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“Caralho belo! É mesmo! Sai todo mundo do carro! Ampara ele deste lado aqui porque a gente está quase capotando.”

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Foram horas aos trancos e barrancos até que a trilha evoluiu para algo que lembrasse uma estrada de terra. Gradualmente ela foi se tornando mais larga e gado, jegues e casebres começaram a aparecer. Finalmente, depois de passar por Ajuda, chegamos até a balsa para Porto Seguro. Lá, entramos numa pequena fila de carros e ficamos esperando para embarcar. 

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“Orra! Essa merda está civilizada demais. Vamos ali no mato fumar um!”

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Quando nossa vez chegou, atravessamos em silêncio com um nó na garganta de estar indo embora daquele paraíso. Do outro lado do rio, já havia asfalto e a estrada que levava em casa.

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Cheguei de volta ao Rio sob o feitiço de Trancoso. Era difícil encarar o fato de que havia a batalha crucial do vestibular à espera. Com a cabeça mais clara que nunca, tinha me dado uma missão:  reconciliar com meus pais. Estava ciente de que a cada baseado, a cada levada de som, a cada nova amizade, mergulhava mais fundo num mundo que nem Rafael nem Renée podiam sequer começar a entender.

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Essa batalha pela reconciliação, nunca resolvida, se provaria muito mais difícil do que a do vestibular. O jeito britânico era o de varrer tudo para baixo do tapete.  A atitude judaica, mais pragmática, ignorava o lado poético da vida; a procura por uma verdade pessoal não fazia sentido – a solução era esquecer as bobagens, baixar a cabeça e fazer a coisa certa: estudar. A luta continuou, surda, muda, solitária e dolorida, deixando feridas e sequelas dos dois lados.

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