

CAPÍTULO 18

Foto: Pinterest (domínio público)
"Terra...
Por mais distante, o errante navegante,
Quem jamais te esqueceria?"
Caetano Veloso - Terra
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O novo destino ficava a uma caminhada de duas horas e meia pelas praias desertas. Esse era o único caminho possível pois não havia nem estrada nem trilha. Encarei a empreitada com as tralhas nas costas sob o sol escaldante. Só dava para ir na maré baixa, já que na alta um trecho ficava perigosamente submerso. Integrado que estava com o ecossistema, sabia a que horas ir e me safei do apuro.
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O fim do caminho era uma trilha sem sinalização que subia pelo meio do mato até um platô. A aldeia lá em cima era cercada pela floresta tropical e consistia em uma formação retangular de cabanas em torno de um gramado enorme e bem tratado. Fechando o que todos chamavam de quadrado, de costas para o mar, no final do tapete verde, havia uma igreja colonial caiada dominando tudo a sua volta.
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A beleza e a sofisticação cênica daquela pequena comunidade pareciam incompatíveis com seu isolamento e sua simplicidade. Foi amor à primeira vista. O cheiro de pasto verde foi um refresco depois do passeio seco e quente na areia. A tarde já estava caindo e as sombras das casinhas estavam começando a cobrir o gramado. A pureza do ar conferia ao oceano lá embaixo uma tonalidade turquesa profunda refletindo o azul marinho do céu.
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Parei no único bar de Trancoso que ficava na solitária esquina do quadrado, logo na entrada da aldeia. A construção era um teto seguro por troncos de madeira. Dentro havia um balcão estreito de frente para uma pista de dança - certamente de lambada - com poucas mesas espalhadas em torno de uma mesa de bilhar. Do lado de fora urbanóides sentados em cadeiras e no chão bebiam cerveja apreciando o fim de tarde.
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“E aí? Sai um som dessa viola?”
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“Claro que sai! Mas agora não dá, acabei de chegar a pé de Ajuda. Só dá para beber cerveja.” Estava cansado demais para tocar, mas também não queria dar uma de antipático. Antes de relaxar com minha gelada, convidei “Se tem alguém aí que quiser tocar, à vontade.”
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Um cabeludo mais velho sentado com uma estrangeira bonita, loura de olhos azuis, se levantou e perguntou: “Se importa?”
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“Sem problema nenhum!”
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Tirei o violão da capa e assim que ele deu uma conferida, ficou surpreso. “Cara! Um Del Vecchio antigo! Isso é artesanal! Tu é louco de trazer um violão desses para cá!”
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“Não se preocupe, a viola está adorando o Sul da Bahia.”
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Sem se impressionar com minha resposta, mas fascinado pelo instrumento, o sujeito intenso se sentou se sentou num banco, posicionou o violão como quem sabia o que estava fazendo e deu uma verificada na afinação. Depois, saiu tocando uma das Bachianas do Villa-Lobos deixando todos boquiabertos.
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Quando terminou, o cara que tinha me dado as boas-vindas falou: “Caralho, Catarina, tu tava escondendo o jogo! Esmerilhou!”
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“Tô meio enferrujado, mas esse violão é bom demais! Não resisti, tava precisando tocar.”
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Depois da primeira, veio mais uma Bachiana, soando especial naquele lugar. Quando terminou passou o violão de volta. Antes que tivesse que inventar uma desculpa para não passar o vexame de tocar depois dele, ele perguntou:
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“Como é teu nome?”
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Disfarçando a pressa em colocar a viola de volta na capa respondi. “Rique.”
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“Valeu, Rique, gostei do violão. Meu nome é Carlos, mas me chamam de Catarina." Ele olhou em volta buscando aprovação e continuou. “A gente está na concentração antes de bater uma pelada; os de fora contra os da terra. Tá faltando um no nosso time. Você pode jogar?”
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Com todos pressionando, não tinha como dizer não. “Vambora! Só que vou avisando logo: estou cansadão e sou pereba.”
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“Aqui só tem pereba, vamo nessa!”
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Aquela resposta era típica de quem jogava bem. Depois de uns dez minutos o pessoal da terra apareceu semi uniformizado e fomos para o campo descalços. Quando o jogo começou senti o quanto as noitadas, a farra e principalmente a caminhada tinham me afetado. Estava numa forma vergonhosa e a cerveja antes do jogo não estava ajudando. Quase não conseguia correr, quanto menos chutar com força, a grama e as pedras estavam castigando as solas dos pés. Me esforçando para não dar vexame, fiquei na “banheira” quase o jogo inteiro e consegui marcar um gol. Contudo, mais competitivos por estar defendendo a honra da terra e bem mais em forma, os nativos venceram de goleada.
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Depois do jogo voltamos para o bar para amargar a derrota com mais cervejas. Já estava escuro e, menos intimidado pela habilidade do Catarina, e mais solto pelo recarregamento etílico, tirei a viola e comecei a tocar cedendo aos pedidos insistentes. Como em Ajuda, não demorou muito para que outros músicos se juntassem e ajudassem a disfarçar minha perebagem musical. Para meu alívio, talvez horrorizado pela minha inabilidade tanto no futebol quanto no violão, o Catarina saiu logo com sua estrangeira loira. O dono do bar acendeu a lamparina de querosene e nossa música ficou quebrando o silêncio do resto do vilarejo.
Conforme a noite foi avançando, as pessoas começaram a ir embora. Quando o bar já estava quase vazio, alguém me interrompeu. “E aí, carioca, vai ficar aonde hoje à noite?”
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Tinha me preocupado com aquilo na ida, mas tinha esquecido completamente. “Ainda não sei, se bobear acho um canto no gramado e estico o saco de dormir lá.”
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“Que é isso?! Vai dormir que nem mendigo?! Aqui não tem disso não! A gente te arruma um lugar!” O cara virou para o dono do bar. “Seu Manoel, tem um quarto na aldeia aqui para o violeiro?”
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Seu Manoel torceu a cara. “Tem não, nessa época do ano tá tudo tomado.”
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“E na casa do Chileno? não tem um quarto sobrando?”
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“Chegou um casal de gaúchos lá ontem à noite.”
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“E aquelas irmãs de São Paulo, tomaram a casa do Sebastião toda?”
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"Só pegaram um quarto. É, talvez lá tenha.” O seu Manoel virou para o filho sentado do lado. “Raimundo, dê um pulo na casa e pergunte se pode dormir mais um.”
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Meio desconfortável com tanta cerimônia perguntei: “Para que tanto auê? Onde eu esticar o saco de dormir tá bom. Pode ser aqui do lado ou até debaixo de um coqueiro na praia, não tem problema.”
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“Fica tranquilo, carioca, a gente vai te descolar um lugar.”
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Fiquei vendo o moleque desaparecer no campo escuro e depois reaparecer do outro lado em frente às janelas iluminadas por velas e lâmpadas de querosene.
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O seu Manoel tinha simpatizado comigo. “Deixe o Raimundinho voltar, se as paulistas disserem que não, tenho uma ideia.”
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Marquinhos, o cara que tinha me dado as boas-vindas, falou: “Já sei, a cabana do Pará lá perto da praia!”
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“Essa mesmo, e o rapaz vai poder ficar lá de graça. O Pará já arrumou comprador, faz umas duas semanas que ele sumiu.”
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Não demorou muito para o filho do seu Manoel voltar: “Elas disse que não quer mais genti na casa.”
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“Esquenta não, carioca." Marquinhos deu uma olhada marota. "A gente desconfia que elas não são irmãs coisa nenhuma, mas sim um casal de sapatonas, não iam querer um cara estragando a festa, né?!”
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Um cara com um sotaque gaúcho que até então estava quieto deu uma risada e falou: “Aê violeiro, vai dizer que tu não ia querer ser o recheio daquele sanduíche?”
Achando a observação despropositada e constrangido pelo esforço do pessoal, não dei trela e perguntei: “E essa casa do tal do Pará?”
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O brincalhão respondeu: “O lugar é até melhor do que aqui em cima. O problema é que é um barraco de palha no meio do mato, não tem nada por perto. Chegar lá a noite é coisa de Tarzã.”
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O seu Manoel falou: “Não exagere Gaúcho, o rapaz chega lá fácil.” Aí ele se voltou para mim. “Nem precisa de chave, é só chegar lá, abrir a tranca de madeira e empurrar a porta. Não se preocupe com bicho, é só deixar a casa fechada que eles num entra.”
“Que tipo de bicho!?”
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O dono do bar, um sujeito moreno de meia idade com uma barriga respeitável, deu uma risada. “Aqui só dá galinha e porco, e volta e meia um jegue, não se aperreie!”
Mesmo que soando a roubada, não dava para recusar. Meio envergonhado, aceitei a generosidade e eles passaram a me explicar como chegar lá.
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“Você desce a estrada da praia por onde subiu, essa aqui do lado. Depois de uns trinta metros vai ter uma trilha à direita. É só seguir toda vida que você vai dar na porta do barraco. Não tem erro.”
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O Gaúcho, ainda achando graça, emendou: “Te prepara para o rio no meio.”
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De novo, não dei muita atenção, mas por via das dúvidas perguntei: “Dá para deixar o violão aqui? Amanhã passo pra pegar.”
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“Claro que dá, meu filho!”
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Agradeci, botei a viola na capa e dei para ele guardar. Peguei as tralhas, dei boa noite e fui encarar o caminho. Noites sem lua e sem luz elétrica como aquela em particular eram excelentes para observar estrelas cadentes, mas a visibilidade era zero. Na estrada de terra ainda dava para enxergar alguma coisa, mas na trilha no meio do mato era um breu completo. Fui me guiando pelo barulho da água correndo ao longe, sentindo a areia com os pés e me escorando nos troncos das árvores.
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A visibilidade voltou quando alcancei o rio. Na clareira, percebi que a outra margem ficava a uns doze metros de distância e pensei doze metros e pensei em desistir. Em vez disso, visualizei o mico que pagaria se voltasse dizendo que estava com medo, criei coragem e iniciei a travessia no leito lamacento da água morna. Conforme a profundidade foi aumentando, barulhos de sapos e de outras criaturas da noite me trouxeram imagens de cobras, animais estranhos e peixes carnívoros. Lá pelo meio, a água chegou à altura da barriga e a correnteza tornava difícil equilibrar as tralhas na cabeça.
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Do outro lado, encharcado, avistei a cabana no final da trilha de areia. Como o seu Manoel tinha dito, a tranca era fácil de abrir. A claridade tímida criada pela porta aberta revelou uma vela colada numa mesa. Revistei a mochila, achei a caixa de fósforos e a acendi. A chama fraquinha iluminou as paredes de madeira com argila, o chão de areia e o telhado de palha. Os únicos móveis eram aquela mesa e uma cadeira, ambas feitas a mão. Fiquei digerindo aquele cenário e o cheiro acre e úmido do barraco. O vento soprando do mar estava uivando alto. Apesar de tirar o abafado da casa, fazia a porta e as janelas, assim como as árvores em volta, baterem e balançarem em uma coreografia sinistra. Estranhamente, a luz da chama pareceu me proteger e fez a cabana aconchegante. Ainda ensopado, estendi o saco de dormir no chão e assim que me deitei caí num sono profundo.
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De manhã cedo, o sol entrando pelos buracos da janela me acordou. Sem o vento, dava escutar o canto dos pássaros e o barulho das ondas quebrando ao longe. Saí curioso para ver como aquilo era de dia. Fora minhas marcas deixadas na noite passada, a areia em torno da casa tinha apenas pegadas de caranguejos e de aves. A paisagem em volta era densa e estava colorida pelo sol fraco, ainda filtrado pela maresia. Naquele momento, o mundo era apenas a cabana, o mato ao redor e a presença da praia ao longe. Aquela paz especial me levou ao início dos tempos.
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Num estado beirando o místico, caminhei até a praia que não ficava longe. Assim que a mata abriu, cruzei a areia, mergulhei no mar e nadei por um bom tempo até chegar a uma distância boa da costa. Na água funda, com aquela paisagem só para mim e com o corpo recomposto pelo exercício matinal, fiquei boiando no sobe e desce das ondas apreciando o espetáculo. Aquele paraíso ficava a poucos quilômetros de Santa Cruz de Cabrália, onde os primeiros pés europeus haviam pisado o país-continente. Este era o lugar onde aquelas almas ocidentais plantaram as sementes de um novo país. Naquela hora e naquele lugar ficou fácil imaginar a flotilha chegando. Será que alguém naqueles navios tinha pensado que havia algo a aprender naquela terra linda? Não teria sido uma oportunidade para começar algo novo e melhor? Talvez não fosse tarde demais. Apesar dos horrores que seguiram, a carta de Pero Vaz de Caminha descreve um encontro festivo de civilizações. Quem sabe a saga ainda não pudesse terminar bem...
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