

CAPÍTULO 19

Foto: DR
“E aqueles que foram vistos dançando
Foram considerados loucos por aqueles que não conseguiam ouvir a música.”
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Friedrich Nietzsche
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O último ano no Colégio Andrews era voltado cem por cento ao vestibular. As aulas eram em um prédio separado, e os alunos foram agrupados em quatro turmas – duas para ciências exatas, uma para área biomédica e uma para humanas. Agora funcionando como cursinho pré-vestibular, seria o hoje famoso e temível intensivão, a escola era puro stress, com os professores nos bombardeando com macetes infalíveis, para que ultrapassássemos a barreira descomunal que se apresentava a nossa frente.
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O programa da escola tinha boa reputação. Estudantes vindos de outras instituições cariocas, bem como de outros estados, e mesmo países, se transferiam para ali a fim de se preparar para a prova crucial. Por tudo isso, parecia que estávamos numa escola nova, com um monte rostos diferentes e novas oportunidades de amizade. Um dos alunos recentes que conheci, tinha vindo do Chile. Ele era brasileiro, mas tinha ido viver lá com a mãe depois que os pais se separaram. Agora, na casa do pai, estava preparando para fazer faculdade na sua terra natal.
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Alguns dias depois de conhecê-lo, pegamos o mesmo ônibus para casa, o 157 que passava pela Lagoa. Por algum motivo, o papo acabou em Teresópolis e descobrimos perplexos que éramos vizinhos de casas de campo no fim de mundo do Jardim Salaco. Essa incrível coincidência acabou nos fazendo os melhores amigos instantaneamente.
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Kristoff era de descendência alemã. Parecia com o ator Jack Palance, só que com cabelo comprido e loiro. Além da origem europeia, tínhamos em comum o gosto pela música. Ele tocava flauta transversal e se tornaria saxofonista profissional. Além disso, inexplicavelmente, apesar de pertencermos à infame “esquadrilha da fumaça”, conseguíamos nos manter nos top quinze por cento dos alunos quando havia testes preparatórios. Não demorou muito para que ele se juntasse à irmandade musical da escola, e em pouco tempo, seu apartamento, no final do Leblon, se tornou o quartel general dos músicos marginalizados e afins.
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Como aspirantes a instrumentistas, para nós, os gigantes do rock dos anos 1970, Pink Floyd, Led Zeppelin, Jethro Tull e Yes reinavam supremos nos nossos gostos, assim como os Beatles, os Rolling Stones e Jimi Hendrix. Só que além desses artistas mais óbvios curtíamos o jazz-rock mais recente, representado por uma geração de músicos brilhantes como a Mahavishnu Orchestrade John McLaughlin, Focus, Jean-Luc Ponty, Jeff Beck, Stanley Clarke e Weather Report entre tantos outros.
Assim como em vários aspectos da cultura jovem, no Brasil, estávamos entre cinco a dez anos atrás do que estava acontecendo na Inglaterra e na América do Norte. Apesar de termos ouvido falar tanto do punk como do reggae desconhecíamos seu conteúdo. Não fazíamos ideia do que representavam em termos de resistência ao sistema, de enfrentamento ao racismo e à caretice que tinham tomado conta do mundo anglo-saxão já a partir do início dos anos setenta. Para nós não passava de música fácil e mal tocada. De qualquer forma, suspeito que mesmo que soubéssemos que nossos gostos musicais eram conformistas aos olhos da nossa geração nos países dos nossos heróis musicais, como apreciadores de grandes músicos, teríamos continuado ligados naqueles mestres nos nossos instrumentos.
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Imersos nessa onda instrumental meio psicodélica, mas de altíssima qualidade, presenciamos o surgimento de vários talentos locais de alto calibre. Nossos ouvidos estavam abertos para gênios como Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos e Egberto Gismonti que pareciam ser um fio condutor para a energia que tinha conhecido no sul da Bahia.
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Se a bossa nova tinha sido o reflexo do otimismo do pós-guerra brasileiro, essa nova geração musical refletia um momento de redescoberta e de renascimento vindo com o ressurgimento da liberdade política. Ainda que fossem instrumentistas, eram muito populares; seus shows lotavam e, por um curto tempo, eram os mais vendidos entre os consumidores mais antenados.
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Dos três, Egberto era meu favorito. Seu talento começou a se manifestar na loja de instrumentos musicais de seu pai, no interior do Estado do Rio onde, ainda criança, demonstrava pianos aos clientes. Depois que foi estudar música clássica na França, ele regressou aplicando o Depois que foi estudar música clássica na França, ele regressou aplicando o conhecimento adquirido e seu talento à música brasileira. Indo muito além da bossa nova, Egberto mergulhou a fundo em outros estilos. Na música indígena por exemplo, foi ao ponto de acampar no meio da selva, por um mês, do lado de fora de uma maloca isolada na região do Xingu, até que o xamã-músico, Sapaim, o convidasse a entrar. Talvez por conta desse aprendizado, os sons nos seus shows eram como uma entidade palpável que hipnotizava o público
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Hermeto Pascoal nasceu albino no sertão nordestino. Devido à sua condição, não podia trabalhar sob o sol escaldante. Seus irmãos o trancavam em um estábulo onde canalizava sua frustração para a música. Depois que se tornou famoso, seus cabelos e barba brancos, longos e encaracolados e seus traços marcantes cobertos por óculos fundo de garrafa, o conferiram o merecido apelido de “Bruxo”. Sua banda, que mais parecia uma seita, morava na sua casa no bairro afastado de Bangú, no Rio de Janeiro. Quando tocavam, faziam sons insanos, não só com instrumentos, mas também com garrafas quebradas, serrotes e panelas. Em meio a essa loucura, entretanto, havia o gênio que criava sons celestiais lindíssimos nascidos dos mistérios de índios, africanos e europeus.
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O que alcançou maior sucesso internacional foi Naná Vasconcelos. Vindo de Pernambuco, era o único afrodescendente entre eles. Com ritmo saindo por todos seus poros, mestre no berimbau, tinha uma ligação íntima com o Maracatu. Começou sua carreira com os mineiros do Clube da Esquina de Milton Nascimento, conheceu o rock com os Mutantes e depois que saiu do Brasil se tornou uma estrela do jazz mundial da percussão, levando-a a lugares nunca imaginados. A revista Down Beat, a mais importante do mundo do jazz, iria elegê-lo oito vezes como o melhor percussionista do mundo. Além disso, receberia oito Grammies.
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Havia também bandas marcantes como o Uakti, conhecida por usar instrumentos feitos à mão, pelos próprios membros do grupo. Havia jazzistas como Victor Assis Brasil, Hélio Delmiro e Wagner Tiso, companheiro musical desde a primeira hora de Milton Nascimento, entre tantos outros. Havia também uma enxurrada bandas mais elétricas como A Barca do Sol, A Cor do Som e o guitarrista Pepeu Gomes, os dois últimos com origem nos Novos Baianos. Resumindo, essa foi a época dourada da música instrumental brasileira.
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O interesse era tão grande pela música instrumental, que virou oportunidade de negócios. Explorando o filão, em 1978 surgiu o Rio Jazz Festival, irmão carioca do Festival Internacional de Jazz de São Paulo. Para o delírio da rapaziada, começou apresentando nomes consagrados internacionalmente, como o guitarrista Joe Pass, o trompetista Dizzy Gillespie, o saxofonista Dexter Gordon, o guitarrista da Mahavishnu Orchestra, John MacLaughlin bem como vários músicos brasileiros que estávamos ouvindo.
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O problema era o local: o Maracanãzinho. Esse era o mesmo lugar que tinha acolhido os festivais da canção que deixei de ver no fim dos anos 1960 e início dos 1970. A acústica era péssima. Grandes nomes do rock, como Alice Cooper, Rick Wakeman e Genesis haviam tocado lá, mas os shows sepre acabavam desastrosos, já que o eco transforava a música em ruído. Se para bandas de rock era um problema, imagina para músicos refinados de jazz.
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Apesar dos problemas de qualidade, a "esquadrilha da fumaça" tinha que marcar presença. Os ingressos eram caros e só tínhamos dinheiro para um show. Escolhemos a noite de encerramento, com o Weather Report, a banda do melhor baixista de todos os tempos, Jaco Pastorius, seguidos por outra estrela do baixo, Stanley Clarke. O grand-finale ficaria a cargo de Jorge Ben junto com a bateria da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, a melhor do Rio de Janeiro, e convidados especiais.
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Na ida, inacreditavelmente, pegamos o mesmo ônibus que o Alceu Valença, onde Alex, um dos amigos, nos envergonhou indo cumprimentá-lo puxando seu saco. Chegamos ansiosos para ver nossos ídolos. Na arena, já quase cheia, os assentos eram divididos entre os mais em conta, na desconfortável arquibancada, e os mais caros, na quadra de esportes embaixo, perto do palco. Lá, os mais endinheirados podiam ouvir o show com mais clareza, sentados em cadeiras numeradas e perto dos amplificadores. Claro que tínhamos os ingressos mais baratos. Só que assim que entramos no estádio, percebemos que era fácil pular para a parte de baixo. Tinha um monte de gente fazendo isso e resolvemos entrar na bandalheira. Depois que todos pularam, quando chegou a minha vez, um policial bateu nas minhas costas e me mandou voltar para meu lugar. Ainda que tenha ficado sozinho, estava com o precioso baseado reservado especialmente para o show, sobrevivente das dificuldades financeiras do mês anterior. Quando se deram conta, me chamaram lá de baixo e ficaram implorando para que jogasse o bagulho.
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Falei que não ia rolar “Os caras agora estão de olho em mim, não vou pular e o beck fica comigo.”
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“Rique, deixa de ser viado e joga essa merda!”
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“Cara, essa é a minha compensação por ficar aqui na roubada.”
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“Porra! Todo mundo comprou junto e você vai ficar com ele sozinho!?”
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“Grita mais alto que é pros homi ouvirem melhor.”
Voltei para o meu lugar nas arquibancadas e deixei os caras reclamando, provavelmente se segurando para não me chamar de judeu ruim de transa.
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