top of page
Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 17

capa_arraial_dajuda-640x300.jpg

Foto: Turismo independente

Se esquecêssemos a desigualdade social evidente na nossa própria presença ali, o povo de Ajuda vivia bem, longe do “Brasil Novo” erguido pela ditadura. É claro que, tal qual os habitantes menos favorecidos das grandes cidades, tinham dificuldades para colocar comida na mesa, não tinham acesso nem a uma educação, nem a um tratamento médico decente, nem a uma aposentadoria. Por outro lado, comparados aos moradores de favelas e de conjuntos habitacionais nas periferias, o povo d’Ajuda era mais saudável, mais harmonizado às cercanias e em paz com a vida.

 

Não havia hostilidade em relação aos veranistas. Muito pelo contrário, havia amizade entre os dois grupos. Sem interesse, malícia, nem conhecimento para explorar turistas, ganhavam a vida usando seus barcos artesanais para trazer seu sustento do mar. Alguns alugavam quartos ou cozinhavam para fora para completar o orçamento. O pessoal da terra era tão curioso a nosso respeito quanto nós a respeito deles. Às vezes, nos honravam com convites para conversas e para ouvir suas histórias sobre a comunidade, suas lendas, o mar e a natureza que nos cercava.

​

“Tem vários pescadô que viu uma luz branca aparecê de noite no meio da pescaria. Quando eles via de perto, aparecia uma mulher vestida de branco. Todos os que viu aquilo acabaro morrendo no mar de um jeito ou de outro.”

​

“U mió mês de se pescar é março, a corrente traz muito peixe do Sul para cá, o mar fica mais frio e de vez em quando nóis pega até tainha.”

​

“Aqui dá cação, principalmente por volta do mês de junho, mas é ruim pras rede. Eles rasga tudo e depois nóis tem que remendá tudo de volta. A gente mata eles com peixeira, mas é, difícil. O bicho é grande, maior que sinhô. A carne nem é muito boa, é dura. A gente tem que cozinhá várias veiz até amassiá, que nem carne de sol.”

​

“Nos rio daqui tem peixe sim sinhô, mas é tudo pequeno. Tem muçum, o sinhô conhece? Já experimentaste? É feio como a peste, mas é muito saboroso. Tem que saber cozinhá.”

​

“Nadá?! Nós não sabe nadá não, quando um cai na água, nóis vai lá e traz ele de volta do jeito que dá.”

​

“Ôceis num pesca no Rio de Janeiro? E aprenderu a nadar por quê? Oxente, se eu tivesse o dinheiro que oceis tem, mandava fazê uns três barco e fazia os outro pescá para mim. Que nem aquele minimo de Salvador tá fazeno. Eu ia ficá rico que nem ele!”

​

Visitantes mais sortudos, como o paulista que conhecemos na chegada, eram convidados para sair nas pescarias, mas isso nunca aconteceu conosco.

​

*

​

Nossos companheiros de fora eram uma mistura de estudantes e jovens professores universitários, jornalistas, artistas e profissionais de todos os tipos, sem muito dinheiro, mas com muito coração. As conversas eram longas e frequentes e refletiam não só a paz e a beleza do lugar, mas também a explosão de liberdade de expressão que se seguiu os longos anos de repressão do regime militar. Todos faziam questão de dar a sua opinião sobre tudo; de futebol à ecologia, da política ao sexo.

​

“Quando a eletricidade chegar aqui, vai mudar tudo e para pior. Eu sou do Mato Grosso, lá tem um monte de aldeias como essa. Quando modernizou, o povo mais humilde acabou virando favelado e quem se deu bem foi o pessoal das cidades maiores que chegou sabendo como lidar com dinheiro.”

​

“Pois é, eles são muito ingênuos. Não valorizam o que possuem. Eu sou do interior do Paraná, e lá é igual. Os nativos não têm parâmetros para comparação. Os de fora vêm na malícia e deitam e rolam.”

​

“Vai ser uma pena ver essa natureza toda ser transformada em resorts à lá americana, mas pode crer que vai virar.” Profetizou um.

​

"Pois é, mas ficar aqui sem luz elétrica é bom demais, a gente tem que aproveitar enquanto dá."

​

Todos concordaram.

​

“Mudando de assunto, se vocês querem ver natureza de verdade, têm que ir para Caraíva. No ano passado fiquei lá o verão inteiro e foi bom demais!”

​

“Caraíva? Os nativos disseram que não dá para chegar lá nem a pé!”

​

“Que dá, dá, mas é difícil por causa da maré e dos rios no caminho. Teve um maluco de Belo Horizonte que saiu de Trancoso e conseguiu, mas levou dois dias. A gente foi de barco. Tem um que sai de Porto Seguro toda sexta-feira, leva umas três horas.”

​

“E como é que é lá?”

​

“Muito louco, parece uma aldeia perdida no meio da Amazônia. Tem uma reserva indígena do lado, os caras nem falam português direito, só que o bicho pega com os da terra. Tem muita briga, principalmente depois que os índios descobriram a cachaça.”

​

“Você entrou em alguma confusão?”

​

“Ah não! Com o pessoal de fora é diferente. A gente dá roupa, traz ferramentas, facões e isqueiros. Por isso adoram a gente.”

​

“Isso não é contra a lei?”

​

“É, pela lei, mesmo se tivessem grana, não poderiam comprar esse tipo de coisa. Mas os caras precisam para trabalhar no mato, daí que o pessoal dá o que pode. Fiz amizade com um monte. Eles são muito doidos! Não conhecem o conceito de propriedade privada.”

​

“Como assim?”

​

“Tipo assim, você vai para a praia e quando volta tem um monte de índio sentado na tua sala, tranquilos, sem pedir desculpas nem nada. Teve um dia eu estava transando com a minha namorada e quando a gente acabou, nos demos conta que tinha uns cinco ou seis debruçados em silêncio na janela olhando para nós. Só faltaram aplaudir... minha namorada ficou puta!”

​

Todo mundo deu risada. 

​

Quando o papo ficava mais profundo, todos concordávamos que esses eram os últimos dias de um mundo no qual a natureza era maior do que o homem.

​

“Essas mudanças que a gente está vendo parecem pequenas, mas vão acabar tendo consequências enormes.” Falou um sujeito mais velho que, se não me engano, era professor de universidade. “Essa geração está vendo toda essa devastação vai ser cobrada pelo que deixou fazer no futuro.”

​

“Pode crer, vão dizer que deixamos a coisa rolar.” comentou Geraldo, o hippie bom de percussão.

 

O professor continuou: “Não sou muito otimista. Vamos ser vistos como os porcos que estragaram o planeta em nome de farra.”

​

Uma menina com cara de estudante de mestrado emendou: “Somos o vírus e a cura, se não tomarmos uma atitude, vão tomar por nós, e mal. O xis da questão é acreditar ou não que a gente pode fazer uma diferença.”

​

Discussões à parte, havia algo especial no ar, um tipo de conexão coletiva que nenhum de nós jamais havia sentido antes. Era como se estivéssemos em uma realidade paralela, destilada por séculos de ideais utópicos e pela camaradagem criada na recente resistência clandestina ao regime. Naquele paraíso tropical, essa proximidade dava o tom das festas, da música, dos risos, dos relacionamentos e das amizades. Tudo tinha uma qualidade e uma sinceridade muito diferentes do que tínhamos como realidade imutável nos grandes centros urbanos.

​

*

 

A experiência não tocou Davi como a mim. A meu ver, ele estava se reprimindo ao escolher se misturar com uma galera mais careta de universitários. Eles eram parte importante das conversas, mas participavam somente marginalmente de nossa “sociedade secreta”. Não estando ligados à erva, perdiam um elemento essencial. Não era uma questão de tirar uma onda ou de se enturmar por estar fumando maconha, mas pelas percepções que ela parecia trazer na integração com os arredores e até nas conversas.

​

A frase de efeito do Roberto Freire que marcou aquele verão foi: “Sem tesão, não há solução.” Esse era o Norte daquela micro-revolução quixotesca. Nela, as coisas se resumiam a ações ao invés de palavras. Queríamos um mundo mais próximo à natureza - tanto a interna como a externa, sem distinções e sem hierarquias, principalmente a hierarquia da mente sobre o corpo. Ninguém queria saber de dogmas, tanto à esquerda quanto à direita. Naquela liberdade, quem precisava do peso da história, de escolas, academias e de tradições pairando sobre suas cabeças? 

​

O caminho para o fim da nossa amizade culminou quando conseguimos rachar uma cabana maior com três garotas de Brasília que ele havia conhecido perguntando na aldeia. Assim que as conheci, não gostei. Eram desajeitadas, não muito atraentes e certinhas demais. A antipatia foi mútua: minha atitude de carioca relapso que não estava nem aí para as praticidades de uma convivência diária, contrastava com seus esforços em serem sociáveis e seus pedidos para que dividíssemos as tarefas domésticas. Talvez estivessem certas ao me considerar um riquinho preguiçoso e mimado. Só que com 17 anos, era imaturo demais para compreender isso, e as coloquei fora da minha zona de interesse e de amizade. 

​

Após uma semana e pouco debaixo do mesmo teto, a coisa deteriorou. Um dia após a praia, já de saco cheio da minha preguiça, exigiram que eu preparasse a refeição daquele dia. Avisei que nunca tinha cozinhado na vida, mas, talvez achando que isso fosse uma desculpa esfarrapada, me forçaram a embarcar na primeira aventura culinária da minha existência. O fogão era uma grelha apoiada em alguns tijolos na área atrás da casa. Meu primeiro passo foi andar pelo descampado, procurando por lenha seca e papel. Quando achei e voltei, vi que acender o fogo era quase impossível por causa do vento. Depois de várias tentativas, tive a ideia de achar uma cartolina para proteger a chama e finalmente consegui. Me senti bem ali, sozinho, de calção, vendo a madeira queimando. Quando as chamas diminuíram, seguindo as explicações do Davi, coloquei a panela velha sobre a grelha, com água, óleo, sal e o espaguete.

​

Como bom filho de Aries, fiquei agachado curtindo o fogo arder, o que me fez lembrar que tinha uma ponta no bolso. Aproveitei as chamas para acendê-la. Tudo estava correndo bem até me levantar para adicionar os ovos. Enquanto afundavam na água fervente, percebi que o resto dos ingredientes não estavam borbulhando como deveriam. Pareciam presos ao fundo e quando cutuquei com o garfo, senti que o macarrão tinha se tornado uma massa uniforme grossa e grudenta. Mesmo para um iniciante, era óbvio que aquilo estava errado. Só que quanto mais tentava concertar a coisa, mais ela lutava de volta dificultando os movimentos do garfo. O que era para ser uma refeição à base de espaguete se degenerou em um bloco de massa incomível. Para tornar a coisa ainda pior, percebi que os ovos haviam sumido lá dentro. Comecei a escavar a “coisa” numa tentativa de salvá-los, mas o garfo ficou preso antes de desaparecer naquela deformidade.

​

Tive um momento de pânico, mas depois achei aquilo engraçado. Sabia que não ia pegar bem com as meninas, mas respirei fundo e tomei coragem para entrar e dar a notícia.

​

Elas estavam esperando com fome.

​

“Aê, vocês não vão acreditar, o macarrão virou um tijolo e engoliu os ovos e até aquele garfo. Vocês querem ver? Tá hilário!”

​

“Como assim?”

​

“O macarrão ficou todo grudado e acabou, sei lá, fundindo num bloco sólido. Nem tô conseguindo tirar da panela.”

​

“Não estou acreditando, você sabia que a panela é da casa? Sabe quanto custou a massa e os ovos? Não deve saber? A empregada não foi comprar, né?”

​

“Olha só, foi um acidente!” Elas estavam sérias e nervosas. Não estava gostando do rumo que a conversa estava tomando. “Está todo mundo de prova que avisei que nunca tinha cozinhado na vida.”

​

“Como é possível um marmanjo da tua idade não saber cozinhar um macarrão?!”

​

“Isso não vem ao caso. Eu avisei, foi um acidente, se vocês quiserem eu pago o macarrão de vocês, mas baixa a bola aí, porque gritar não tem nada a ver.”

​

“Ah, e você vai pagar o nosso jantar?”

​

“Compra mais macarrão, cozinha um arroz, sei lá, se é para pedir desculpas já pedi, só não enche!”

​

Tinha coisas melhores a fazer do que ouvir aquelas três garotas gritando comigo e saí, deixando elas falando sozinhas. Mais tarde, naquela mesma noite, caiu a última gota. Estávamos todos num boteco, e depois de beber demais, a mais nova, que era a mais sossegada e a mais atraente das três, me pediu para a trazer de volta para a casa porque estava passando mal. Estava bêbado também e no portão nos beijamos. Quando entramos e já estávamos quase nos finalmentes, as outras duas entraram como um foguete. Quando viram o que estava acontecendo, chegaram perto de me agredir fisicamente. No dia seguinte me colocaram para fora. O Davi, que já estava farto das minhas doideiras, também não gostou e ficou do lado delas.

​

Peguei minhas tralhas me sentindo injustiçado e, resignado, fui bater na porta da cabana de uns uruguaios camaradas que me acolheram na hora. Só que não demorou muito para descobrir que o clima na casa era caótico demais, até para mim. Era gente entrando e saindo 24 horas por dia para zoar e se chapar. Para piorar as coisas, o Davi decidiu voltar ao Rio mais cedo do que o planejado. Agora sozinho no Sul da Bahia, carregando o gosto amargo da rejeição, seguindo recomendações, resolvi me mudar para Trancoso, o próximo vilarejo ao sul.

​

bottom of page