

CAPÍTULO 17

Foto: Pinterest (domínio público)
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“Bom viver graças ao calor do sol
Benfeitor dessa região...”
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Gilberto Gil – Cores Vivas.
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Na chegada do verão de 1979, estava com quase dezessete anos de idade, integrado ao estilo de vida carioca, bronzeado de praia, em forma por causa do futebol e do jacaré, enturmado graças ao violão, tocando direto e era membro titular da turma dos malucos do Colégio Andrews. A situação não poderia ser melhor; tinha passado de ano com facilidade e tinha três meses e meio de férias pela frente. Como recompensa pela boa atuação escolar - sem ter ideia do que se passava nas horas vagas - Renée e Rafael concordaram em patrocinar mais uma aventura de verão. O plano dessa vez era ficar um mês e meio no Arraial d'Ajuda, no sul da Bahia, a nata dos destinos alternativos da época, novamente na companhia do Davi.
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Os vilarejos ao sul de Porto Seguro eram um dos santuários alternativos mais procurados do país. Louvada em músicas por Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros filhos da Bahia, aquele ecossistema praieiro, vasto, quente e verde, era livre do saque imobiliário que os litorais dos estados do Rio e de São Paulo estavam sofrendo. Contribuindo para a sua aura de paraíso tropical, ainda havia tribos indígenas vivendo em reservas. Somado a isso tudo, era próxima a cidade natal de Jorge Amado, Ilhéus, prometendo, em minha imaginação, uma imersão na autêntica cultura afro-baiana.
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Desta vez fomos sozinhos à rodoviária, o que nos fez sentir mais maduros. A viagem era de "apenas" trinta horas. Nossos companheiros seriam, na sua maioria, gente da região voltando para passar os feriados de fim de ano em casa.
Dada a destinação, como era de se esperar, e para nossa alegria, havia um grupo de seis ou sete garotas de Ipanema com ar ripongo entre os passageiros. Assim que o ônibus pegou a estrada todas se levantaram e tomaram conta do veículo conversando em pé no corredor ou de joelhos nos assentos. Felizes por estarem saindo de férias, longe da tutela dos pais para um lugar da moda, cientes de que estavam chamando a atenção de todos, ficaram horas num papo animado.
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“Menina! Você tem que ver o biquíni que comprei na Company. Cheio de detalhes indianos! O máximo!”
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“É?! A Marcinha foi lá na semana passada e disse que viu umas cangas de batik lindas, meio sedosas, importadas da Índia. Fiquei morrendo de vontade de comprar, mas não deu tempo.”
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“Amo de paixão tudo na Company!”
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"Ai.. Também adoro!"
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“Por falar em adorar, você já viu as fotos da pousada onde vamos ficar? Maravilhosa!”
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“Vi, o Flávio tirou quando ficou lá o ano passado, uma viagem."
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"E a praia, viu que escândalo?”
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“Pois é, O Flávio mudou muito depois que passou a namorar a Adriana, não acha?”
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“É, ele se afastou, mas pudera, ele é um gato, você não faria o mesmo se fosse ela?”
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“Não sei, não gosto daquela menina...”
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Suas vozes altas abafaram qualquer outra possibilidade de conversa. O problema para nós é que, apesar da superficialidade e da chatice, estávamos encantados; todas eram lindíssimas, os corpos torneados por muita academia de ginástica, a pele bronzeada pelo sol de Ipanema e tratada com os melhores produtos disponíveis nas prateleiras das melhores lojas. Com certeza não eram frequentadoras do Nove, burguesas demais para isso. Talvez fossem frequentadoras da praia na Garcia D'Avila, ao lado do Country Club, onde o pessoal abonado ia. Mesmo que talvez fossem areia demais para o meu caminhãozinho, pensei comigo que não custava nada tentar.
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No dia seguinte, depois da parada para o café da manhã, a que estava sentada do lado oposto ao meu assento olhou na nossa direção e aproveitei a deixa.
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“E aí? Vocês estão indo para Ajuda também?”
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“Não, a gente está indo para Prado, mais ao Sul, é linda! Você conhece?”
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Feliz por sentir um sutil desapontamento por a gente estar indo para um destino diferente continuei. Quem sabe a gente não se esbarrasse depois das férias no Rio?
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“Ouvi maravilhas sobre o Sul da Bahia, mas nunca ouvi falar de Prado. Deve ser muito legal.” Mentira, pelo que tinham me dito era um lugar sem graça, com areia meio estranha e pouca gente de fora.
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Já ciente que as amigas estavam antenadas no papo ela falou “Pois é, queria ir pra Ajuda também, mas o ex-namorado da minha amiga recomendou uma pousada lá e convenceu todo mundo a ir. Não sei como, Ajuda é bem mais legal.”
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Desajeitado, tentei dar uma risada madura, “E por que Ajuda é mais legal?”
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“O pessoal que vai lá é bem mais interessante, a aldeia é bem mais bonita e além do que, o Gabeira está indo passar o verão lá.”
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Aquela notícia me tirou do estado de azaração. “Sério? O Fernando Gabeira, o Rei do Nove, está indo para o Arraial d’Ajuda?” Senti que estava perguntando por um monte de gente ali dentro. “Como é que você sabe?!” soou meio grosso, mas senti que ela gostou da sensação que tinha causado.
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“Minha irmã conhece uma amiga dele.” ela respondeu com orgulho. “Mas está todo mundo sabendo.”
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O Davi se meteu na conversa. “Putz, será que o preço das pousadas vai subir por causa disso?”
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A pergunta foi tão cretina que queimou o meu filme por tabela. Foi outra que respondeu.
“Uma coisa não tem nada a ver como a outra, de qualquer maneira ele vai alugar uma casa.”
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O único elemento masculino do grupo das meninas, desmunhecadíssimo, se levantou e se meteu na conversa com ar de especialista: “A Yara disse que ele está indo primeiro de avião para Salvador e depois vai descer de carro. Ele chega na quinta-feira que vem.”
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Aquilo matou o papo, agradeci e, sem ter mais assunto, fiquei em silêncio, ela também. Na próxima parada, comendo um sanduíche de queijo suado num pão francês duro e bebendo café com leite num copo velho de vidro brinquei com o Davi.
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“Não basta ficar vendo o cara de tanguinha no Nove, vamos ter que engolir ele aqui na Bahia. A culpa é tua, bonitão! Foi disputar com o Hélcio, agora ele está te seguindo!”
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As garotas desceram antes de todo mundo, deixando o ônibus menos florido. Contudo, o efeito da notícia-bomba seguiu. Mesmo a peonada que só o conhecia da foto entrou na conversa.
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“O Gabeira que cês tão falando é aquele homi de tanga na praia?! Iche! Que coisa horrívi!”
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Quando chegamos, descobrimos que na cidade, dos motoristas de Kombi aos hippies velhos, não se falava de outra coisa. Não só lá, mas no país inteiro. A imprensa tinha uma tradição de dar nomes aos verões e naquele quem levou o título foi ex-guerrilheiro. Dava um certo orgulho pensar que no auge do seu verão, teríamos o Gabeira como vizinho de praia por seis semanas.
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O ônibus só ia até Porto Seguro. Apesar de ficar a poucos quilômetros do Arraial d’Ajuda, ainda havia chão pela frente. Para se chegar lá, teriamos que encarar uma balsa de madeira tosca que cruzava o largo e lamacento rio Buranhém e depois pegar uma Kombi/lotação.
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Quando a balsa chegou na outra margem, pareceu que estávamos desembarcando num outro mundo. Fomos sentar com outros dois passageiros na sombra de um casebre tornado estação das barcas. A kombi para já estava ali, mas não havia motorista por perto. A embarcação voltou, e depois de ouvir o barulho do motor desaparecer nas águas, ficamos ali esperando. O sol ainda estava forte, mas onde estávamos sentíamos o frescor da brisa trazendo o cheiro do rio misturado com o do mar. O motorista acabou aparecendo para dizer que a lotação só sairia depois que enchesse. Ficamos pelo menos mais uma hora naquele lugar que parecia uma fronteira da civilização com a natureza. O silêncio era compartilhado com duas mulas pastando, os outros dois que vieram com a gente e três ou quatro locais que apareceram e ficaram sentados do lado do terreno baldio olhando para o nada. Quando a próxima balsa chegou, trouxe outros aspirantes a hippie e mais um punhado de locais. O condutor apareceu, abriu a porta, os passageiros lotaram seu veículo e partimos. Pegamos uma estrada, meio de terra e meio de areia, que passava por um mato fechado e que depois de uns dez minutos abriu para uma clareira parecida com um campo de futebol. Logo depois, subimos um morro com uma igreja em cima e paramos na praça de terra batida da aldeia.
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Já era fim de tarde. A preocupação com onde íamos passar a noite tinha desaparecido no caminho, quando um cabeludo de São Paulo, que já estava ali a algumas semanas, nos perguntou se tínhamos lugar ficar. A gente respondeu que não e ele nos convidou para rachar um quarto naquela noite, já que seus amigos só iam chegar no dia seguinte. Nos sentindo com sorte, pegamos as mochilas e saímos atras dele. Assim que entramos na casa, fomos apresentados à dona, uma senhora da terra simpática, com ar sereno e cheirando à banho recém tomado. Depois que o paulista explicou quem éramos, ela nos deu as boas-vindas num sotaque baiano charmosíssimo. Nos instalamos e logo em seguida saímos para dar uma volta de reconhecimento.
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Já estava anoitecendo e a primeira coisa que chamou atenção foi a ausência de luz elétrica. Nunca tínhamos presenciado algo assim e ficamos deslumbrados. O céu azul escuro, aquelas casas escurecendo encravadas no topo do morro e a brisa fresca vinda do mar, pareciam se amalgamar numa coisa só.
Fomos para trás da igreja ver a vista das praias selvagem que parecia não ter fim. Quando voltamos para a praça, nos demos conta de que era livre de carros, asfalto e lojas. Não havia nada daquilo nem ali nem num raio de vários quilômetros. As casas ao redor eram pintadas com cores vibrantes, fazendo com que suas paredes e as ruelas de trás parecessem uma pintura cubista.
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A vida do lado de dentro e do lado de fora das várias janelas abertas pareciam integradas. As velas e as lamparinas flamejando em cima de mesas e de outros móveis se incorporavam ao zen daquele anoitecer. Sua luz era bem mais aconchegante do que a agressividade elétrica à qual estávamos acostumados. Já havia alguns sinais de “progresso”. Lâmpadas de querosene ao redor da praça foram revelando o interior dos estabelecimentos da gente de fora; um ou dois bares destinados a visitantes, servindo comidas e bebidas. Mesmo assim, conforme fomos conhecendo o vilarejo, descobrimos que a infraestrutura era básica, não havia água encanada e, exceto uma ou duas pousadas novas e esses bares mais transados, os preços da hospedagem e da alimentação eram ridiculamente baratos.
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No dia seguinte, agradecemos a dona e o paulista e fomos à cata de um quarto para nós. Achamos um bem pior na área destinada aos visitantes menos endinheirados. Era em uma das cabanas erguidas às pressas em torno de um terreno baldio logo atrás das construções originais. Seus proprietários vinham de cidades próximas e, dispostos a explorar o potencial turístico do lugar, estavam aguardando a eletricidade que estava programada para chegar possivelmente no ano seguinte. Alheios às transformações, jumentos, vacas magras e cães de rua ficavam ali aproveitando o isolamento e a paz dessa parte da vila.
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Passada uma semana, ficamos sabendo que o Gabeira tinha chegado, mas que tinha alugado uma das acomodações caras e isoladas de frente à praia. O reboliço que isso causou teve vida curta. O ex-guerrilheiro-tornado-estrela optou por não se misturar com meros mortais. Embora fosse frequentemente visto em locais mais afastados com sua tanga fio-dental, às vezes só, às vezes acompanhado por um ou outro seguidor dedicado, parecia fazer questão de não interagir com ninguém. Nós é que não íamos tentar
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Em contrapartida, depois de alguns dias na aldeia, já éramos amigos – ou pelo menos conhecidos – de todos, tanto os locais quanto os outros visitantes. Nossa rotina diária era divina. Acordávamos no meio da manhã e íamos direto até uma barraca de comida natural para tomarmos um café composto de banana amassada com calda e aveia. Revigorados, de barriga cheia e com o corpo se sentindo bem do dia anterior, pegávamos a trilha de areia que levava à praia pelo meio do mato selvagem. Passávamos o resto do dia jogando futebol, frescobol e vôlei. Quando o calor tornava isso impraticável, caminhávamos pelas praias desertas, dávamos nadadas no mar calmo e conhecíamos pessoas novas. Uma das melhores facetas d’Ajuda era que os locais não nos viam como máquinas de sacar dinheiro, mas sim como convidados ilustres e ficavam na sua. Às vezes, um ou outro passava vendendo banana frita, água ou cerveja. Se a gente quisesse comprar com ele, beleza, mas se não, ficava no seu canto, curtindo a praia na sombra e apreciando discretamente a beleza generosamente exposta das visitantes da cidade grande.
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O sol era tão forte que as poucas nuvens que vinham do oceano eram bem-vindas. Havia pancadas de chuva ocasionais e curtas. Quando a água doce caía, todos na praia corriam para o mar para sentir seus pingos molharem seus rostos com o resto do corpo protegido pela água salgada, morna e calma.
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No fim da tarde, a gente retornava ao vilarejo para se reunir atrás da velha igreja. O sol se punha se transformando em uma bola gigante e alaranjada por trás do oceano e do vale de mata virgem logo em frente. Enquanto suas tonalidades coloriam o mar e o céu azul-escuro, o corpo castigado, mas refrescado, pela água salgada, se deliciava no sopro de ar quase frio do fim de tarde. Às vezes, havia uma roda de capoeira, onde os praticantes demonstravam suas habilidades enquanto os outros em volta cantavam e batiam palmas ao toque do berimbau.
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O único lugar para se tomar banho com água corrente ficava numa caverna com fonte natural. Invariavelmente sempre havia uma fila de veranistas segurando suas toalhas e seus apetrechos ao lado da estátua de Nossa Senhora d’Ajuda logo na entrada. Já o banheiro era o maior do mundo, o mato.
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Livres do sal grudento, cheirando a banho tomado, voltávamos à cabana para colocar chinelos e um short com uma camisa seca. Em seguida, saíamos para jantar os pratos feitos que as mulheres da aldeia vendiam nas portas de suas casas: peixe frito, arroz, feijão e farinha. Satisfeitos com a única refeição do dia, partíamos para as festas improvisadas nos bares e botequins. Dentro deles, as sombras fortes das lamparinas de querosene colocadas nas mesas conferiam uma aura de antiguidade. Eu, como vários outros, tinha trazido o violão e nossos improvisos eram a trilha sonora que animava as noites.
Quem chegava tinha que afinar com quem já estava lá.
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“Acho que o Lá não afinou, dá para ouvir de novo? " Dava uma torcida na atarraxa, conferia de novo. "Valeu!”
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“Conhece a levada de Frevo Mulher? É fácil, começa assim; em Fá sustenido menor e depois sobe para sol, aí fica num vai e volta e depois desce para mi menor. Entendeu?”
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“Acho que sim.”
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A percussão não precisava de afinação. “Zinho, a batida é de frevo, tá pronto?”
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“Vambora!?”
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O som começava e a energia decolava. Não era só frevo, era afoxé, samba, rock, blues, funk e o que mais desse na telha. O objetivo inconfesso era fazer com que as garotas mais bonitas prestassem atenção na gente e se levantassem para dançar, e isso era a regra. Às vezes, um outro instrumento aparecia do nada com alguém que tocava muito. Estas novas adições; flautas, saxofones, violões, ou mesmo percussão eram sempre benvindas e faziam com que o som tomasse um rumo especial. Várias sessões terminavam com o povo dançando e cantando músicas que todos haviam criado juntos naquelas celebrações.
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A lua era tão radiante que dava para descer até a praia como se estivéssemos à luz do dia. Lá embaixo, entravamos em sintonia com a areia clara, a espuma branca, o som das ondas e o vento. O céu limpo e despoluído, juntamente com a inexistência de luzes elétricas por quilômetros, fazia com que as constelações se destacassem de uma maneira que nunca tinha visto antes. Sentávamos na areia durante horas, conversando e tocando violão. A coisa mais impressionante eram as estrelas cadentes que volta e meia cortavam o firmamento. Quando retornávamos à vila e entravamos de volta nos bares, era como se o calor humano emanando das pessoas lá dentro renovasse a energia colhida na praia.
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