


Foto: Frederico Mendes
Nos anos setenta, o Sol de Ipanema era o único hotel de frente para o mar na Avenida Vieira Souto. Minha turma de amigos caretas; Mauricio, Jaime, Hélcio, Davi, Leo e companhia pegavam sua praia bem na frente dele. Apesar de todas as transformações que estava passando, a gente ainda era colado e jogávamos futebol juntos direto. Por ser na esquina com a Rua Montenegro, que mais tarde seria renomeada Rua Vinicius de Moraes, meu caminho natural para a praia, aquele ponto de encontro não podia ser mais cômodo.
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Numa manhã ensolarada de sábado, com a praia ainda vazia, Hélcio e eu estávamos sentados ali na beira d’água descansando do bodyboard. De repente um cara magro, com um corpo bem definido, quarentão apareceu na nossa frente e começou a jogar frescobol numa tanga fio-dental de crochê escandalosamente minúscula. O cara até que jogava bem, mas depois de um tempo de ficar olhando para aquilo ligeiramente incomodado, virei para o Hélcio e perguntei.
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“E aí, Hélcio? Quer de Natal uma tanguinha como a do teu amigo?”
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Hélcio nem se dignou a responder, mas passado alguns minutos a cara dele acendeu. Ele me cutucou e cochichou no meu ouvido, “Rique, aquele não é o Gabeira?”
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Hélcio estava se referindo ao jornalista Fernando Gabeira, um dos exilados mais famosos que, em 1969, tinha se envolvido no sequestro do embaixador americano no Rio, Charles Elbrick. Na altura, sua autobiografia O que é Isto, Companheiro?, um relato na primeira pessoa de como tinha sido o mundo das organizações de luta armada, era leitura obrigatória. Nele, descrevia seu caminho até se envolver naquela situação, sua participação no sequestro do embaixador americano, o cativeiro do diplomata e finalmente sua prisão. Depois, relatava sua estadia no cárcere, sua troca junto com alguns companheiros por um outro figurão estrangeiro e na sequência, sua vida no exílio.
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O livro se tornou polêmico na esquerda porque, além das críticas tanto à metodologia quanto aos objetivos da luta armada, o ex-guerrilheiro confessou que durante aqueles tempos heroicos tinha sido ativamente bissexual. Lançando esse escândalo na veia jugular da militância, agora exposta como retrógrada ao invés de vanguardista, surfando na onda da fama, Gabeira abriu um caminho alternativo de resistência ao regime e à burguesia, que denominou “política do corpo”. O que ele realmente quiz dizer com aquilo é ainda hoje motivo de debate. Só sei que um receituário para revolução prescrevendo honestidade consigo mesmo, rejeição à imposições de qualquer lado e sexo livre, caiu bem na República de Ipanema.
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“Sei não, Hélcio, só vi a recepção dele no aeroporto na televisão. Não dá para dizer, mas pela tanguinha é capaz.”
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“Tenho quase certeza. Vou dar uma olhada na contracapa do meu livro quando chegar em casa, tem uma foto dele lá.”
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De noite, Hélcio me ligou confirmando que o cara da tanguinha era o Gabeira mesmo. O mais estranho é que devia ter um fotógrafo na área o seguindo, porque no dia seguinte, jornais de um lado a outro do país estamparam suas capas com uma foto do ex-guerrilheiro em seus trajes mínimos bebendo mate gelado, em frente ao Sol de Ipanema.
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As praias do Rio tinham - e ainda têm - uma programação e uma demarcação territorial rígida. Isso permitia a qualquer um dizer: “Diga-me quando e onde você toma sol que te direi quem és.” Agora, de madrugada os pescadores de Copacabana – que também pescavam em Ipanema – dividiam o mar com centenas de surfistas. Na areia, praticantes de Yoga e Tai Chi solitários meditavam sob os primeiros raios de sol enquanto corredores e ciclistas se exercitavam no calçadão. Mais tarde, da mesma forma de quando era criança, a posse da praia passava às famílias; crianças, mães, avós, babás, cães e todos os outros componentes da vida doméstica brasileira. Depois das nove da manhã o surfe era interditado. Quando tinha onda, o mar era dos pegadores de jacaré e a tarde o domínio voltava aos surfistas. Nos fins de semana, por volta do meio-dia as famílias voltavam para casa e daí para frente, tanto as pessoas que chegavam quanto as que ficavam faziam as subdivisões da praia mais interessantes.
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Havia o local da testosterona, cheio de fisiculturistas e lutadores de Jiu-jitsu. Havia um local para os yuppies. Outro segmento era uma extensão da cena gay carioca. Havia um point para os surfistas, uma área para os favelados, uma para a as "patricinhas" e os "mauricinhos" elitistas, outra para as profissionais do sexo – não coincidentemente a mesma para os turistas – e uma área reservada para os jogadores de futebol e suas comitivas de fãs e puxa-sacos.
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O local da praia onde tínhamos visto o Gabeira, inicialmente conhecido como o Sol de Ipanema, ficaria famoso como o Posto Nove, ou simplesmente o Nove – o nome derivado da estação de salva-vidas número nove que ficava em frente ao Hotel Sol de Ipanema.
Depois que traineiras e guindastes cortaram a onda da galera das Dunas do Barato demolindo a estrutura do Pier de Ipanema, e principalmente depois que a foto do Gabeira de tanga percorreu o Brasil inteiro, o Nove herdou o status de Woodstock carioca. Nas décadas seguintes a área seria o reduto dos seguidores das ideologias e dos estilos de vida dos anos sessenta e setenta. Sem a presença de surfistas, aquela passou a ser a praia dos artistas, dos músicos, dos atores e dos intelectuais – tanto os já estabelecidos quanto os que viriam a se firmar e os que nunca iam dar em nada. O clima era tão libertário que alguns diziam que os Beatles haviam profetizando sobre aquele trecho das areias de Ipanema na sua música mais estranha: Revolution Number Nine.
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Com a chegada da abertura política, bandeiras dos partidos de esquerda recém-legalizados passaram a balançar sobre as cabeças dos frequentadores sob o céu azul. Enquanto a festa-praia tomava corpo, os garotos da famosa barraca do Batista corriam de um lado para o outro levando garrafas de cerveja em isopores e as caipirinhas mais saborosas das praias do Rio.
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O constante de cannabis no ar era abençoado por um acordo tácito entre a polícia e a galera que rezava informalmente que uns não dariam trabalho para os outros; os frequentadores se restringiam àquela área e em contrapartida os policiais não vinham encher o saco. Contudo durante campanhas eleitorais o acordo às vezes era quebrado sob a pressão de candidatos conservadores. Só que quando as batidas aconteciam, a galera afugentava os polícias com vaias e na confusão todos enterravam os flagrantes o que fazia com que prisões fossem raras. Anos mais tarde, quando a repressão passou a vigorar pelo ano inteiro, viria o apitaço onde todos levavam apitos para a praia e os soavam quando a polícia aparecia.
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Mas não era só a fumaça que caracterizava o local. Sempre havia rostos famosos curtindo sua praia de fim de semana, os gays que iam lá eram mais desinibidos e volta e meia casais se beijavam abertamente na frente de todos, um ultraje na época.
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Foi lá também que aconteceram as primeiras tentativas de topless urbano no país. Contudo, nesse aspecto o Nove se viu avançado demais para a caretice do país. Quando as meninas tiravam a parte de cima do biquíni, atraiam a curiosidade indesejada de um pessoal que não pertencia à área. Com uma atitude medieval, jovens, alguns até aspirantes a surfista, favelados, marombeiros, pais de família branquelos e barrigudos, se aglomeravam em torno delas com uma mistura de fascínio e de repúdio. Como porcos nervosos se empurravam uns aos outros para espiar aqueles peitos corajosos expostos ao céu aberto. Muitas dessas confusões acabavam com uma chuva de areia em cima das beldades ou com intervenção policial. Uma vez, um sujeito que estava com as meninas resolveu tomar suas dores. Ele se levantou, baixou o calção e seu pinto encolhido pela água dissipou a urubuzada na hora. Talvez essa fosse a política do corpo que nunca cheguei a entender.
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Conforme a malucada foi tomando conta do pedaço, meus amigos caretas passaram a se encontrar em outro ponto, mas eu fiquei. Embora rejeitassem a "erva maldita", o Hélcio e o Davi acabaram entrando na minha onda. Os dois também não tinham muita paciência para os papos caretas e as fofocas e, como eu, estavam cientes de que rolava mais possibilidades de sexo com as meninas do Nove do que com as caretíssimas que tinham se juntado à turma.
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Além da conveniência de ser a praia natural da minha rua, me sentia em casa ali. Conhecidos de outros círculos também frequentavam a área: malucos do Colégio Andrews, gente que tinha conhecido na balada e nos shows e membros da esquadrilha da fumaça da Escola Americana.
Não era preciso marcar de se encontrar com ninguém, era só necessário comparecer. O Nove era um clube. Passávamos o dia conversando com conhecidos ou não, sobre mulheres, música, cinema, futebol e política. Quando o sol ficava muito forte ou se o papo ficava chato, havia o oceano em frente nos convidando para dar uma renovada nadando ou pegando jacaré quando as ondas estavam boas. Também se jogava muito frescobol, xadrez e jogos de cartas nas toalhas e debaixo dos guarda sóis. As meninas que interessavam também iam lá e a paquera e os olhares fatais não cessavam.
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Quando o sol começava a se pôr, o point esvaziava e o clima ficava mais intimista e sereno. Nessa hora, o Nove se tornava ainda mais mágico, não só por causa da beleza natural e a luz mais branda, mas também por causa da quantidade de gente bonita, jovem e situada. Havia uma paz derivada de corpos curtidos pelo sol num dia ao ar livre, amaciados pela água salgada e agora envoltos pela brisa do fim de tarde.
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Nos melhores dias, a praia terminava com todo mundo aplaudindo o sol de pé enquanto ele desaparecia no horizonte ao lado do morro Dois Irmãos. Depois disso, todos seguiam seus próprios caminhos, normalmente indo para casa para tirar um cochilo antes de sair para alguma festa ou um show sobre os quais todos tinham conversado mais cedo na praia. Neles, aquela tribo de almas livres e bronzeadas se re-congregava.
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