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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 16

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Foto: Pinterest (domínio público)

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"Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria"

Apesar de você - Chico Buarque

No final dos anos setenta, o Teatro Tereza Rachel em Copacabana, era uma das principais casas de shows do Rio. Ficava na mesma galeria que o teatro Opinião, espaço icônico tanto para a Bossa Nova quanto para o Samba carioca. Por ser grande e por ser na Zona Sul, os melhores artistas e as melhores bandas se apresentavam lá: Rita Lee, o Terço, Raul Seixas, A Cor do Som, Vímana - a banda de rock progressivo em que Ritchie, Lobão e Lulu Santos começaram - Moraes Moreira, Belchior, Alçeu Valença, Joelho de Porco, João Bosco entre muitos outros.

 

Não me lembro de quem era o show, só sei que ao sair com os ouvidos ainda zunindo do volume ouvi alguém dizer. “Caralho! Mataram o John Lennon a tiros em Nova York! Tá dando aqui na rádio!”

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“Que é isso, tá doido!?”

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“Não! Tão dizendo aqui que um maluco atirou nele na porta de casa!”

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Todos ficaram em silêncio. Ninguém conhecia o cara, talvez estivesse de sacanagem. Mesmo assim, fomos para casa com aquilo na cabeça. Na manhã seguinte, os jornais confirmaram, e o mundo, em choque, enlutou. Mais que um artista, John Lennon representava uma postura, uma promessa. Como podia ter terminado daquela maneira? E por quê? 

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Na televisão, repórteres no Brasil inteiro e no exterior colhiam reações de pessoas comuns nas ruas e de artistas famosos, todos com olhos lacrimejantes. Não sei explicar, mas a sensação era de que estava tudo conectado. A separação final dos Beatles, a minha proximidade da morte ao subir para o Noites Cariocas, a prisão de alguns amigos da escola por posse de drogas, o rompimento de Sarah com seu noivo de longa data; era como se uma onda de mudanças negativas estivesse encobrindo a tudo e a todos.

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Por outro lado, no contexto mais amplo, havia uma onda de mudanças positivas no Brasil. A classe média estava começando a perceber que a falta de alternativa para o regime militar era um problema. A gota d'água foi a prisão, tortura e assassinato do jornalista Vladmir Herzog, mal disfarçado como suicídio em 1977, em São Paulo. Isto desencadeou uma onda de indignação e protestos sem precedentes pelo país. Pela primeira vez depois do AI-5, várias lideranças políticas, culturais e mesmo religiosas expressaram publicamente suas consternações. Esquecendo o medo, quase todos os veículos de comunicação publicaram estes protestos.

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Havia mais. Agora que ninguém em sã consciência podia temer que o maior país Sul-Americano se tornasse um satélite soviético, o status dos generais brasileiros no exterior havia mudado. Apesar de os Estados Unidos ainda estarem apoiando ditaduras no Chile e na Argentina, seus lobistas e especialistas em América Latina tinham passado a ver a ditadura atrapalhada e corrupta do Brasil como um embaraço desnecessário.

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Sentindo a mudança de atitude de seus apoiadores, tanto dentro como fora do país, os militares tomaram medidas conciliatórias. O gesto mais significativo foi a concessão de anistia para a maioria dos exilados e dos prisioneiros políticos. Mesmo que isso os tenha ajudado a permanecer no poder por mais tempo, a própria decisão e a abertura política - com a introdução de partidos de oposição de verdade - que veio a seguir, marcou uma vitória da oposição e iniciou o ciclo democrático mais longo que o país viria a vivenciar. 

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No retorno ao seu país, do dia para a noite, os dissidentes políticos passaram de assunto tabu a celebridades com status de herói. Figuravam toda hora nos jornais, em programas de entrevistas na televisão e seus livros de memórias se tornaram best sellers. Lendo-os, descobrimos que muitos, tais como a gente, eram jovens típicos da classe média carioca que tinham se deixado levar pela agitação política do seu tempo. 

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Lemos sobre seus períodos de treinamento em Cuba e em outros lugares atras da cortina de ferro. Como a seguir, se infiltraram no Brasil, onde pegaram em armas lutando pelos seus ideais. Depois que suas organizações foram reprimidas e ficou claro que a resistência armada à ditadura tinha fracassado, os que sobreviveram foram obrigados a repensar no exílio ou na prisão, seus conceitos sobre militância e sobre como se posicionar num mundo sem possibilidades de rebeliões populares.

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Após os festejos pelo seu retorno, a imensa maioria dos anistiados tonou um rumo parecido com o dos artistas exilados e se reintegraram à vida do país com agendas mais práticas. Aproveitando a sua recém-adquirida popularidade, figuras como José Genoíno, Fernando Gabeira e Carlos Minc, por exemplo, ingressaram na política convencional e se tornariam senadores ou ministros, enquanto Dilma Rousseff seria eleita presidente. Outros ex-exilados ocupariam lugar de destaque no processo de redemocratização. Entre eles, o veterano Leonel Brizola, o ex-governador do Rio Grande do Sul, que viria a ser o governador do Rio de Janeiro e seu companheiro de chapa, seria o lendário antropólogo Darcy Ribeiro. O ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, se reelegeria para o mesmo cargo. Havia inclusive políticos mais ao centro nessa leva, como o futuro presidente sociólogo Fernando Henrique Cardoso e o futuro líder do PSDB, José Serra.

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Admirávamos todos e recebemos de braços abertos os ventos democráticos, mas com eles apareceram questões de identidade na nossa geração. A militância heroica era agora uma coisa do passado. Mesmo assim, queríamos as mesmas coisas pelas quais tinham sacrificado a sua liberdade e, em alguns casos, a própria vida. Apesar das novidades políticas, a desigualdade econômica e o aparelhamento antidemocrático do estado continuavam. Sem intimidade com a democracia, achando que só uma revolução resolveria, do nosso ponto de vista nossos ídolos estavam ansiosos para se juntar a um sistema ao qual, pelo menos ideologicamente, estávamos resistindo. Era decepcionante ver muitos deles usando, sem um pingo de vergonha, o seu passado de lutas para promover carreiras num rumo completamente contrárias ao que acreditaram no passado. 

 

Deveríamos aceitar sua liderança? dar tudo por encerrado e concluir que éramos inúteis? Estava claro que para eles esse era o caso. Para nós a pergunta que não queria calar era a de como se posicionar. A ditadura havia simplificado as coisas; até então, a escolha tinha sido entre ser a favor ou contra o regime. Dependendo do lado que você estava, você podia jogar a culpa por todos os males do mundo nos generais ou nos comunistas. Com o fim desse tempo agora no horizonte, se abriam novos desafios e as pessoas pareciam não saber como lidar com as sutilezas da liberdade. Levaria tempo para que o país atingisse um estado de maturidade política.

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Alguns companheiros de geração copiaram os ex-exilados e ex-prisioneiros políticos e entraram em partidos convencionais, principalmente no recém-criado Partido dos Trabalhadores. O PT não tinha nada a ver nem com a resistência glamorosa dos que estavam retornando, nem com a postura anti-imperialista da Revolução Cubana. Proveniente de sindicatos na periferia de São Paulo, seu objetivo era proteger os direitos e os salários dos trabalhadores nos moldes do Partido Trabalhista Britânico quando começou. 

 

Até cheguei a ir com amigos a reuniões para ver como é que era. Porém, por não termos nem “pedigree” operário nem “pedigree” na militância tivemos uma recepção fria. Na hora que os esquerdistas de raiz viam cabeludos bronzeados da Zona Sul entrando no recinto, pensavam ou que éramos playboys imbecis ou que éramos o inimigo. Nos outros partidos “underground” a rejeição era igual ou pior. Eram elitistas às avessas, herméticos e exigentes demais com seus novos recrutas, talvez por rancor. Os únicos “burgueses” bem-vindos nessas organizações ou eram celebridades, ou era gente bem conectada que podia trazer votos e respeitabilidade. 

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O conceito de eleições livres com partidos profissionais voltados para eleger quadros e exercer mandatos, era difícil de digerir. Talvez não tivéssemos maturidade para aquilo. Aquela recepção, porém, fez com que perdêssemos o tesão pelo ativismo político. Por outro lado, para os agora saudosistas da ditadura, o conceito de aceitar reveses eleitorais e se organizar em partidos se provaria de ainda mais difícil assimilação. De qualquer forma, não engolia inteiramente as pautas dos partidos de esquerda. Acreditava que a luta deveria ser pautada na qualidade de vida de cada indivíduo e não de uma classe, conforme descrito nos seus fundamentos. Faltava utopia e uma visão mais abrangente do ser humano. Está certo que vencer eleições e se organizar era fundamental, pero sin perder la ternura nem o foco. 

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Naqueles tempos de reconstrução democrática só uma coisa parecia clara: os militares iriam tentar se agarrar ao poder por mais tempo que fosse possível. Com uma crise econômica no horizonte todos sabiam que quando chegasse a hora de largarem o osso, o país estaria nas últimas. Isso colocava duas perguntas: em que estado deixariam o Brasil quando partissem e como seria a vida sem eles?

 

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