

CAPÍTULO 14

Foto: Jan Ribeiro / Prefeitura de Olinda
“... quero sentir
A embriaguez do frevo
Que entra na cabeça
Toma o corpo
E acaba no pé."
Capiba – Voltei Recife
Na minha queda à la Ícaro da Escola Americana pousei no Colégio Andrews, uma escola de classe média situada de frente às pistas movimentadas que cercam a belíssima praia de Botafogo. Apesar da chacoalhada no meu status em casa e na autoconfiança, estava contente com a novidade pois finalmente teria colegas como quaisquer outros adolescentes da minha idade e, quem sabe, finalmente deixaria de ser um estranho no ninho. De quebra, as férias eram maravilhosas. Além de serem no verão - as das escolas britânica e americana eram em julho e agosto - eram enormes. Se as notas fossem boas, começavam na metade de dezembro e só terminavam no meio de março.
No início foi puxado. As aulas eram em português e disciplinas como química, matemática e física eram muito mais avançadas. Por isso, não fui bem no meu primeiro ano e terminei ficando de recuperação em dezembro e janeiro. Apesar do orgulho ferido, passar a manhã inteira pegando jacaré para depois ir à escola por uma hora ou duas não era nenhuma tortura.
​
Depois que passei nas provas finais, ainda sobravam dois meses pela frente. Do nada, Davi, um amigo novo da turma do Maurício, me convidou para passar um mês em Recife na casa de uns parentes, carnaval incluso. Talvez por se sentirem culpados pela bagunça que fizeram na minha criação e por eu agora ser velho demais para colônias de férias, Renée e Rafael deram sua permissão sem maiores problemas. O fato de Davi ser um ano mais velho, ter acabado de passar no vestibular e pertencer a uma respeitável família judaica, certamente ajudou.
​
Para mim, viajar para outra capital brasileira sem meus pais era uma aventura espetacular, ainda mais no Nordeste. Aquela parte do país estava da moda graças a uma onda de artistas vindos de lá: Alceu Valença, Fagner, Belchior, Zé Ramalho e Geraldo Azevedo entre outros. Além disso tínhamos curiosidade de conhecer aquela região que, no nosso preconceito, era um país exótico dentro do próprio Brasil que vivia cinco ou dez anos atrás do Rio. Encerrando nossas expectativas com chaves de ouro, a reputação do Carnaval do Recife era a melhor possível.
​
O único problema era a viagem em si. A distância entre o Rio de Janeiro e o Recife é de 2.300 km. Aviões na época eram coisa de milionário e o único jeito de chegarmos lá seria encarar uma viagem de ônibus de 43 horas.
​
*
No aguardado dia da partida, cheguei com meus pais na rodoviária pronto para a aventura. Era uma noite quente de janeiro e o terminal estava apinhado. Passageiros e acompanhantes de todas as cores e classes sociais estavam fazendo fila nos balcões das viações e passeando pelas bancas de revistas, barraquinhas de comida e lojas de lembranças. Para mim, o buchicho era uma vibração estimulante, uma antessala do que estava por vir, mas para o Seu Rafael e para a Dona Renée o excesso de gente humilde era incômodo.
​
Fomos nos sentar num pé sujo, o melhor da rodoviária mas que não era lá essas coisas, onde tinha marcado de encontrar o Davi. Pedimos um café e ficamos esperando, eu contentíssimo e eles detestando estar ali.
​
“Tem certeza de que é isso que você quer nessas férias, Richard? Você ainda pode mudar de ideia.” Rafael não podia acreditar que seu filho quisesse se misturar àquela gente e partir numa viagem tão estúpida. “Viajar nessas condições tendo uma casa confortável para passar o verão em Teresópolis? Não entendo.”
​
“Sim pai, férias foram inventadas para curtir, não para ficar escondido.”
​
“Mas o Sérgio Birman e o Mario Halpern têm casa lá. Por que você não fez como eles e passa o verão com a família?”
​
“De novo!? Eles gostam de ir para lá porque ficam em condomínios jogando bola, saindo e curtindo com um monte de amigos. Entende? Curtir? Amigos?”
​
O tom da conversa piorou. “Depois das notas que tirou, você deveria estar pensando em estudar para alcançar os colegas.”
​
Odiando o lugar, já sabendo o que eu ia responder e com uma ponta de inveja, Renée se meteu. “Você é egoísta demais, não quer saber de estudar, nem de ficar com seus pais nas férias. Cadê a apreciação pelo esforço que fizemos para construir uma casa de campo para vocês?!”
​
“Pra gente? Ah! Dá um tempo!” Já não estava vendo a hora de entrar naquele ônibus. “Vocês construíram a casa para tirar onda com os teus amigos! A gente nunca pediu aquela casa e você sabe disso!”
​
Meu pai me reprovou com um olhar, mas o sangue já tinha subido à cabeça e continuei.
“Egoísta? Eu, né? Quem é que me internava todos os anos numa colônia de férias para ir curtir na Europa? Agora é a minha vez, tá legal?”
​
Davi e seus pais chegaram a tempo de evitar uma degringolada séria. Paramos de falar em inglês e nos levantamos para cumprimentá-los. A apresentação foi formal e um tanto desconfortável. O casal não era tão velho e falavam português sem sotaque; algo ligeiramente desqualificador aos olhos dos meus pais. Por outro lado, a sua visível repulsa com a “diversidade” na rodoviária era reconfortante. De qualquer maneira, tínhamos pouco tempo; faltava meia hora para o ônibus partir.
​
Depois de pagar a conta, fomos todos para a área de embarque. O sistema de informação era confuso e demoramos para achar a plataforma. Descemos a escadaria de metal ainda faltando dez minutos. Lá embaixo, abrimos caminho em meio a filas de famílias nordestinas falando alto e colocando malas velhas e bolsas gigantescas nos compartimentos de bagagem. Nossos pais não conseguiam disfarçar o choque. Constrangidos pela sua presença e sem ver a hora de embarcar, Davi e eu já estávamos de olho em umas garotas que também pareciam da Zona Sul e igualmente perdidas naquela confusão. Sem os pais, mas acompanhadas de dois caras mais velhos, estavam em cinco usando vestidos floridos, cheias de pulseiras artesanais e colares de contas. Nos decepcionamos quando as vimos subindo no ônibus para Maceió.
​
Depois das recomendações finais, demos as passagens ao motorista, entramos, encontramos nossos assentos e nos despedimos na janela enquanto o ônibus saía da baia de ré.
​
*
Apesar de introvertido, Davi era superinteligente e craque no futebol. Não era de tirar onda mesmo tendo acabado de passar para duas faculdades: psicologia e economia nas melhores universidades. Não o conhecia há muito tempo, mas a gente se dava bem. Assim que o ônibus começou a acelerar para fora da cidade, ele soltou um embaraçoso “Agora que os pais ficaram para trás, é com a gente.” Mudei de assunto e ficamos batendo papo até conseguirmos dormir.
​
Quando acordamos, já estávamos em território desconhecido. Os primeiros vilarejos começaram a passar pela janela com homens de chapéu de palha montados em jegues ao lado de carros velhos descendo por estradas de terra nas laterais da rodovia. Vimos gente escovando os dentes nos tanques fora de casebres de barro com cobertura de palha cercados de coqueiros, mulheres carregando latas d'água e sacos de roupa para lavar na cabeca, gente trabalhando em tendas vendendo comida, crianças mal vestidas brincando nas ruas e varios outros personagens típicos que davam vontade de conhecer.
​
Conforme fomos avançando pela BR-101, o que passou a chamar a atenção foi a extensão do desmatamento. Na escola, tínhamos aprendido que a Mata Atlântica cobria toda aquela área. Esperávamos que o ônibus fosse passar por baixo de árvores com macacos pulando de um lado da estrada para o outro. Em vez disso, em ambos os lados, via-se uma paisagem de campos devastados que pareciam não ter fim. As únicas árvores ainda de pé eram aquelas feitas de madeira dura demais para motosserras e resistentes ao fogo.
​
Depois de um certo tempo, as coisas começaram a mudar no ônibus. Quanto mais ao norte chegávamos, mais parecia que um peso havia sido retirado das costas dos nossos companheiros de viagem. Todos passaram a ser mais amigos, a falar mais alto e a perder a vergonha de seu sotaque.
​
“Oxente, esse ônibus num vai chegar nunca, não? Tamo aqui faz mais de um dia!”
​
“É verdade, já tô aperreado!"
"Pelo menos esse ônibus da Cometa é mió que os de lá!"
​
"Você é di ondi?”
​
“Sou de Teresina, mas tô indo mais os filho visitar a família no Recife e você?”
​
“Sou do interior, de Itapetim. Tou trabalhano no Rio faz dez anos e tô voltano só agora pra visitar a família.”
​
“Cunheço Itapetim, uma das minhas irmãs se casou e foi pra lá pra morar.”
​
Os restaurantes de beira de estrada também foram mudando: a comida ficou mais em conta, bem menos saudável e as moscas sobrevoando os pratos, os talheres e os copos baratos começaram a incomodar. Os DJs das rádios passaram a soar nordestino e entre anúncios de pamonha, rapadura e do comércio local, tocavam os ritmos da terra que nossos artistas favoritos tinham estilizado.
​
Nossos companheiros de viagem começaram a se aproximar da gente.
​
“Já experimentaste rapadura? Não? Pega um pouquinho aqui. Isso com queijo coalho é mió do que caviar importado.”
​
“Ocês tão indo para o Recife? Para o Carnaval, né? O sinhô sabia que lá a gente não fala aipim, a gente fala macaxeira.”
​
Um outro acreditou na nossa curiosidade forçada e emendou: “É, e abóbora a gente chama de jerimum. É tudo diferenti!”
​
Outro começou a falar sobre as maravilhas da cachaça pernambucana. “O Geovina! Ainda tem daquela cachaça de alambique para o rapaz experimentar? Traz aqui pra esses minino. Vê, tome um pouquinho, num tem gosto de cana memo?”
​
Eles sabiam quem éramos: bons garotos da elite educada, para eles o orgulho da nação. Em vez de raiva ou inveja, mostravam um respeito genuíno. Não tinha certeza se podiam enxergar a diferença entre nós e a maioria dos nossos pares de mesma idade. Os respeitávamos e tínhamos interesse pelas coisas que tinham a dizer, algo bastante incomum.
​
Apesar de ficarmos encantados com a acolhida calorosa, para nós aquela viagem não era um exercício político-social. Nossas intenções não eram, de forma alguma, nobres. Como todos os adolescentes do sexo masculino no planeta, só tínhamos um objetivo: pegar garotas. Estávamos a caminho do Carnaval do Recife atrás de sexo gratuito, consentido e sem o envolvimento das mãos. Nossas expectativas eram grandes. Estávamos prontos para nos dar bem usando a vantagem de vir do Rio, terra da TV Globo e de atores e atrizes famosos.
​
*
Fomos recebidos calorosamente pela família do Davi. Sua tia morava com o marido num sobrado charmoso no bairro da Boa Vista. A casa era antiga, o chão era de azulejos e à noite o vento fresco entrando pela janela imensa compensava a falta de ar condicionado no quarto.
​
Quase não parávamos em casa. De dia partíamos para praia de Boa Viagem. A noite, ou ficávamos por lá ou nos aventurávamos nos pré-carnavais do bairro. Neles, nossas esperanças de aspirantes a faunos foram confirmadas apenas parcialmente: as únicas garotas que nos davam qualquer tipo de bola eram as certinhas vindas de boas famílias. Só que sexo para elas era só depois do casamento. Apesar dos olhares assassinos e de até conseguirmos dar uns amassos, os avanços sempre acabavam bem antes do motivo pelo qual tínhamos viajado tão longe.
​
“Se acalme minino, não pode botar a mão aí não.”
​
“Mas você não está gostando?”
​
A cara dizia tudo. “Pare! Se meu irmão ali vê, ele conta pra minha mãe e ela me mata. Num era nem para eu estar aqui com você!”
​
“Então me dá teu telefone que a gente marca para outro dia!”
​
“Aff, se meu pai atender ele me deserda! Num dá!”
​
E elas não davam de jeito nenhum. Beijar um estranho vindo do Sul já era muita audácia. Se para conseguir ao menos isso a gente tinha que suar a camisa e ter paciência, o resto era inimaginável.
​
Houve uma exceção: uma loira falsa, um pouco mais velha e sem sutiã. A gente deu a azarada casual de praxe enquanto um bloco pré-Carnavalesco passava no calçadão da praia numa tarde. Agimos como sempre: a elogiamos enquanto passava e ficamos esperando por uma reação. Ao contrário das outras que olhavam para trás, ou sorrindo ou fechando a cara, mas que continuavam em seu caminho, ela parou para conversar.
​
Apesar de estar sozinha, aceitou vir com a gente para os fundos de uma construção e se sentou entre nós. Sua calça jeans justa revelava um corpo magro e torneado. O seu perfume barato e suas unhas pintadas de vermelho, meio “aputalhadas”, nos encheram de tesão adolescente. Ela parecia estar gostando da situação. Conforme a coisa foi esquentando, havia muita excitação no ar, mas nem o Davi nem eu queríamos deixar o prêmio para o outro. Ela não demonstrou qualquer preferência, só que a bagunça chegou num ponto que ela acabou não conseguindo lidar com o ataque de quatro mãos adolescentes, se levantou e foi embora.
​
*
