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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 13

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Foto: Pinterest (domínio público)

 “...foi quando meu pai me disse filho,
Você é a ovelha negra dá família.
Agora é hora de você assumir.”

Rita Lee  –  Ovelha Negra

Teresópolis, famosa por ser o balneário onde a seleção se concentrava antes das Copas do Mundo, era uma cidade de veraneio situada a uma hora e meia do Rio na lindíssima Serra dos Órgãos. A localidade era popular junto a colônia judaica. Meus pais conheciam muita gente com casas de campo lá e, quando criança, costumávamos passar verões ali hospedados em sítios de amigos ou em hotéis fazenda. 

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Durante uma dessas estadias, alguém acenou para Rafael com a oferta de um terreno a um preço acessível, num recanto remoto chamado Jardim Salaco. Sempre aberto a oportunidades, Rafael resolveu dar uma olhada e quiz levar a família junto para ver se a gente gostava. Sabendo que passar um dia longe da piscina seria chato para nós, meu pai teve a ideia de organizar a ida numa charrete.

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Partimos cedo com o som do trote de cavalos ecoando nas ruas de paralelepípedo. Fora da cidade, passamos pela Granja Comary, o enorme hotel fazenda onde a seleção treinava. Depois dela, a estrada se transformou numa de terra batida. Os arredores passaram a ser campestres e seguimos por um vale até entramos em uma estradinha. Seguimos sentindo o cheiro do mato na manhã seca, cobertos por árvores. Lá pelas tantas, subimos um morro onde na sombra ficava fresco e nas clareiras ficava calor por causa do sol forte. Durante a viagem inteira, o dono da charrete açoitava sem parar os dois cavalos exaustos da rotina completamente diferente das voltas preguiçosas que davam para turistas na cidade. Com viseiras nos olhos, levando cinco pessoas numa estrada íngreme, suavam pelo corpo inteiro, deixando para trás um cheiro forte.

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Paramos no final da estrada; um fim de mundo no meio do nada. O corretor, Seu Mendes, tinha ido na frente de carro e estava a nossa espera. Careca, vestindo uma calça de tergal, segura por suspensórios passando por cima da sua barriga avantajada, estava cheio de sorrisos e de conversa fiada. Depois das introduções, ele nos levou até a porteira e nos convidou para entrar. O dono dos cavalos ficou do lado de fora e foi amarrar os bichos para descansarem do que talvez tivesse sido o passeio mais puxado das suas vidas. 

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O terreno era espaçoso e bonito. Ficava na descida de um morro e tinha uma vista espetacular de uma cadeia de montanhas que se estendia por quilômetros. Seu Mendes garantiu que num dia claro dava para ver até o estado de Minas Gerais. Fora isso e a carona apertada que nos ofereceu na volta, não me lembro de mais nada daquele dia. Só sei que Rafael acabou não resistindo à pechincha e comprou a terra em sociedade com um amigo, um ex-combatente da Resistência Francesa, Emile Weil, um sujeito magrelo com a cara invocada. 

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Depois da compra, meu velho não se entusiasmou em dar continuidade ao investimento e construir uma casa de campo. Além de ser caro, o projeto faria com que o casal abandonasse o hábito de passar as férias esquiando na Europa enquanto nos mandavam para colônias de férias.

 

Durante quase uma década a decisão do que fazer com aquele elefante branco foi sendo empurrada com a barriga. Enquanto isso monsieur Weil construiu uma casa lá. O que Rafael só soube de supetão é que, talvez esperando que o amigo acabasse vendendo sua parte, ele invadiu nosso lado do terreno sem consultar ninguém. Quando se deu conta, o francês estava usando a área toda como se fosse sua e isso chamou a atenção de meu pai.

 

Assim, anos mais tarde, subimos a serra e fizemos o mesmo passeio, dessa vez de carro direto do Rio para o terreno. A ideia era avaliar por quanto poderíamos vender a terra, mas o resultado acabou sendo diferente. Apesar da casa do agora ex-amigo ter o charme de um posto de gasolina e da presença nefasta do seu pastor alemão psicopata, Dayan, a beleza do lugar convenceu Rafael a construir uma casa ali para, quem sabe, passar a aposentadoria. Dona Renée adorou a ideia. Além de possuir um sítio significar uma subida de degrau na escada social, o projeto seria um passatempo novo e desafiador, já que a idade estava começando a prejudicar sua performance no tênis.

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Talvez por considerar que uma casa mais elaborada daria um retorno melhor na hora de vender, Rafael cedeu à insistência da esposa e a deu carta branca para que tocasse o projeto. Com uma responsabilidade concreta em suas mãos pela primeira vez em sua vida de casada, Renée passou a devorar revistas de decoração do mundo inteiro. No fim das contas ela planejou, junto com um arquiteto e um mestre de obras local, uma casa de estilo campestre francês. Como era de se esperar, o custo da construção estouraria o orçamento várias vezes e colocaria em xeque o futuro financeiro da família.

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Sarah e eu detestamos a decisão desde o início. Mesmo sendo novos demais para prever o quanto aquele projeto seria dinheiro, literalmente jogado no mato, era claro que aquilo era só para eles. Para nós, Teresópolis era um lugar chato onde a judeuzada careta se isolava nos fins de semanas. As casas dos poucos amigos que iam lá ficavam a quilômetros de distância. Para piorar as coisas, o único transporte público ficava a uma caminhada de quarenta minutos da casa, no ponto final de uma linha de um ônibus que saía de hora em hora. Ele parava de circular as nove da noite e não havia iluminação na estrada. Em suma, se subíssemos, era para se isolar. 

 

Tendo isso em mente, para nos atrair, desperdiçaram ainda mais dinheiro construindo uma piscina se esquecendo que já havíamos passado da idade de ficar brincando na água rasa. O projeto acabou sendo um enorme rodamoinho sugando a atenção e a energia dos nossos pais. Quando a inauguraram estava com 14 e Sarah com 19. O resultado foi que nos finais de semana, enquanto os dois se escondiam do mundo, ficávamos com a casa liberada sem qualquer supervisão. É claro que aproveitamos.

 

*

 

Aconteceu que o Fred, o líder da "esquadrilha da fumaça" da Escola Americana, dono do apartamento onde fui iniciado, também tinha uma casa ali, na outra extremidade da nossa rua. O terreno era bem maior com quadras de esporte e, claro, uma piscina. Quando nossos pais se conheceram, os meus ficaram contentíssimos pela coincidência. Mas a alegria durou até o momento em que confidenciaram que compravam maconha para o filho, a fim de evitar que o rapaz se envolvesse com traficantes. Desengonçado, grande, meio gordinho, tinha um olhar transtornado que parecia estar eternamente chapado. Para realçar a impressão, ele vivia às gargalhadas a respeito de coisas bizarras e sem graça. Se fosse pobre jamais seria ideal para uma amizade, mas, apesar de tudo, Renée e Rafael acabaram por tolerar, e mesmo estimular, minhas visitas à casa de Fred. Além disso, o pai era um arquiteto famoso, o garoto bem que poderia mudar e se tornar um contato valioso para o meu futuro. 

 

O plano meio que funcionou. Mais popular que eu na Escola Americana, por estar lá desde o maternal, ele sempre chamava muitos amigos, alguns até caretas, para passarem os fins de semana ali. Assim, passei a ir quando ele e a galera mais chegada subia. Num fim de semana fatal, fui para me encontrar com eles. Além dos baseados de praxe, havia dessa vez muita bebida. Desacostumado, acabei tão bêbado que depois de atacar a cadela da casa e de uma crise copiosa de choro, tiveram que ligar para meus pais. Bebida era algo que não se via em casa, ao ponto que em toda a minha vida, nunca vi Rafael sequer alegre por causa de álcool. Por isso, quando me viram, com 15 ou 16 anos de idade, completamente fora de controle, ficaram chocados. Colocaram a culpa no Fred, suspeitando que tinha colocado algo em minha bebida. Talvez fosse verdade, mas o mal já estava feito. Até então, tinha sido um artista sonhador. Depois do ocorrido, virei um adolescente problemático com tendência a vagabundo.

 

*

 

Minha situação doméstica era refletida nos versos de Panis Et Circenses dos Mutantes:

 

Eu quis cantar

Minha canção iluminada de sol

Soltei os panos sobre os mastros no ar

Soltei os tigres e os leões nos quintais 

Mas as pessoas na sala de jantar, 

Estão ocupadas em nascer e morrer.

 

Como na música, na hora do jantar nos transformávamos em personagens saídos de uma mistura de um filme caricatural de Fellini com um filme de vampiros do Bela Lugosi. Vestidos de maneira “apresentável”, nos sentávamos em torno de uma mesa clássica, grande, escura e fortemente envernizada no centro da ampla sala de jantar. Havia um candelabro macabro de bronze pendurado em cima. As cadeiras pomposas, porém desconfortáveis, combinavam com a mesa e com os móveis em volta, todos de madeira escura Penduradas nas paredes, pinturas clássicas de naturezas mortas e de passagens bíblicas emolduradas em um dourado pesado imitando antiguidades, completavam o ambiente mórbido.

 

Iniciávamos as refeições com frutas frescas, sempre a nossa espera numa vasilha de porcelana chinesa. Isso porque, por recomendação de um médico amigo da família, começávamos com alimentos saudáveis antes de passarmos às comidas mais pesadas. Quando todos haviam terminado, me pediam que pisasse numa campainha que ficava embaixo do meu pé. O barulho estridente na cozinha fazia com que a Dona Isabel interrompesse sua novela e entrasse com seu andar desajeitado para limpar a mesa e depois voltar com o prato principal. Enquanto comíamos, tínhamos que manter a pompa: nada de rádio ou televisão e muito menos atender ao telefone. Quando terminávamos, me pediam para pisar de novo na campainha a fim de chamar a sobremesa. Depois da sessão, Sarah e eu regressávamos ao planeta Terra, enquanto Renée e Rafael iam para a sala de estar onde passavam o resto da noite lendo ao som de música clássica.

 

Foi durante um desses jantares que meu pai limpou a garganta para dizer que uma faculdade de cinema nos Estados Unidos ou na Inglaterra estava fora de questão. Apesar da decepção, a notícia era previsível depois de tantas cagadas. Além do mais, a impressão deixada em Teresópolis, fez com que minha escolha de carreira mais parecesse uma provocação do que qualquer outra coisa. 

 

Ligeiramente chocado, reclamei. “E o que é que você quer que eu estude? Como que vou conseguir trabalhar com o que eu quero?”

 

“Trabalhar com o que quer? O que você sabe sobre trabalho e sobre cinema?” Ele me olhou sério. “Isso não é profissão, é hobby! Profissão é médico, engenheiro, advogado.”

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Me sentindo atacado, respondi a altura. “Fiz um filme que foi exibido na América Latina inteira, e sei o que quero! Dá para entender?” Ele não respondeu, mas desaprovou. Encorajado, continuei. “Quem não sabe do que está falando é você! O que você entende de cinema? Qual o último filme que você viu? Charlie Chaplin? Fred Astaire?”

 

“Essas ideias são coisas que esses vagabundos, filhinhos de papai, estão colocando na sua cabeça.” Rafael não tinha o pavio curto como eu, mas pegava pesado nos argumentos. “Vê a tua irmã? Ela está indo bem na faculdade. Vai ser dentista. E sabe por quê? Ela não fica perdendo tempo. Você é mais inteligente que ela, tira nota boa sem precisar estudar. Toma jeito e vira homem?!”

 

Fiquei puto. “Será que estou falando com as paredes?!" Já perdendo o controle emendei. “Se virar homem significa baixar a cabeça e virar capacho de escrotos em um escritório, quero ser um super-homem e ser dono do meu nariz."

 

Ele também subiu o tom. “Você é um moleque mimado que não faz ideia do que está falando. Se você não me ouvir agora, a vida vai te ensinar.”

 

“Pois é, não tenho nada a aprender com você.” Me levantei da mesa e fui para o quarto.

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Talvez se fosse outra família ou se meu pai fosse mais jovem, Rafael teria ido atrás e me dado uma surra, mas a resposta foi o silêncio passivo-agressivo de sempre que durou semanas.

 

Apesar daquela doideira toda de mudanças de escola e de descobertas secretas, ainda me via como um futuro cineasta, nascido no país e na família errada. Sem contar nem com compreensão nem com apoio em casa, e com ninguém a quem correr, aquele episódio, e os inúmeros antes e depois dele, acabaram me marcando mais fundo do que percebia.

 

*

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Quem precisava daquela Escola Americana cara, cheia de maconheiros alcoólatras se eu não ia mesmo estudar cinema? Pouco depois daquela conversa, anunciaram que me colocariam de volta no sistema brasileiro. Tinham que fazer isso rápido para que tivesse tempo de me preparar para o vestibular e ser aprovado em uma universidade brasileira. 

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Da minha parte, conseguia entender que o esforço em apostar numa carreira acadêmica exorbitante no exterior seria puxado, principalmente numa carreira questionável. Mas todo aquele papo furado para mascarar o fato de que a grana toda tinha ido para construir uma casa que ninguém precisava, me deixou inconformado. De qualquer forma, quem tinha que construir meu futuro era eu. Pensando bem, a situação não seria das piores; mais tarde poderia estudar cinema no Brasil. Tinha ouvido falar que o curso da USP em São Paulo era bom. Com algum talento e muito esforço, tudo iria dar certo.

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Como era de se esperar, as mudanças educacionais vieram acompanhadas de um pacote maior. O clima em casa mudou radicalmente. Eles queriam me enquadrar; os sermões sobre a importância do sucesso financeiro e de ter uma profissão “de verdade” passaram a ser diários. Sentindo que só eu poderia cuidar de mim naquele hospício, confiante no meu talento, não dava o braço a torcer. As conversas sempre terminavam em discussões acirradas que se resumiam a dois adultos com um plano contra um jovem tentando descobrir seu lugar na vida. Sem formação universitária ou experiência profissional, Renée e Rafael tentavam me convencer sobre coisa que não entendiam. Porém, por mais racionais meus argumentos fossem, por mais que estivesse certo, quanto mais tentava explicar meu ponto de vista, pior as coisas ficavam. A Sarah entendia o meu lado, mas com problemas devido aos namorados que arranjava, já tinha atritos suficientes para brigar em minha defesa. 

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Com tudo isso martelando na minha cabeça dia e noite, a salvação era ir para o quarto, pegar meu violão e tocar uma música que caía como uma luva para esses momentos: 

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Por que não viver? 

Não viver este mundo

Por que não viver?  

Se não há outro mundo??

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