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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 9

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Foto: Fedoca Lima – Pier de Ipanema

 "O vento beija meus cabelos
As ondas lambem minhas pernas
O sol abraça o meu corpo
Meu coração canta feliz..."

Ricardo Graça Mello - De repente California

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Apaixonado pelo zen da bossa nova, Frank Sinatra gravou Girl from Ipanema e tornou o bairro famoso no mundo inteiro nos anos sessenta. Quando os anos setenta chegaram, tanto Frank Sinatra quanto a bossa nova e o Brasil tranquilo e inteligente que ela retratava estavam defasados. Sob uma ditadura pesada o país tinha mudado. Contudo, por várias razões, o bairro acabaria sendo central não só na assimilação da nova realidade como também no resgate da naufragada democracia.  

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Sem dúvidas, a Zona Sul do Rio era a encarnação do “milagre econômico” promovido pelo regime militar. A classe média, tanto ali quanto no Brasil inteiro, ia de vento em popa. Com a economia crescendo a uma taxa anual na casa dos dois dígitos e com o tricampeonato do México ainda fresco na memória, o clima era de euforia. Pelo país afora, as vendas de carros, televisores, eletrodomésticos e de todo tipo de conforto para o lar dispararam. Em Ipanema isso também foi o caso para discos, pílulas anticoncepcionais, roupas transadas e pranchas de surf.

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Nas cabeças mais claras, havia a consciência de que essa prosperidade inusitada só era possível graças ao empobrecimento de muitos e ao forte aparato militar garantindo a situação. Talvez por ser o endereço de formadores de opinião bem conectados, gente que não interessava à ditadura molestar, Ipanema se tornou uma ilha de pensamento crítico onde artistas e intelectuais boêmios se reuniam em bares e festas. 

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No que agora era talvez o melhor bairro para se morar na ex-capital do país, a resistência começou cedo. Em 1969 um grupo de residentes lançou um jornal semanal satírico chamado O Pasquim. Essa publicação levaria quase todos seus colaboradores à prisão por variados períodos de tempo, mas seu sucesso também os colocaria na elite jornalística do país.

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O Pasquim não somente se posicionava contra os militares, mas também ridicularizava a burguesia e seus valores com humor irreverente. Entre artigos e charges geniais havia entrevistas regadas a garrafas de whisky, com todo o tipo de personalidades: astros do futebol, artistas, políticos, juristas, atores e outras celebridades. Numa época de censura pesada, a publicação mostrava esses personagens por ângulos até então inexplorados, encorajando-os a falar de suas vidas particulares, suas opiniões sobre assuntos controversos, como política, drogas e sexo e a confessar seus pecados. Entre os entrevistados havia pessoas de quem a imprensa tradicional fugia, como Luiz InácioLula” da Silva - que nos anos 1970 era apenas o líder de um “inconveniente” sindicato de metalúrgicos na periferia de São Paulo.

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Sendo uma das raras vozes independentes do país, O Pasquim virou um gênero de primeira necessidade para leitores de consciência. Com isso, o semanário vendia muito bem em todo território nacional. Por ser do bairro, ele fez com que Ipanema adquirisse uma imagem arejada de boemia, liberdade e resistência. Embora isso não refletisse completamente a realidade, essa imagem seria fundamental para a forma como o Brasil lidaria com seu retorno à democracia.

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Os garotos e as garotas de Ipanema, talvez os mais agraciados de todos pelo regime, sem compromissos políticos e bem-nascidos, introduziram muitas novidades em terras brasileiras. Figuras de cabelos compridos e sem classe social definida começaram a aparecer nas ruas trazendo consigo um sentimento vivo, ao mesmo tempo alienado e contestador. Garotas em camisetas sem sutiã passeavam com rapazes com o cabelo mais longo que os delas atraindo olhares horrorizados e curiosos de uma sociedade majoritariamente conservadora. 

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Para aquela rapaziada, a vida era uma aventura. No mundo que estavam inaugurando, não havia a separação por “tribos”; a única coisa que importava era ser ou não ser “careta”. Se você não fosse, era possível surfar pela manhã, assistir a um show de música underground à noite, depois ouvir Led Zeppelin no toca-fitas do carro a caminho de uma discoteca e finalmente terminar a noite na Floresta da Tijuca fumando um baseado ouvindo uma fita do Caetano Veloso. Mundos, gostos e atividades se entrelaçavam naquela contestação existencial. Todos queriam ser diferentes de seus pais e do que a sociedade esperava deles. A vida era como uma caixinha de surpresas cheia de novidades, então, por que não experimentar todas? É claro que se você tivesse uma visão de mundo conservadora, o melhor que tinha a fazer era procurar outra turma.

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Ao mesmo tempo, com Copacabana se tornando paulatinamente mais acessível e popular, uma nova onda de super-ricos migrou para Ipanema. Eles fariam com que a Avenida Vieira Souto, a sua via beira-mar, virasse o endereço mais caro do país. A rua comercial, dois blocos atrás, Rua Visconde de Pirajá, absorveu o momento e, ao lado de lojas caríssimas, exibia lanchonetes de estilo americano, fliperamas, lojas de surf e butiques com roupas psicodélicas. Enquanto isso, espalhados pelas ruas laterais, bares à moda antiga continuavam sendo o ponto de encontro de uma geração de esquerdistas boêmios, que entre um chope e outro, viam carros de luxo de milionários burguesíssimos sendo dirigidos por choferes.  

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O grupo mais visível do bairro era o dos surfistas. Vestindo shorts e camisetas importadas do Havaí, tomavam conta das esquinas e faziam de Ipanema a Califórnia brasileira. Para ficarem louros como seus pares americanos, a moçada tingia os cabelos com parafina para pranchas de surfe ou com água oxigenada. Embora a intelectualidade e o dogmatismo político os afugentassem, acreditavam que estavam resistindo ao sistema ao fazer tudo o que lhes desse na cabeça – essencialmente drogas, sexo, rock e surf. As novas musas de Ipanema, a segunda geração a ser libertada pela pílula, desfilavam seus corpos torneados no território dos surfistas – a praia – dando origem mundial à tanga, ou biquíni fio-dental.

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Em 1973 houve uma forte queda nos mercados de ações do mundo inteiro devido ao repentino aumento no preço internacional do petróleo. As bolsas brasileiras também despencaram e pessoas que haviam feito fortuna do dia para a noite perderam tudo num piscar de olhos. No entanto, Rafael teve a sorte, ou a experiência, de vender suas ações dias antes do colapso. 

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Para a família, essa tacada foi como ganhar na loteria. A crise repentina levou a uma queda substancial no preço dos imóveis cariocas e com bastante dinheiro na mão, meu pai conseguiu comprar um apartamento em Ipanema. Foi assim que nos mudamos para a Rua Nascimento Silva, a apenas algumas portas da casa de Vinicius de Moraes, o poeta da bossa nova.

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Nos adaptamos bem ao novo bairro. Rafael acolheu bem a troca de praias para os seus passeios de madrugada. Renée ficou nas nuvens; além de ficar mais perto do clube onde jogava tênis, o novo endereço significou um upgrade e tanto em seu status social quanto em nosso estilo de vida. Apesar do apartamento novo não ter uma varanda com vista para o mar como o que alugávamos em Copacabana, era bem maior e, o mais importante, era nosso. Os antigos donos, um casal de velhinhos portugueses, tinham juntado duas pequenas unidades de sala e dois quartos em um apartamento grande. Uma cozinha espaçosa separava os dois lados; o de frente, ficou para meus pais e o dos fundos ficou para minha irmã e eu. 

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Gostamos de cara do novo bairro. Independentemente de estar no olho de um furacão de mudanças comportamentais, o seu dia a dia era muito mais agradável do que o da já superpovoada Copacabana. Com exceção dos prédios de luxo imponentes de frente para o mar na Avenida Vieira Souto, em termos de arquitetura e de jeito, Ipanema parecia com uma versão sofisticada de uma cidade costeira. Suas construções eram mais baixas, mais recentes e menos pomposas. A praia era mais vazia e ainda tinha resquícios da vegetação original, as ruas eram calmas e arborizadas e havia sempre uma brisa gostosa passando entre o mar e a Lagoa Rodrigo de Freitas que ficava logo atrás do bairro. 

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Sarah e eu passaríamos da infância à adolescência num lugar que era certamente um dos melhores para se viver em todo o planeta. Agora, com meu próprio quarto e com 12 anos de idade, fiquei com uma privacidade que até há poucos meses tinha sido coisa de sonho. Livre do domínio da minha irmã, a primeira coisa que fiz foi colocar pôsteres para marcar meu território, um do Jimi Hendrix, um da revista Surfer e um outro com uma capa de disco psicodélico do grupo Yes.

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Outra novidade que veio na mudança, foi que Renée finalmente deu o braço a torcer e autorizou a compra de um televisor, talvez admitindo que a sociedade elegante estranharia aspirantes que não possuíssem um. Por ter horror ao aparelho, mandou colocar a televisão no quarto vazio do nosso lado do apartamento. 

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Com uma TV em casa, minha irmã e eu nos integramos de vez no universo brasileiro. Agora, como qualquer outra pessoa, podíamos assistir às novelas da Globo: os produtos culturais brasileiros de maior alcance da época. Depois do futebol, elas eram o assunto mais popular na da cidade. Passavam cinco dias por semana. Só na TV Globo havia quatro: às seis da tarde tinha uma voltada aos jovens, às sete uma cômica para antes do jantar, às oito a grande produção para toda a família e às dez da noite uma produção mais adulta. Com as salas de cinema e teatros perdendo espaço para a televisão e a censura barrando de produções de nível, por falta de outras opções, os melhores escritores, atores e técnicos se viram obrigados a trabalhar em novelas. Essa concentração de talento as dava uma qualidade espantosa e as tornariam um sucesso pelos quatro cantos do globo.

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Meu interesse pelas novelas se dissipou rápido, mas esse não foi o caso com a pessoa que mais gostou da novidade: Dona Isabel. Toda noite às sete, enquanto preparava o jantar, ela ligava o aparelho para ficar ouvindo seus dramas da cozinha. Essa trilha sonora só terminava na hora que ia dormir. Aproveitei o televisor de outra maneira. Agora podia assistir a jogos de futebol, programas de comédias como A Grande Família, Chico City e Os Trapalhões e ver os filmes e as séries de TV importadas das quais todo mundo falava. De lambuja, nas tardes de sábado curtia os vídeos das melhores bandas internacionais no programa Sábado Som. De repente deixei de me sentir um alienígena na escola.

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Não demorou muito para a gente descobrir o motivo pelo qual os antigos donos tinham vendido o apartamento a um preço tão camarada; a pior gangue do bairro utilizava a entrada do prédio como sua base. Estavam sempre ali tomando conta da rua. Era evidente que aquela turma era de “dissidentes” de famílias de classe média. Eram vagabundos de verdade; não trabalhavam nem estudavam, não tinham respeito a qualquer tipo de autoridade e nos olhavam com desprezo por sermos tão tipicamente burgueses. 

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Ainda que minhas habilidades como pegador de jacaré tivessem melhorado muito nas ondas oceânicas do novo bairro, meu status praieiro era microscópico comparado ao daquela rapaziada. Os bad boys que viviam na porta do prédio estavam no topo da cadeia alimentar de Ipanema. Eles controlavam não só as ruas, mas também as ondas na parte da praia conhecida como as “Dunas do Barato”, o Píer de Ipanema. Agora há muito destruído, o Píer foi erguido para a construção de um emissário submarino que levaria o esgoto da Zona Sul carioca até o alto-mar. A obra alterou as correntes e o leito marinho, o que resultou em ondas incríveis, a ponto de a imprensa especializada internacional classificar aquele point como um dos melhores lugares para se surfar na América Latina.

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O Píer acabaria produzindo os primeiros campeões brasileiros de surf. Um dos membros da gangue, o Pepê, foi o mais destacado deles. Ele se tornaria campeão mundial tanto de surf quanto de voo livre, e anos mais tarde sua popularidade o ajudaria a se eleger vereador e a abrir a barraca de praia mais conhecida do Rio. Porém, seu irmão mais novo e menos talentoso, o Pipi, levou um tiro depois que pulou para trás do balcão para agredir o dono do boteco que ficava na nossa esquina. No dia, estava voltando da escola quando vi o surfista oxigenado sentado imóvel na calçada. Amparado por um amigo, ele estava esperando por uma ambulância com sua camiseta empapada de sangue grudada na barriga. Na manhã seguinte, quando estava saindo de casa, o porteiro me disse que o Pipi tinha morrido no hospital.

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O Pier de Ipanema, não foi só sobre a alteração do leito marinho beneficiando o surfe. Na areia seca, a obra criou dunas enormes, rapidamente apelidadas como as do Barato. Graças a elas, da rua, a polícia não conseguia nem ver nem sentir o cheiro do que acontecia por ali. Devido a essa proteção, nos fins de tarde, a área se transformava no primeiro marco não oficialmente liberado para o consumo da erva maldita no país. O lugar virava uma Woodstock tupiniquim. Cabeludos e cabeludas de todas as proveniências, alguns muito famosos como a Gal Costa, o Caetano Veloso e o Gilberto Gil, se encontravam ali para curtir o barato das dunas enquanto a realeza do lugar arrepiava nas ondas logo em frente. 

 

Quando o mar estava baixo, a galera se reunia para andar de skate na rampa de uma garagem na calçada oposta à do nosso apartamento. Enquanto faziam suas manobras radicais, Deep Purple, Alice Cooper, Led Zeppelin e Black Sabbath bombavam de um toca-fitas ligado num carro. Nenhum deles conseguia entender as letras das músicas, mas espiando da janela entendia cada palavra. De alguma forma, isso me fazia participar do que estava rolando. Ficava assistindo as suas manobras, como um garoto doente fica vendo as outras crianças brincarem pela janela da enfermaria. Naquelas tardes, o cheiro forte de cannabis flutuava para dentro do apartamento junto com as letras radicais das músicas e o som das guitarras distorcidas. Ver baseados do tamanho de um charuto passar de mão em mão entre aqueles surfistas, era como testemunhar um assalto a banco de uma posição privilegiada. Agora que o medo do terrorismo de esquerda tinha ficado para trás, esse era o crime subversivo, o fruto proibido, sobre o qual as autoridades nos advertiam na televisão.

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Nos conhecíamos de vista e todas as vezes que eu passava na frente da gangue, parecia ouvir o comentário: “Lá vai aquele magricelo viadinho”. Os momentos mais constrangedores eram quando ia de carro com a minha mãe para o clube e o porteiro tinha que pedir educadamente que saíssem de lado para que pudéssemos deixar a garagem. Sob olhares de desprezo, passávamos com as janelas fechadas, minha mãe nos seus cinquenta e poucos trajando um uniforme de tênis que incluía uma minissaia branca e eu com as minhas pernas finas e meus trajes de futebol desproporcionalmente grandes. Por causa daqueles caras, para o meu desespero, meus pais acabaram proibindo o surf. Por outro lado, aquela turma me forçou a provar, ainda que apenas para mim mesmo, que não era o bostinha que eles viam. Ainda estou tentando.

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