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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 10

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Foto: Acervo Canon

“... naturalmente minha mãe dizia,

Ele é uma criança não entende nada,

Por dentro eu ria satisfeito e mudo

Eu era um homem que entendia tudo.”

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Erasmo Carlos – Sou Uma Crianca Não Entendo Nada

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Segunda geração de Brasil, bem mais novo que Rafael, Daniel, pai do meu amigo Avi, não teve a mesma sorte com a bolsa de valores. Junto com a manada, perdeu muito dinheiro e talvez por isso a família morasse em um apartamento abafado e sem vista nas ruas de trás de Copacabana.

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Gostava dele. Por trás das feições duras, bigode espesso, meio ruivo meio grisalho e do seu olhar frio, havia uma personalidade simpática e generosa. Ele estimulava a amizade por me considerar uma influência saudável. Mesmo sendo magro que nem um bicho-pau, em vez de passar o dia todo assistindo televisão e me entupindo de doces, jogava bola direto e era um aficionado do bodyboard.

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Por querer que o filho adotasse meus hábitos, nossa amizade girava em torno de esportes. Nos fins de semana ou Avi vinha comigo ao clube, ou íamos praticar alguma atividade ao ar livre com Daniel. As opções eram caminhadas na Floresta da Tijuca ou piqueniques em praias distantes. A tarde, como compensação pelos esforços matutinos, acabávamos em um dos muitos parques de diversões que viviam abrindo, e logo depois fechando, em terrenos baldios pela cidade afora.

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Depois que descobrimos o skate, nosso lugar favorito passou a ser o Aterro do Flamengo. Esse era um parque enorme ao longo da Baía de Guanabara, construído durante o governo Juscelino Kubitschek como uma forma de compensar o Rio de Janeiro por ter perdido seu status de capital nacional. A despeito do custo gigantesco de aterrar a baía e da decoração do melhor paisagista do país, Burle Marx, o que a cidade acabou recebendo foi um tremendo monumento à chatice.  

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Apesar de seus vários campos de futebol viverem cheios, as “atrações” do parque enorme incluíam: o Museu de Arte Moderna, que raramente tinha trabalhos empolgantes para um adolescente, uma área para se voar aeromodelos de brinquedo, um lago para barcos em miniatura, um memorial para os soldados brasileiros mortos na 2ª Guerra Mundial, playgrounds de concreto para crianças e um avião antigo para pessoas que nunca tinham entrado em um conhecerem como era. Mesmo assim, o cimento do seu passeio público era liso e tendo várias rampas suaves o parque era ideal para skatistas iniciantes como nós.

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Tínhamos o mesmo skate: o horroroso Torlay, fabricado no Brasil que consistia numa tábua dura de madeira, com dois pares de rodas de borracha vagabunda nas quais tínhamos que nos equilibrar. Eles quebravam toda hora e nos faziam passar vergonha quando apareciam outros meninos andando em skates importados com rodas de poliuretano semitransparentes e com shapes de fibra de vidro flexíveis. De qualquer forma, para falar a verdade, a gente era ruim demais, típicos nerds tentando tirar onda. Os caras da gangue da minha rua - que de alguma forma também arrumavam skates importados - davam de mil na gente, isso sem falar dos californianos que apareciam na revista Skateboarder, realizando manobras impressionantes em piscinas vazias. 

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Um dia, talvez para levantar nosso moral, o pai do Avi levou sua câmera Super 8 para filmar nossas performances. Eu nunca tinha visto um aparelho daqueles antes na vida e, percebendo minha curiosidade, Daniel me perguntou se queria dar uma olhada. Como não?! 

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“Quer ver como funciona? É fácil. Você olha por este visor aqui, aponta a câmera e foca com esta rodela daqui." Por estar sempre mexendo com a câmera dos meus pais, entendi na hora. "Para filmar é só apertar este botão. Quer experimentar?”

 

Ele colocou a caixinha futurística na minha mão e, depois de explicar tudo de novo e de se certificar que tinha entendido, me liberou o camera. “Só filma quando você tiver certeza de que está tudo em foco e de que você sabe o que vai filmar, senão vai gastar filme à toa.”

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Falei que estava tudo bem e fiquei esperando o Avi descer a ladeira. Assim que ele começou a mover, mirei a câmera e consegui pegá-lo saindo lá de cima, passando pela nossa frente e parando logo depois. Quando tirei o dedo do botão, o Daniel pediu o aparelho de volta.

 

“Filmou!? Deu para ficar no Ari o tempo todo?”

 

Respondi que sim e ele examinou um mostrador na lateral do aparelho.

 

“Ainda faltam mais trinta segundos no rolo." Ele me olhou meio sério. "Vou guardar agora. A gente ainda tem que gravar uma visita na casa da tia do Avi na semana que vem."

 

Depois colocou a camara de volta na capa sem perguntcâmaraar se também queria ser filmado. "Quando revelar a gente te convida para dar uma olhada, tá bem?”

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Nem ele nem o filho notaram o quanto tinha ficado embasbacado com aquilo. Aquele aparelho de capturar tempo, cheio de botões de controle e com luzes e dizeres aparecendo no visor era a coisa mais incrível que já tinha tocado. Fantástico demais para se traduzir em palavras. Depois daquela manhã não conseguia pensar em outra coisa. Quando me convidaram para ver o resultado, o entusiasmo aumentou. Aquilo era magia em estado puro, tecnologia de ponta, quase igual a camara utilizada para fazer o 007 e os faroestes de John Wayne. 

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Minha nova paixão fez com que pedisse uma câmera Super 8 e um projetor como presente de Bar Mitzvá. Esse pedido era quase um mandamento divino para um pai judeu. Tive a sorte de Rafael poder ter me atendido. Com o equipamento em mãos, a obsessão só aumentou. Minha mesada ia toda para comprar filmes com os quais registrava férias, idas à praia, passeios na Floresta da Tijuca, surfistas pegando onda, gente jogando futebol, festas e qualquer outra coisa que desse na cabeça. Quando os cartuchos de três minutos e meio acabavam, mandava para revelar.

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As estréias dos resultados eram grandes eventos. Reunia amigos e a família no escuro do quarto e projetava o filme na parede branca do armário. Antes da apresentação, passava dias editando cuidadosamente as cenas com um cortador de película, colando os pedaços com cola especial e revisando os cortes em um precário retroprojetor. Meu quarto cheirava à cola química e havia tiras de filme penduradas por todo lado. Mas como dizem, me sentia feliz como um pinto no lixo.

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Esse interesse ganhou uma nova dimensão durante uma viagem de férias da família a Bariloche, uma pequena cidade turística nos Andes argentinos. Com visual e atmosfera europeia, o lugar dava a visitantes brasileiros – e aos nazistas escondidos ali – a impressão de estar no Velho Continente.

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Um dia, saímos de barco numa excursão para uma ilha no enorme lago Nahuel Huapi. O lugar era tão bonito que para criar os cenários do filme Bambi artistas de Walt Disney tinham viajado até lá em busca de inspiração. O dia estava chuvoso. Depois que subimos no barco, não demorou para a viagem se tornar chata. Não conseguindo aguentar as piadas forçadas e as conversas sobre meu futuro, saí da cabine e fui me juntar a um grupo que estava jogando pão às gaivotas lá fora.

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Cerca de meia hora depois, meu pai também saiu, aparentemente para acabar com a festa. O vento estava forte. “Richard, o que você está fazendo sozinho aí? Não está com frio?”

 

“Não. Pai, olha só que legal essas gaivotas mergulhando para pegar o pão.” Joguei um pedaço e uma das aves planando sobre o barco mergulhou a toda velocidade e conseguiu pegar a comida antes que caísse na água. 

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Rafael me deu um sorriso. “Vamos entrar para um chocolate quente?” Vendo que não tinha me convencido, emendou. “A gente conheceu um senhor inglês lá dentro que tenho certeza de que você vai gostar.”

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“Por quê?”

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“Porque ele é diretor de cinema.”

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Bill era um cara grande, nos seus cinquenta anos, largado, barba mal-feita, olhos verdes e vivos e com um papo de bon-vivant. Se deleitando num copo de whisky, me contou que estava na América Latina fazendo um documentário para a BBC sobre um explorador que no século 19 havia viajado a cavalo desde a Argentina até os Estados Unidos. Quando explicou aquilo, achei que era a coisa mais incrível que alguém poderia fazer – não ficar meses a fio andando a cavalo - mas viajar para rodar um filme. Decidi naquele momento que essa era a profissão que queria seguir quando crescesse.

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De volta ao Rio, fiz um curso de Super 8 onde acabei escrevendo um roteiro e dirigindo um curta-metragem. O filme, "Xeque Mate", combinava duas histórias paralelas: a de um homem jogando xadrez com uma pessoa que ninguém via, e o romance do mesmo personagem com um manequim feminino roubado de uma loja. Ao final do filme, ficava-se sabendo que o protagonista estava jogando contra a manequim de plástico. Ele joga o tabuleiro para o ar dizendo numa voz lenta e melancólica “Minha vida foi um jogo de xadrez.”

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Como qualquer diretor vanguardista da época, nunca vou saber o significado de meu filme. Anos depois, fiquei lisonjeado ao ver um filme de Ingmar Bergman, O Sétimo Selo, e perceber estarrecido que tinha um enredo parecido ao meu. A diferença é que era um longa-metragem aclamado no mundo inteiro e o herói jogava xadrez com a morte.

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Os organizadores do curso gostaram do resultado e acabaram levando o filme para vários festivais latino-americanos de cinema feitos por jovens, o que me encheu de esperança e de orgulho.

 

Quando entrei na fase mais hormonal da adolescência, meus amigos e eu começamos a usar o projetor para um tipo muito menos pretensioso de filme. Qualquer um que conheça do assunto vai concordar que os anos 1970 foram a época de ouro dos filmes pornôs: a depravação era autêntica e deixava garotos como a gente enlouquecidos. Havia centenas de revistas e de filmes Super 8 suecos contrabandeados, saindo clandestinamente das bancas de revista e indo direto para o fundo de nossos guarda-roupas. Por causa disto, meu projetor se tornou um equipamento raro e cobiçado na turma. Acabei tendo a ideia de emprestar o aparelho em troca de poder ficar com os filmes por alguns dias. Essa atividade secreta acabou sendo o começo do fim do meu sonho nunca concretizado de me tornar cineasta. Sem ninguém para compartilhar meus interesses, a carência de cursos decentes e a falta de encorajamento dos meus pais, minha paixão pelo cinema e a certeza de que tinha nascido para fazer aquilo, embora sempre presentes, acabariam se diluindo na psicose tropical.

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