

CAPÍTULO 8

Foto: Pinterest (domínio público)
Célia era a amiga magricela, bonita do andar de baixo que tinha convidado a Sarah para ver a copa do mundo na sua casa. As duas eram coladas. Um dia ela entrou como um foguete no apartamento.
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“Sarah! Sarah!”
Quando minha irmã apareceu, ela precisou retomar o fôlego. “Sarah! Minha mãe acabou de dar de presente de aniversário dois ingressos para o Festival Internacional da Canção, você quer vir comigo?!!”
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As duas comemoraram animadíssimas, mas logo Sarah se lembrou.
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“Vou ter que perguntar para minha mãe.”
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Acompanhando a conversa do quarto, pensei a mesma coisa na mesma hora; a dona Renée não ia liberar essa nem a pau. Sem motivo para inveja, me fingindo de morto, fiquei ouvindo as duas fazerem planos para convencê-la, sabendo por melhor que fossem as argumentações, não ia dar em nada.
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Quando minha mãe chegou, não deu outra. “Você no Maracanãzinho à noite?! Nem pensar!”
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Os festivais aconteciam no irmão menor do Maracanã, o Maracanãzinho, uma arena coberta construída para eventos não futebolísticos ao lado do estádio.
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“Mas mãe, o Maracanãzinho fica do lado de uma universidade e de um hospital! A gente vai de carro com os dois irmãos dela, qual o problema?”
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“Todo mundo sabe que ali é um antro de bêbados e de assaltantes! Aqueles dois franguinhos nunca vão conseguir defender vocês de nada! Já imaginou se você se perder no meio daquela gentalha?! Nem pensar! Você não vai!”
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Mais tarde, precisou a mãe da Célia subir para implorar com a dona Renée que mudasse de ideia. Dona Dindinha garantiu que seus filhos – um estudante de medicina e outro seminarista – conheciam bem o lugar. A Sarah estaria segura, afinal ela também estava deixando sua filha na mão deles. Além disso, o presente era muito especial para a Célia, que ia ficar de coração partido se a melhor amiga não a acompanhasse no dia do seu aniversário. Os argumentos adultos e o fato de que sua família era dona do nosso apartamento fizeram Renée conceder. Ela disse que ia falar com o marido. Ao ouvir essas palavras eu já sabia qual seria o resultado.
Durante o jantar, as duas explicaram o que tinha acontecido e, apesar dos argumentos contrários da esposa, Rafael liberou.
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“Qual o problema da Sarah ir para o Festival com a Célia e os irmãos dela? Ela adora este tipo de música e os dois são ótimos rapazes.”
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Em uma época sem Internet – e mesmo sem gravadores de fitas-cassete – as únicas opções para ouvirmos nossas músicas preferidas eram ou comprar discos caros ou torcer para que tocassem no rádio. Tinha os shows ao vivo, mas eram caros e proibidos para menores. Em suma, o convite da Célia era imperdível. Os melhores artistas do país e outras atrações internacionais estariam se apresentando naquela noite e o evento seria transmitido para o Brasil inteiro.
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Para piorar as coisas para mim, muito mais ligado em música que minha irmã, não tínhamos televisão em casa. Havia a possibilidade remota de assistir o festival na casa do Paulo como na Copa do Mundo, mas, como meus pais, ele não se interessava por música atual. Não ia acontecer. Meu único consolo era que elas estavam indo para a semifinal; a final seria no próximo fim de semana.
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Aquelas competições eram manchetes em todos os jornais brasileiros e as canções concorrentes tocavam direto no rádio. Conforme a final ia se aproximando, todo mundo já tinha sua música preferida. Apesar de serem organizados por gravadoras promovendo seus artistas e por estações de TV vendendo espaço publicitário, aqueles eventos eram vistos como sendo de maior importância cultural. Tinham até significância política já que, embora não os patrocinasse, o regime os encorajava como uma maneira de unir a nação em torno de uma celebração da música nacional. Além disso, por tolerar a presença de artistas com mensagens de oposição, era como se os generais estivessem provando à população que, embora não permitissem que elegessem seu próprio governo, não tinham nada contra a liberdade de expressão.
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De fato, os artistas que subiam ao palco representavam todos os segmentos da sociedade. A esquerda intelectual tinha Chico Buarque; os puristas da bossa nova, Tom Jobim e Nara Leão; os roqueiros e os psicodélicos, Os Mutantes; os afrodescendentes, Tony Tornado; a militância estudantil, Geraldo Vandré; a juventude despolitizada, Wanderléa e outros membros da Jovem Guarda; os tropicalistas tinham Gilberto Gil e Caetano Veloso; os amantes da música tradicional, Jair Rodrigues e Paulinho da Viola; e ainda havia Jorge Ben e Milton Nascimento que agradavam a todos.
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Devido ao momento político, esses festivais se tornaram um dos raros canais onde se podia debater a realidade no país, mesmo que de forma indireta. "Para Dizer Que Não Falei de Flores" do Geraldo Vandré, por exemplo, se tornaria o hino da resistência à ditadura. Havia ecos de Cuba quando o estádio se juntava para cantar.
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“Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição
De morrer pela pátria
E viver sem razão”
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Por outro lado, havia a turma hippie, interessada em liberdade individual. Seu carro chefe eram Os Mutantes como com a canção 2001.
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“Astronauta libertado
Minha vida me ultrapassa
Em qualquer rota que eu faça
Dei um grito no escuro
Sou parceiro do futuro
Na reluzente galáxia”
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As revelações daqueles eventos não só encheriam os cofres das gravadoras, mas também dariam origem - ou pelo menos influenciariam - tudo o que viria depois em termos de música popular brasileira. Havia também a grande polêmica entre os defensores da liberdade individual radical e a militância política de esquerda que esquentava os festivais. Essa controvérsia que acontecia não só no Brasil, ia além dos palcos e se encontrava também nas artes, no cinema, no teatro e na literatura. O movimento da Tropicália emergiu desse emaranhado e tentou amalgamar não só os dois lados, mas também tudo mais que pudesse.
Embora comumente associada à música de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes, o movimento foi bem mais amplo. Seguindo a máxima do artista plástico Andy Warhol de que “tudo é pop”, sob suas asas generosas conviviam desde uma simpatia pela revolução cubana e o amor pelos Beatles, até uma procura por raízes musicais brasileiras, sem esquecer, é claro, de uma boa dose de sagacidade comercial. O movimento envolveu artistas plásticos, como Hélio Oiticica, músicos vanguardistas como Tom Zé, escritores, cineastas, filósofos e um universo de malucos e de gênios.
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O cartão de visitas do movimento, a música/manifesto Tropicália de Caetano Veloso, parecia vir de outro planeta. Misturando rock com música popular brasileira, psicodelia com revolução, deixava a plateia atônita, sem saber se vaiava ou se aplaudia.
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“Eu organizo o movimento
Eu oriento o Carnaval
Eu inauguro o monumento no planalto central”
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No começo, os militares permitiram que os artistas cantassem o que quisessem. Contudo, conforme a popularidade dos festivais foi aumentando, viraram um incomôdo para o regime. Mensagens de liberdade e de revolução entrando nas salas de estar da nação em horário nobre era um contrassenso. Querendo evitar uma imagem negativa acabando com a festa ou excluindo estrelas, a saída dos generais foi a censura.
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Quando impuseram o seu draconiano AI-5 as coisas foram de mal a pior. Sem ter que responder a um poder judiciário, os militares acabaram indo além da censura. Ignorando a possível reação da sociedade civil, puseram em marcha um processo de exílio e de aprisionamento de artistas contrários a sua ditadura, independentemente do seu prestígio e da sua popularidade. A consequência foi que os festivais se esvaziaram de significado e acabaram morrendo.
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Alguns anos mais tarde, num gesto de reconciliação, o regime aceitou os artistas perseguidos de volta. Porém, nada seria como antes. No seu retorno, apesar de serem recebidos como heróis, haviam amadurecido no exterior.Depois de expostos em primeira mão ao que estava ao que estava acontecendo em Londres e em outras grandes metrópoles mundiais, voltaram com agendas mais profissionais.
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Apesar da queixa de alguns puristas, quem acabou ganhando com essa mudança foi o público. SSuas apresentações já não eram mais em diretórios estudantis ou junto com outros artistas em festivais. Agora eles lotavam teatros e casas de shows. Mais refinados e maduros, propiciavam uma mistura de resquícios de resistência autêntica, status de celebridade e talento. Essa alquimia contava com o suporte de músicos e produtores de qualidade internacional. Quando Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque subiam no palco, ou quando se colocava um disco deles na vitrola, era como mundo voltasse à normalidade, realçada profissionalmente numa realidade fantástica.
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Anos depois da frustração de não acompanhar minha irmã ao festival, agora adolescente, comecei a frequentar shows dessas estrelas. Eram demais. O agito já começava quando as portas dos teatros abriam e o público entrava às pressas como uma boiada. Com todos acomodados, um clima de Maracanã tomava conta; diferentes sessões da plateia vaiavam umas às outras ou se aplaudiam como torcidas de times diferentes. As vezes se uniam para cantar bordões políticos, musiquinhas relacionadas a drogas e outros assuntos proibidos. Outras vezes sacaneavam uns aos outros.
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“A turma lá da frente é bicha!” Os da frente se levantavam e respondiam com vaias.
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“Que beleza…
A maconha que vem lá do Ceará!
O lêlê! O lálá!”
Depois de esperas longas, vaias e assobios, as luzes se apagavam, a sala caía em silêncio e a magia começava. Nos melhores shows, era como estivéssemos numa festa na sala de estar dos artistas. Nas músicas mais intimistas, quando os artistas ficavam a sós com o violão, havia uma comunhão tão forte que nunca senti algo parecido na vida. Artistas mais carismáticos como Gilberto Gil faziam momentos de “pergunta e resposta” em que a plateia respondia entusiasmada às suas orientações musicais. Quando os outros músicos voltavam as canções ganhavam peso. As mais conhecidas – sucessos que tocavam no rádio e apareciam na televisão – ficavam para o final e acendiam as salas em carnavais fora de época com o teatro inteiro pulando nos corredores, no palco e onde mais pudesse.
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Paralelamente a essas festas em forma de show havia algo novo chegando de mansinho. As bandas de rock eram a expressão da geração mais nova. Eram o submundo do submundo. O clima dos seus shows era guiado por guitarras distorcidas e ritmos frenéticos na bateria. Seu público era medonho: agressivo, meio sujo, com cabelos bem mais longos do que o normal e usavam drogas que a maioria de nós nem sabia que existiam. Uma de suas principais expressões era Raul Seixas e seu letrista, o agora autor mundialmente famoso, Paulo Coelho que aconselhavam em uma de suas músicas.
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“Quem não tem colírio usa óculos escuros!”
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“Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante.” Anunciavam em outra.
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Tal como grandes bandas estrangeiras da época; Led Zeppelin, David Bowie e os Rolling Stones, os temas abordados pelos roqueiros brasileiros; o sexo - tanto hétero como homo -, as drogas e o misticismo, eram transgressores. Com essa leva vieram os Secos e Molhados. Muito à frente do seu tempo, adotavam um estilo andrógino e usavam uma maquiagem exagerada que mais tarde a banda americana Kiss copiaria. Com a voz lindamente feminina do seu vocalista Ney Matogrosso e seus trejeitos homoeróticos, escancaravam a questão da identidade sexual nas rádios, nos palcos e nos televisores do país já nos idos de 1972. Esses artistas, ainda que populares com uma grande parcela dos jovens, chocavam a todos os não envolvidos. Pessoas com um posicionamento “sério” não se atreviam a se identificar com eles, nem mesmo os esquerdistas mais avançados.
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Esses pioneiros iniciaram tudo o que a maioria da classe média consideraria banal nas décadas seguintes: drogas leves, vegetarianismo, interesse em filosofias orientais e a busca por um jeito zen-individualista de existir. Ignorando tanto a ditadura política da direita quanto a ditadura intelectual da esquerda, só queriam saber de viver intensamente.
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Quando chegou a onda da discoteca, essa galera descobriu que dar uma melhorada no visual e soltar a franga nas pistas de dança atraía sexo. Isso e a grande quantidade de fatalidades relacionadas às drogas entre os que mergulharam de cabeça naquele estilo de vida, fizeram com que a primeira geração do rock brasileiro desaparecesse com a mesma velocidade que apareceu.
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A passagem gradual de bastão entre as gerações dos festivais e a do rock, marcou o fim da aura de resistência política nos shows. Embora sempre intensos e excelentes, os espetáculos musicais passaram a ser simplesmente um sopro de ar fresco na claustrofobia tanto do regime quanto dos lares tradicionalistas. Durante essa mudança, ficou claro que esse era um clube exclusivo. Para fazer parte da turma e participar das atividades afins - sair com uma moçada descolada, comprar os discos certos e viajar para destinos alternativos - você tinha que ter dinheiro e não era todo mundo que tinha acesso a esse recurso.
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Desde os primeiros festivais, nunca houve representantes da classe trabalhadora nos auditórios. As massas ainda eram as domésticas que preparavam o jantar do público antes de saírem de casa, os cobradores e motoristas dos ônibus que nos levavam lá, os "flanelinhas" que pediam para vigiar os carros e os policiais lá fora, ávidos para extorquir nosso dinheiro. Nos anos 1970, os rebeldes das classes menos privilegiadas ouviam funk e iam às suas próprias festas, como bem retratado no filme "Cidade de Deus", um relato verdadeiro desse período da história do Rio de Janeiro.
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