


Foto: Flickr (domínio público)
O presidente recém-eleito, Jânio Quadros, lembrava o primeiro-ministro britânico do pré-guerra, Neville Chamberlain, na aparência e na bizarrice. Com Churchill só compartilhava mesmo era a fama de amante da garrafa. As massas o adoravam, mas, apesar de servir seus interesses, a elite o ridicularizava pelos seus trejeitos exagerados e por sua inteligência medíocre.
​
O presidente assumiu quando o ciclo de crescimento econômico iniciado pelo seu antecessor, o carismático Juscelino Kubistchek, começava a dar sinais de cansaço. Depois da euforia dos anos de vacas gordas, uma ressaca econômica assolava as classes que mais tinham se beneficiado daquele período áureo: os trabalhadores e a classe média emergente.
​
A freada no ritmo das melhorias da qualidade de vida à qual os brasileiros haviam se acostumado causou uma guinada à esquerda na preferência ideologia do país. Isso se refletiu na influência cada vez maior de sindicatos e de organizações trabalhistas na vida pública. Esses novos elementos fizeram com que as elites ficassem nervosas.
​
Jânio tentou, à sua maneira, conciliar a situação proibindo biquínis nas praias para agradar os conservadores de direita e reconhecendo a Cuba Castrista para agradar a esquerda. Essa decisão ousada foi fatal; além de fazê-lo perder o apoio da bancada direitista, em especial da UDN, a União Democrática Nacional, responsável pela sua chegada na presidência, o gesto chamou a atenção dos Estados Unidos.
​
Pressionado para fazer reformas populistas de um lado e para freá-las do outro, sem apoio no congresso, em 1961 Jânio renunciou na esperança de que o país se unisse para exigir o seu retorno. Isso nunca aconteceu e seu vice-presidente João Goulart tomou posse. Jango, como era conhecido, tinha fortes ligações com movimentos sindicais e com governadores de esquerda como Miguel Arraes em Pernambuco e principalmente com Leonel Brizola no Rio Grande do Sul, fortíssimo candidato para as próximas eleições presidenciais. Assim que assumiu, prometeu políticas abrangentes para melhorar a distribuição de renda, acenou para o início de um projeto de nacionalização de setores importantes da economia e investiu na educação dos menos privilegiados.
No pano de fundo dessas mudanças estava a ainda recente Revolução Cubana. Confrontando a hegemonia dos Estados Unidos na América Latina, o levante caribenho trouxe a Guerra Fria para o continente. Na opinião da esquerda, Cuba havia demonstrado que a região tinha a capacidade de gerir seu próprio destino. Em contrapartida, as potências dominantes viam com péssimos olhos governos revolucionários rejeitando a sua tutelagem, defendendo cooperação ao invés dos lucros de uma pequena minoria. Washington fez tudo para esmagar o exemplo, impondo um embargo comercial, ajudando exilados numa invasão fracassada e tentando assassinar seu líder. O único resultado dessa tática foi o de empurrar os cubanos cada vez mais para perto da União Soviética e essa aliança tornou uma América Latina socialista – ou mesmo comunista – uma possibilidade assustadora, porém bastante real.
​
Situações parecidas com a qual o governo de Jango ameaçava não eram novidade para os grandes centros de decisões. Suas respostas tinham sido golpes de estado. Primeiro no Irã, logo no início dos anos 1950 e depois no Iraque, quando estes resolveram nacionalizar suas reservas de petróleo. Pouco depois Colômbia, Venezuela, Guatemala, Síria e Nigéria, entre outros, sofreriam o mesmo destino. Todos esses ataques à democracia tinham em comum pactos entre elites locais interessadas em manter seu domínio e potências mundiais interessadas no acesso irrestrito as riquezas naturais dos países em questão.
​
No caso brasileiro, os Estados Unidos estavam determinados a manter “livre” o maior país da América do Sul. Com esse apoio, os poderosos iniciaram sua conspiração. Para tanto, seguiram a mesma receita que Rafael tinha presenciado na Alemanha nos anos 1930. O primeiro passo foi conquistar a opinião pública distorcendo a verdade. A imprensa envolvida passou a retratar uma crise profunda na economia e uma ruptura nos valores tradicionais da sociedade. Em paralelo, começaram a denunciar a desonestidade dos dirigentes e sua inabilidade em manter a ordem. Vendiam a imagem contraditória de uma liderança ao mesmo tempo corrupta e disposta a impor uma ideologia totalitária, destruidora da propriedade privada e nociva à herança cultural e religiosa do país. Neste cenário, os "cidadãos de bem"; sensatos, trabalhadores e honestos, precisavam de um Salvador da Pátria, acima do sistema político apresentado como viciado e corrupto para combater o inimigo inventado. Em 1964, esse “salvador” seria o exército.
​
Em abril daquele ano, tropas e tanques foram para as ruas das principais cidades do país onde os militares “revolucionários” não encontraram qualquer resistência organizada. Ainda que os líderes do “movimento” declarassem que seu objetivo fosse restaurar a democracia livrando o Brasil do comunismo, levaria mais de duas décadas para que se voltasse à normalidade política.
​
O novo regime exilou o presidente Goulart e seus aliados, além de perseguir e prender personalidades públicas e ativistas de oposição. Como é comum em golpes de estado, enquanto a atenção se voltava ao drama político, passaram na surdina uma legislação cortando os direitos dos assalariados e privilegiando os interesses dos grandes grupos econômicos que haviam patrocinado a mudança de regime.
​
Apesar da indignação de intelectuais e de pessoas mais esclarecidas, houve, no início, uma indiferença geral, inclusive na classe trabalhadora. Por outro lado, os militares encantaram a comunidade dos negócios, inclusive Rafael. Para o “mercado”, o Brasil precisava se modernizar, seguir o exemplo estadunidense e alcançar o seu potencial econômico: o gigante precisava acordar. Com os militares no poder e com a orientação e a simpatia do Tio Sam - que na época usava o financiamento de prosperidade como arma para enfrentar os avanços da esquerda - haveria um final feliz, onde todos iriam agradecer os golpistas.
​
*
Por suas mudanças terem beneficiado apenas firmas estrangeiras e os muito abastados, por não terem cumprido com a palavra de restaurar logo a democracia e pela corrupção ter aumentado em vez de ter diminuído depois do golpe, quatro anos mais tarde, em 1968, a sociedade civil brasileira se levantou em oposição ao regime.
​
Os protestos partiram de movimentos universitários inspirados na explosão do espírito revolucionário pelo mundo afora. Na mesma época, em pontos tão diversos como Paris, Chicago e Praga, a juventude estava tomando as ruas para reivindicar um mundo mais justo e mais livre. Embora a maioria silenciosa os considerasse sonhadores inconsequentes, a memória de vários movimentos revolucionários: a Guerra Civil Espanhola, a Revolução Chinesa, a Revolução Russa e mesmo da Francesa, fez com que o complexo financeiro, industrial e militar acionasse suas defesas.
​
No Rio de Janeiro a tensão borbulhava. Depois que a polícia baleou e matou um estudante, uma passeata 100 mil pessoas, incluindo artistas e intelectuais de peso, tomou conta da avenida Rio Branco, no centro da cidade. Esta foi a maior manifestação contra um governo já vista no Brasil. A oposição se alastrou tão rapidamente pelo país que mesmo alguns deputados no congresso, agora tutelado pelos militares, passaram a criticar abertamente o governo.
​
A resposta do regime foi brutal. Ignorando a Constituição, publicaram o infame AI-5 - Ato Institucional Número Cinco - dissolvendo o Congresso, o Senado e dando total autoridade executiva e judiciária ao presidente. Logo em seguida prenderam políticos opositores, líderes estudantis e jornalistas. A tortura tornou-se prática comum e quem pôde fugiu para o exílio.
​
Acuados, alguns estudantes passaram à clandestinidade e formaram guerrilhas urbanas. Treinados em Cuba e em outros satélites soviéticos, conseguiram organizar assaltos a bancos e sequestros bem-sucedidos. Em 1969, depois do sequestro do embaixador americano no Rio e de ataques a bomba em quartéis militares, as autoridades intensificaram a repressão. Pessoas começaram a desaparecer, incluindo o filho do nosso médico de família. Por outro lado, núcleos embrionários de milícias revolucionárias partiram para o campo tentando emular a Revolução Cubana. Em uma ocasião, no começo dos anos setenta, o exército brasileiro enviou uma divisão de cerca de 10.000 soldados para capturar uns vinte jovens maoístas na remota região do rio Araguaia. As forças armadas acabariam por executar a maioria dos militantes capturados.
​
Os tempos eram obscuros. Tudo era censurado: livros, peças de teatro, filmes e músicas. O regime também controlava com rédea curta o conteúdo dos jornais e das estações de rádio e de televisão. Intuindo a tensão, mas sem ter informações verdadeiras, as pessoas fantasiavam. Havia todo tipo de teorias circulando sobre o alcance do poder dos guerrilheiros, possíveis alianças militares com Cuba, China e União Soviética, ligas de camponeses prestes a invadir as cidades trazendo desapropriações e pelotões de fuzilamento para os ricos.
​
Como tudo na vida, quando a fantasia substitui a realidade nada de bom vem à tona. Tanto os militantes quanto seus repressores superestimaram o que minúsculos grupos de extremistas poderiam alcançar num país tão grande e tão complexo como o Brasil. De forma concomitante, os dois jogaram o país num período de trevas. A polícia e o exército montaram departamentos com amplos poderes para espionar a população e para coibir qualquer tipo de oposição. Entre eles estavam o SNI, o Serviço Nacional de Informações e o Destacamento de Operações Internas, DOI-Codi, em cujas dependências presos eram torturados, alguns até à morte. Também reativaram o DOPS, Departamento de Ordem Pública e Social, criado por Getúlio Vargas para eliminar adversários e agora utilizado para aterrorizar qualquer atividade contrária à ditadura.
​
*
​
O final dos anos sessenta foi intenso não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Havia forte consciência e tensão social no Primeiro Mundo. Na sua periferia grassavam revoluções, guerras e guerrilhas pela liberdade e pela igualdade, além de um aprofundamento da Guerra Fria no planeta inteiro. Paradoxalmente, este foi o período de maior prosperidade econômica que o ocidente conheceu. Essa bonança em tempos tão contraditórios veio junto com políticas de redistribuição de renda inéditas e uma consequente ampliação gigantesca do mercado consumidor. Foi nesse contexto que o mercado jovem nasceu. Ele era composto pelos filhos abastados da vitória contra o nazifascismo, sem vínculos com o passado, questionadores e ávidos por novos produtos, experiências e modos de vida.
Esses jovens inaugurariam uma nova era para a humanidade. Com eles, o mundo veria o aparecimento de inúmeras novas tecnologias e serviços, além de redefinições profundas do que era socialmente aceitável. Nessa abertura de horizontes, muitos daquela geração se esbaldariam - e alguns se perderiam - na explosão de drogas ilícitas e de sexo livre, facilitado pelo aparecimento da pílula anticoncepcional.
​
Aquela efervescência faria com que todos se vissem obrigados a escolher entre serem agentes das mudanças ou serem guardiões da situação. No Brasil, com a via política barrada, a contracultura surgiria como a única alternativa de manter vivo o germe da resistência, seja através da arte, seja através de atitudes. O slogan do artista plástico Hélio Oiticica “Seja marginal, seja herói!” sintetizou aquele estado de coisas.
​
Por manter uma aura contestatória, por conseguir driblar a censura e por espelhar o que se passava na cabeça da juventude inovadora essa forma de expressão se tornou muito popular. Longe de ser seu objetivo, descobriu-se nela um grande potencial comercial. Gravadoras e outros empreendedores da área artística e cultural foram rápidos em aproveitar a oportunidade. A aliança forçada entre revolução e lucro proporcionaria uma explosão de talento que originaria um dos períodos culturais mais férteis da história do século vinte, tanto no Brasil quanto fora dele.
​
Apesar da repressão brasileira ter se saído vitoriosa, ela não contou com o que acabou acontecendo. As ideologias de revolução tinham-se tornado dominantes na cultura dos mesmos países que estavam patrocinando a ditadura​. Ironicamente, eram parte do pacote existencial que o regime se esforçava em impor à juventude brasileira. No país inteiro, qualquer pessoa munida de um dicionário inglês-português, ou francês-português, tinha acesso às vozes dos seus contemporâneos estrangeiros empenhados em mudar o mundo em discos, livros, revistas e filmes.
​
Nessa salada de contradições, embora os estadunidenses fossem os maiores responsáveis
pela derrubada da democracia brasileira, sua juventude estava na vanguarda dos que questionavam a hegemonia do aparato industrial, militar e financeiro sobre o planeta, inclusive sobre o seu próprio povo e suas minorias. Eles tinham sofrido o seu próprio golpe com os assassinatos mal explicados do presidente John Kennedy, do seu irmão Bob Kennedy e do reverendo Martin Luther King, todos defensores de uma América mais próxima dos ideais progressistas dos seus fundadores. Em cima disso, havia a possibilidade de serem mandados para a Guerra do Vietnã, um conflito que visava tão somente manter os interesses americanos na região.
​
A manifestação maior dessa rebelião aconteceu na música, mais especificamente no rock, que na época tinha um forte caráter revolucionário. O paradoxo de um clima de insatisfação intensa nas ruas gerando uma demanda comercial por vozes subversivas, abriu espaço para ícones tais como Bob Dylan, Arlo Guthrie e Joan Baez. No Reino Unido, as superestrelas dos Beatles e dos Rolling Stones, interessadas em atingir esse público e a dizer algo mais profundo do que canções românticas, juntaram forças com o movimento. Ajudados por estratégias de marketing modernas e orçamentos milionários, essas e tantas outras bandas expuseram a contestação no coração do sistema, num palco muito maior do que qualquer rebelionário de outrora jamais teria sonhado.
​
Talvez seja difícil de entender no cínico mundo de hoje que no auge das suas carreiras aquelas estrelas genuinamente acreditavam que suas criações faziam parte de um movimento mais amplo para derrubar o status quo. O uso de novas tecnologias no cerne de suas criações reforçou sua imagem de catalisadores de grandes mudanças. As possibilidades sonoras inéditas permitiram que o espírito revolucionário fosse difundido nas guitarras distorcidas de gênios musicais como Jimi Hendrix, Jimi Page e David Gilmour, cujos solos forneceram uma trilha sonora - e mesmo um lado espiritual - a esse momento excepcional.
​
*
Essa foi a educação musical da minha geração. Eu tinha oito anos quando os Beatles se separaram; Led Zeppelin lançou Stairway to Heaven quando tinha nove; os Rolling Stones lançaram Exile on Main Street quando tinha dez e o álbum Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, foi lançado quando tinha onze. Para um menino de origem judaica tradicional, crescendo em uma ditadura militar, esses foram mísseis de consciência aterrissando no meu toca-discos. No entanto, igual a reação que tiveram ao meu gosto pelos programas matutinos do Haroldo de Andrade que ouvia quando criança, ninguém da família, nem a maioria dos meus amigos, conseguia entender como alguém poderia gostar daquele “barulho”. Dessa vez, nem a empregada estava do meu lado.
​
Apesar da incompreensão, era como se um circo mágico musical tivesse parado na esquina de casa. Queria fugir com ele. Não estava sozinho nessa busca, milhões de jovens pelo mundo afora também estavam sintonizados nessas mudanças. Muitos acabariam mais próximos uns dos outros do que das suas próprias famílias.
​
Trancados nos nossos quartos, ouvindo rock às escondidas, nos sentindo oprimidos por nossos pais e professores, eu e meus companheiros de geração digeríamos as palavras de ordem. A mensagem era clara: resistir aos caretas, lutar para sermos nós mesmos e subverter os planos que o sistema tinha reservado tanto para nosso futuro quanto para o futuro do planeta.
​
No Brasil, a repressão acabaria percebendo que havia algo de diferente no ar, com o qual não sabia como lidar. Podiam prender um hippie por fumar maconha, um militante por suas ações ou pelos seus livros, mas não dava para acabar com a insatisfação de uma geração inteira com a pequenez do mundo. Como nossos pais, sem ter acesso a essa subcultura, torciam para que fosse uma fase de adolescente e que depois nos juntássemos docilmente ao rebanho.
​
…