

CAPÍTULO 7

Foto: Doméstica (Filme)
“... choram
A nossa pátria mãe gentil,
Choram Marias e Clarices,
No solo do Brasil.”
​
Aldir Blanc – O Bêbado e a Equilibrista
​
Numa época em que Brasília ainda era um lugar onde ninguém queria morar e que São Paulo ainda estava se firmando como o polo econômico do país, o Rio de Janeiro era de longe a escolha predileta dos expatriados no Brasil. Haviam muitos e, como meus pais, quase todos tinham uma vida de sonhos na Cidade Maravilhosa. Na verdade, a visão que tinham do seu país de adoção era superficial. Pouquíssimos tinham consciência ou se preocupavam com o que acontecia nos bastidores daquela realidade.
Do ponto de vista local, eram vistos como gente especial com um status quase igual ao da elite carioca. A relação entre os dois grupos era estranha; embora ambos morassem e trabalhassem lado a lado, se vissem como equivalentes sociais, tivessem ambições parecidas e até os mesmos preconceitos, não se frequentavam, não eram sócios dos mesmos clubes, tinham interesses distintos e encaravam a vida de maneiras muito diferentes. Talvez corretamente, era comum que os estrangeiros se sentissem num contexto colonial. Apesar das origens diversas, todos tinham em comum um olhar crítico vindo de realidades sociais e econômicas mais avançadas. Unanimemente, achavam que apesar dos esforços de modernização, a gritante desigualdade social era o que mais caracterizava atraso do seu novo país.
​
O que mais os chocava era a atitude dos privilegiados em relação ao fosso medieval que os separava do povão. Para os poderosos, isso era uma condição imutável e natural, ou pior, meritocrática. Seja a contragosto ou com deleite, os expatriados aprendiam logo que a única maneira de se conviver com a disparidade era encarar os menos favorecidos da mesma forma que a elite: seres inferiores e facilmente exploráveis; tão ignorantes que nem conseguiam perceber, quanto menos entender, o óbvio.
​
A herança escravista, normalizada no cotidiano e entranhada na formação do país, criava uma ilusão de resignação cordial por parte da população humilde. Porém, observadores mais aguçados percebiam logo uma resposta sutil, porém onipresente. Ela vinha dissimulada na forma da malandragem; na falsa reverência, na palavra certa para agradar ou para se safar de uma situação difícil, no jeitinho, na desonestidade pequena o suficiente para não ser pega e no oportunismo. Apesar de não ser ódio de classe, apenas instinto de sobrevivência, essa atitude era terreno fértil para a consciência social.
​
Como a maioria dos seus pares, Renée e Rafael mantiveram uma distância segura desse atrito central da vida brasileira. Igual a tantos outros filhos de imigrantes, caberia a minha irmã e a mim conhecer e se adaptar aos seus códigos – ou à falta deles.
​
Meu despertar foi brusco.
​
*
O conhecidíssimo Clube de Regatas do Flamengo fazia parte de um enclave de clubes de classe média alta localizados no coração da Zona Sul carioca. Como os demais, ficava às margens da imunda, porém belíssima, lagoa Rodrigo de Freitas e próximo ao nosso próprio Paissandu como também ao Clube dos Caiçaras, ao Clube Monte Líbano, à Associação Atlética Banco do Brasil, ao Clube Piraquê, ao Clube Militar, ao Jockey Club e à Sociedade Hípica Brasileira.
​
O Flamengo era o maior deles. Era popular não só por causa da imensa torcida do seu time de futebol, mas também por ser o mais acessível financeira e socialmente. Apesar de não oferecer quadras de tênis nem áreas exclusivas, numa época sem academias de ginástica, era o único lugar, talvez na cidade inteira, a possuir instalações esportivas de qualidade para sócios e convidados. Essas instalações incluíam um pequeno estádio de futebol - onde craques como Júnior e Zico treinavam - uma área dedicada ao remo, salas de musculação, saunas e duas piscinas olímpicas onde alguns dos melhores nadadores brasileiros haviam se formado.
Era lá que tinha aulas de natação três vezes por semana. Quando saía da piscina, voltava a pé para o Paissandu que ficava no quarteirão de baixo. Apesar da proximidade e do tráfego constante, era considerado um trajeto perigoso, propício a assaltos. As calçadas eram desertas, não havia lojas, escritórios ou qualquer tipo de vida pública ao redor, somente os muros altos de concreto protegendo os clubes.
Dito e feito, um dia no caminho vi três garotos que pareciam favelados se aproximando com a cara fechada. Pressenti o perigo, mas como não tinha para onde correr, olhei para baixo e fui em frente. Quando a gente se cruzou, o mais alto e mais velho deles parou na minha frente, me olhou de cima e perguntou,
“O que é que tu tem dentro dessa bolsa aí, playboy?”
​
“Nada, tô voltando da minha natação.” respondi preparado para o inevitável.
​
Sem sequer me ouvir ele foi logo dizendo: “Me dá essa porra aqui!”
​
Ainda tentei segurar a bolsa, mas um dos outros dois me deu uma rasteira. Já no chão, vi os três desaparecendo na esquina com meus pertences.
​
Havia somente uma toalha e uma sunga molhada dentro, mas o sentimento de impotência por não ter sido forte ou corajoso o bastante para reagir foi traumático. Quando minha mãe me viu entrando no clube em prantos, baixou o seu instinto de indignação britânica e fomos direto para delegacia de polícia que ficava do outro lado da rua prestar queixa.
​
Entramos lá, eu, com vergonha de ter chorado e Dona Renée exalando o seu ar de superioridade. Logo de entrada exigiu que o recepcionista desinteressado nos levasse imediatamente para falar com o delegado. Sem vontade, ele nos levou ao andar de cima e depois de uns minutos na sala do chefe, saiu e nos mandou entrar. Talvez em resposta à insistência arrogante da minha mãe, o delegado nem se deu ao trabalho de se levantar e pediu que nos sentássemos para explicar o que estávamos fazendo ali. Sem esperar que terminássemos, quase nos ignorando através dos seus óculos escuros, o homem barrigudo, moreno e de bigode espesso deu um suspiro impaciente, abriu uma gaveta e atirou na nossa frente um álbum com fotos de bandidos perigosos para ver seu eu reconhecia algum.
​
Ele olhou debochado para a minha mãe e depois para mim. “Aqui tem fotos de assaltantes à mão armada. Reconhece algum?” Ele foi virando as páginas. “Este aqui a gente pegou num assalto no ano passado, mas soltaram ele há pouco tempo. Foi ele?”
​
Fiz que não com a cabeça.
​
“E este aqui? Assaltante de banco, reconhece?”
​
Depois da sessão de humilhação, com a desculpa de que tinha coisas importantes para fazer, o policial pediu para que a gente se retirasse sem sequer prometer que iria tentar fazer alguma coisa.
​
*
​
A delegacia era uma construção amarela desbotada que mais parecia uma casamata. Em cima da entrada, tinha uma insígnia com a inscrição “14ª Delegacia de Polícia” anunciando o que era aquele prédio destoante. O seu estacionamento de terra batida vivia cheio de todo tipo de viatura policial. Do outro lado da rua, ficava uma igreja malcuidada de arquitetura recente, na esquina de um beco, a Cruzada São Sebastião. Nele se encontrava o único conjunto habitacional da Zona Sul do Rio de Janeiro. Esse era, sem sombra de dúvida, o lugar mais perigoso nas redondezas; para nós uma área proibida.
​
A cruzada parecia um campo de refugiados. Seus moradores eram remanescentes da favela da Praia do Pinto, que até meados dos anos 1960 ficava no meio de todos aqueles clubes requintados. Pouco depois do Golpe Militar de 1964, após tentativas “pacíficas” de remover os habitantes, as autoridades militares autorizaram que ateassem fogo aos barracos. Após a destruição, o terreno foi convenientemente repassado a empreiteiras camaradas que limparam e aterraram a terra para depois construir edifícios modernos e elegantes. As famílias que se mudariam para lá seriam na sua maioria de militares de médio escalão.
​
Os ex-favelados que se recusaram a mudar para subúrbios longínquos foram transferidos para o outro lado da rua onde, além da igreja, construíram um projeto social de prédios de oito andares. Suas novas acomodações rapidamente adquiriram um ar dilapidado que, junto com a sua arquitetura minimalista, faziam o lugar parecer um complexo penitenciário. A barra ali era pesada. Além dos locais, só camburões e policiais armados se aventuravam beco a dentro.
​
Na calçada oposta daqueles prédios, havia um muro alto coroado por uma grade igualmente elevada coberta de arame farpado. Ele separava aquele território de raiva engasgada do nosso campo de futebol de salão no Clube Paissandu.
​
Era lá que batíamos as nossas peladas na mesma hora em que os meninos da cruzada jogavam as deles. Dava para ouvi-los claramente. Volta e meia alguém exagerava numa bola dividida ou num chute forte sem pontaria e a bola ia parar do outro lado do muro. Quando isso acontecia, a gente dava a partida por encerrada já que ela quase nunca voltava. Como revanche, o mesmo valia para as deles que a gente só devolvia se tivessem devolvido a nossa recentemente. Aconteciam ocasionais trocas de pedras e de palavrões e, às vezes, meninos mais atrevidos subiam no muro para nos ameaçar, porém quando faziam isso, se tornavam alvos fáceis para boladas.
​
*
​
Garotos como aqueles da Cruzada e como meus assaltantes trabalhavam no Paissandu como boleiros de tênis e muitos dos seus pais eram funcionários do clube. Sem exceção, eram mais bem preparados fisicamente do que o mais forte e o mais bem preparado de todos nós. Às vezes combinávamos de jogar contra eles, mas era o mesmo que ficarmos sentados aprendendo com a sua magia futebolística legitimamente brasileira.
​
Apesar de, entre nós, fazermos piadas do seu português errado, dos seus tênis furados e da sua ignorância, os respeitávamos em segredo. A verdade era que todo homem da classe média carioca tinha inveja do arquétipo do homem negro da favela, admirado por ser bom de bola, de briga e de samba, idealizado como viril, com um monte de gostosas de todas as cores e classes sociais correndo atrás deles. A única característica "positiva" que lhes faltava era, é claro, a nossa educação exclusiva e a nossa pele branca.
​
Na nossa bolha, era fácil esquecer que aqueles que víamos como favelados eram a maioria absoluta da população carioca. Apesar disso, não tinham o mesmo grau de cidadania que nós e somente adquiriam respeitabilidade como estrelas do futebol, sambistas e mais tarde, para alguns, como traficantes. Senão, eram elementos secundários nos nossos lares, nos nossos clubes, nas nossas escolas, nos escritórios, nas repartições públicas e mesmo na praia, como vendedores ambulantes. Nas horas de lazer eram passistas de escolas de samba, frequentadores de praias longínquas, pedintes e assaltantes. Para alguns, quase todos eram marginais esperando para serem presos, merecedores do seu destino por serem preguiçosos, desonestos e depravados. A atitude parecia com a dos brancos para com a população negra na África do Sul durante o apartheid.
​
*
As empregadas domésticas - resquícios da época da escravidão terminada apenas 74 anos antes de eu nascer - encarnavam a ligação entre esses dois mundos. Todo mundo que conhecíamos tinha pelo menos uma. Todo apartamento, por mais modesto que fosse, vinha com uma área de serviço para elas. Todo prédio tinha um elevador e uma entrada de serviço para que os dois mundos não se misturassem. Uniformizadas, essas mulheres limpavam nossas casas, lavavam nossas roupas, cozinhavam a nossa comida e comiam nossas sobras. Quando chegava a noite, iam dormir em quartos abafados e sem janelas, isoladas na sua parte do apartamento, tendo como confortos ventiladores pequenos, crucifixos na parede e rádios baratos. Do lado de fora, tábuas de passar, vassouras e roupas sujas as aguardavam para o dia seguinte.
​
Quando era pequeno, uma das várias domésticas que passaram por nossas vidas colocava seu emprego em risco trazendo seu filho em segredo para morar escondido em nosso apartamento. De acordo com o rígido código de conduta, isso estava totalmente fora dos limites. Eu era novo demais para conhecer as regras e me tornei o único da família a saber da presença do meu amigo secreto que me seguia por todo lado, mas que se escondia atrás das cortinas quando o resto da família estava em casa. Um dia Renée descobriu o garoto e não teve dúvidas nem tolerância: despediu a mulher no ato. Essa atitude severa estava de acordo com a ética da época e do lugar. Todos os vizinhos e amigos apoiaram a decisão.
​
Por outro lado, nossa última empregada, Dona Isabel, ficou conosco por mais de vinte anos. Ela era a versão brasileira da Mamãe Dois Sapatos, a doméstica do desenho animado Tom e Jerry – negra retinta, baixa e troncuda, com um traseiro gigantesco que balançava pesado em cima de suas pernas grossas e tortas. Por conta da convivência diária, era comum que surgissem laços afetivos entre as domésticas e gente da família. Certamente, esse foi o caso de Dona Isabel com a Sarah e eu. A considerávamos como uma segunda e mais compreensiva mãe. Mesmo assim, o reconhecimento tácito de sua condição estava sempre presente. Enquanto trabalhou com a gente nunca se sentou conosco na sala de estar como também nunca saímos juntos. Tudo o que sabíamos da sua vida particular é que vivia num subúrbio afastado com um “sobrinho”, que tinha crescido em uma fazenda em Minas Gerais, que encontrava consolo no Candomblé e que tinha trabalhado para o líder integralista Plínio Salgado. O engraçado é que apesar de não saber nem ler nem escrever, esperta, ela aprendeu a entender inglês e volta e meia nos surpreendia com frases na nossa língua.
*