


Foto: Acervo pessoal
Nietzsche, o filósofo antirreligioso alemão, escreveu que grandes mudanças entram em nossas vidas como pombos pisando leve ao entrar em uma catedral, ou no caso uma sinagoga. Tudo começou com uma inocente partida de futebol. Todas as terças e quintas a Escola Britânica nos levava a um campo de futebol oficial em Botafogo. Tal como a confusão que estava por acontecer, tudo naquelas partidas era desproporcional: o campo era grande demais para meninos de dez anos e a distância entre as traves era grande demais para os goleiros. Para os passes, quase não dava para ver os companheiros, as corridas eram exaustivas, quando driblávamos um adversário e olhávamos adiante, ainda parecia haver quilômetros para se chegar ao gol. Para piorar as coisas, o professor levava as nossas atuações a sério e parava tudo para marcar o menor dos erros.
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Não via a hora de sair daquela furada e pegar o ônibus da escola que nos levava ao clube Paissandu. Lá ia rolar a nossa tradicional e muito mais agradável partida de futebol de salão. O apito final foi um alívio. Fomos ao vestiário buscar nossas coisas e quando entramos no veículo escolar já estávamos escolhendo os times. O motorista interrompeu nossa animação para perguntar os nomes. Ele não encontrou o meu e me mandou descer. Alguém na secretaria havia me colocado na lista errada e agora tinha que voltar para a escola com as outras crianças de onde pegaria o ônibus de sempre para casa. Em pânico, contei o problema ao professor, mas ele disse que não podia fazer nada. Sem querer aceitar um não como resposta, pedi uma carona a um amigo que estava indo para o clube após sua aula de judô na escola. Ele disse que sim e o professor concordou, mas não deve ter contado para mais ninguém.
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Na escola, depois que todos partiram, ficamos só os dois e o instrutor no pátio vazio. A aula começou e o fiquei assistindo jogando o Martin para lá e para cá ao redor do tatame improvisado por uma entediante hora e meia.
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No finalzinho da aula sua mãe chegou. Quando ela ouviu sobre a carona, lhe deu uma bronca enorme dizendo que ele sabia que não tinha clube depois do judô. Acontece que ela estava com pressa de ir para um compromisso e não dava para me levar até o clube no Leblon. Contudo, entendendo a situação que o filho tinha me colocado e sabendo que não dava para me deixar sozinho na escola, ela acabou me levando para casa, em Copacabana. No caminho, só conseguia pensar no tamanho da encrenca.
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Dito e feito, quando não apareci no clube, dona Renée telefonou a escola. Alguém atendeu e deu a resposta inacreditável de que ninguém sabia onde eu estava. Essa era uma época em que a guerrilha urbana sequestrava estrangeiros para trocá-los por camaradas na prisão. Obviamente não pertencíamos ao grupo de risco – diplomatas e altos executivos – mas a paranóia fez com que Renée entrasse em parafuso e saísse ligando para todo mundo.
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Ao me ver chegar em casa, a empregada já enlouquecida pelos telefonemas incessantes, teve um acesso de pânico. Alguém teve a ideia de me colocar num táxi que me levasse ao clube. Desci com o porteiro, Zé, que parou o primeiro que apareceu. Da minha parte, aquilo era uma aventura eletrizante; ali estava eu, com dez anos de idade, andando de carro sozinho com um motorista desconhecido e me abaixando sempre que passávamos por policiais porque, na minha cabeça, aquilo era ilegal.
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Quando minha mãe descobriu o que havia ocorrido, ficou furiosa. As coisas pioraram quando o novo diretor, um ex-oficial disciplinador da Marinha Real, me culpou pelo incidente. Começaram a aparecer avisos pela escola dizendo que todos podiam fazer isso ou aquilo, menos eu porque que era um irresponsável. Meus pais decidiram que a marcação era inaceitável.
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Foi assim que deixei o casulo protetor da Escola Britânica para entrar no universo escolar brasileiro. Na verdade, não foi cem por cento brasileiro. Meus pais resolveram me colocar numa escola judaica, o Eliezer Steinbarg, uma aposta segura até que resolvessem o que fazer comigo. De minha parte, a mudança foi bem-vinda; gostava de novidades e não teria mais o Nicholas e o Gareth na minha vida. Apesar da excitação inicial, deparei logo com obstáculos; as salas tinham pelo menos o triplo de alunos e as aulas eram em português. Além disso, o currículo era mais avançado em ciências e em matemática e havia matérias que teria que começar do zero: o hebraico, com seu alfabeto diferente, o iídiche e história judaica. Quando a poeira baixou, me dei conta de que, igual na Escola Britânica, era bem diferente dos meus colegas. Como era de se esperar, diante de minha frágil situação apareceram novos inimigos a encarar.
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Apesar da escolha do colégio, Renée e Rafael – assim como todos seus amigos – se viam como cidadãos ateus do mundo. No entanto, conforme foi ficando claro que a estadia no Brasil era permanentemente, decidiram utilizar a religião para dar aos filhos um senso de identidade. Nos tornamos sócios de uma sinagoga, a ARI, a Associação Religiosa Israelita, uma congregação não-ortodoxa de judeus asquenazis, ou provenientes da Europa do Leste em Botafogo.
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Como todo mundo, íamos para marcar presença. A associação esperava dos seus membros respeito às tradições e pagamento pontual das anuidades salgadas. A religiosidade era outro assunto. Por exemplo, nunca ouvi ninguém mencionar o fato de que uma favela que ficava ao lado tinha sido destruída para que pudessem rezar em paz. No fundo aquilo era um clube. Para mim, embora fosse divertido encontrar amigos do futebol ali, detestava a rigidez e a hipocrisia burguesa que exalava daquelas pessoas. Nos feriados importantes, a sinagoga lotava com personagens de classe média alta ansiosos em se mostrar. Para ir a esses eventos chatíssimos era obrigado a colocar minhas melhores roupas e andar pelas ruas parecendo um principezinho gay enquanto todos continuavam levando suas vidas normalmente.
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No dia mais solene do calendário religioso, o Yom Kippur – o dia do perdão - o clima ficava mais espiritual. Junto com a nação inteira espalhada pelo mundo, a comunidade jejuava por vinte e quatro horas. Os adultos permaneciam dentro da Sinagoga se submetendo, ora em pé ora sentados, à uma maratona interminável de sessões de orações. Conforme o dia ia passando, lutavam contra suas culpas e contra a fome e a sede crescentes. Enquanto isso, ficava do lado de fora com meus amigos, todos de saco cheio sem ter o que fazer.
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O ponto alto do feriado - e do calendário Judaico - era o fechamento apoteótico daquele dia. Com todos os presentes afetados pelas vinte quatro horas de jejum, rezas quilométricas em hebraico e meditações silenciosas, o rabino e outros membros eminentes da congregação devolviam o rolo sagrado à sua arca. Em seguida chamavam um especialista para tocar o Shofar; um chifre de carneiro transformado em instrumento musical. Com a comunidade unida depois daquele dia exigente ele soava um toque ritual que parecia o de um trompete alto. Aquele som agudo e rústico era como um chamado de um passado longínquo no deserto, conclamando o povo a despertar para algo que estava mais vivo que nunca.
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O único milagre alcançado nessa e em outras datas importantes era o de nos sentirmos judeus. No entanto, acima das tradições religiosas e da memória do Holocausto, o que mais unia a nação naquela época era o Estado de Israel. O mundo havia ensinado à geração de meu pai que numa terra estrangeira, o povo local poderia acabar atirando você e sua família numa câmara de gás por rejeição e ódio. Fariam isso sem se importar no que você acreditasse ou como você fosse enquanto indivíduo. Tudo isso dentro da lei e com a benção do Estado. Para aquela geração, uma pátria judaica era a única forma de garantir a sobrevivência dos seus descendentes. O certo seria que aquilo acontecesse na Alemanha, mas por uma série de fatores históricos - entre eles a pressão de evangélicos dos ex-colonizadores britânico e do resto do mundo - acabou sendo na terra prometida aos judeus na Bíblia. Apesar das inúmeras forças políticas e militares em jogo, o acontecimento pareceu aos judeus daquela geração, nada menos do que redenção divina após o extermínio de tantos.
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Desde antes da sua criação, para garantir sua existência, Israel teve que vencer guerras contra vizinhos decididos a jogar os colonos judeus no mar. Com os triunfos militares, veio a transformação de uma nação de vítimas em uma potência militar e com ela uma febre eufórica que varreu o mundo judaico. Nossa casa não foi exceção. Rafael devorava livros dos líderes sionistas e fazia doações generosas à causa. Em nossos círculos, a mera menção dos palestinos era considerada uma forma de traição.
Mesmo assim, para qualquer pessoa de consciência aquele entusiasmo era difícil de aceitar. Por toda a história sangrenta da "terra prometida", pouquíssimos envolvidos entenderam que paz, estabilidade e segurança exigem compromissos. A agenda absurda de ateus nacionalistas usando histórias da Bíblia para justificar a tomada de posse de uma terra alheia considerada santa pelas três maiores religiões do mundo, lar de uma população que vivia lá há séculos e pronta para lutar para manter o que considerava dela, acabaria certamente em tragédia.
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Pude ter uma ideia clara de como era a vida em Israel por intermédio de um de meus melhores amigos, Uri. O pai dele, Ossi, cunhado do Paulo, trabalhava com Rafael. Quando jovem, serviu o exército na guerra da independência e veio para o Brasil logo depois. Nascido e criado na França, com um charme a la Humphrey Bogart, fazia sucesso com as brasileiras. Porém, como mandava a tradição, acabou se casando com uma belíssima ex-atriz israelense, mãe do Uri e do seu irmão mais novo, David. O casamento acabou não dando certo e ela voltou para sua terra com os filhos
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Os irmãos não queriam ir. Também não queria que fossem pois éramos como família. Mas pelo menos a amizade sobreviveu já que os dois viriam todos os anos para o Rio a fim de passar as férias com o pai. Nas conversas eles me fizeram ver como era difícil a vida na “Terra Prometida”. Israel era um país sitiado, sempre em pé de guerra, com alistamento obrigatório de três anos para todos os meninos e todas as meninas e com constantes ações e ameaças terroristas. Seus relatos me fizeram perceber a sorte de estar crescendo no Rio. No entanto, o que mais chamava a atenção, era que enxergavam os palestinos como seres humanos, mesmo durante e depois de servirem o exército. Por outro lado, Rafael e seus amigos – que nunca teriam que enfrentar um inimigo armado em um campo de batalha – os enxergavam como sub-humanos e tinham opiniões muito mais agressivas. Eu via nos irmãos uma forma mais saudável de ser judeu, livre da claustrofobia da comunidade do Rio de Janeiro. Aquela perspectiva me fez forte o suficiente para que o antissemitismo, real ou imaginário, não moldasse meu caráter.
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Como é o caso de todo garoto “brimo”, quando fiz treze anos chegou a hora do meu Bar Mitzvá. Essa é uma cerimônia onde um iniciante de treze anos de idade é convidado a ler das escrituras sagradas na frente da comunidade. Parece simples, mas para garotos de famílias assimiladas que não sabem nem falar nem ler hebraico, muito menos hebraico bíblico, isso é um desafio. Não é à toa que esse rito, tão obrigatório quanto a circuncisão, é uma fonte de renda imprescindível tanto para rabinos quanto para sinagogas.
Minha saga começou seis meses antes da cerimônia com a cata de um professor. A preferência ns ARI era o cantor principal da sinagoga, o chasan Aaronson, um homem imponente que balançava seu corpo freneticamente e que contorcia seu rosto ao entoar as preces com sua voz ensurdecedora. Inacreditavelmente, o cuspe que jorrava da sua boca acabava parando até em seus óculos fundo de garrafa. Só que suas aulas eram caras demais. Daí partimos para a segunda opção: um cantor baixinho e gorducho, também por volta dos 60 anos, que também usava óculos fundo de garrafa, mas que cantava mais introspectivamente e usava uma indumentária menos dramática. Ele era visto com desdém por causa de seu hábito de cochilar em frente da congregação em ocasiões importantes.
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No começo fiquei fascinado. A parte da Torá que ia recitar versava sobre um conceito utópico que, caso adotado, colocaria o mundo de volta nos trilhos. A lei divina ditava que a cada sete anos, todos os israelitas – bem como sua terra e seus servos – deveriam descansar por um ano inteiro. Esse era o famoso ano sabático. Ao fim de 49 anos, isto é, depois de sete sabáticos, quem quer que houvesse comprado terra nesse período, deveria devolver a propriedade aos donos originais para que, no final, ninguém se tornasse mais rico ou pobre.
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As aulas eram num quarto abafado cheirando a mofo no apartamento do professor em Laranjeiras, um bairro para mim afastado. Nelas, aprendia a ler meu trecho e como cantarolá-lo de acordo com as notificações nas escrituras. Ficávamos repassando aquilo uma vez atrás da outra, sentados em cadeiras desconfortáveis e nos escorando numa velha mesa de madeira coberta de pilhas de livros religiosos. Depois da terceira ou quarta vez, a experiência passou a ser insuportável e tinha que lutar para ficar acordado todas as vezes que aquelas páginas se abriam na minha frente.
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Um dia, completamente do nada, senti – e depois vi – a mão gorda do meu mentor rastejando pela minha coxa e indo parar no meu “shlong” de treze anos de idade. Olhei abismado para a cara dele, que continuou a ler o livro e a agir como se nada estivesse acontecendo. Apesar de ter sido só uma apertadinha, fiquei sem vontade nenhuma de voltar para aquela salinha.
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Quando contei o ocorrido em casa e pedi para parar com as aulas, acharam que aquilo era uma desculpa esfarrapada. Para minha sorte, seguindo o plano da sinagoga, aquela foi uma das últimas aulas e logo passei para a próxima etapa de ensaios finais no shul - ou sinagoga em iídiche. Com isso me vi livre daquela maluquice enquanto meu respeito e meu interesse por religião organizada desciam pelo ralo.
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No dia da grande ocasião, o salão estava cheio de rostos conhecidos; amigos do Rafael e da Renée, amigos de escola e do futebol, até a Bibi tinha comparecido. Quando a hora chegou, o jovem rabino de Nova York, um ruivo com um bigode e óculos redondos – parecido com o Ned Flanders dos Simpsons – me chamou para ler a Torá. Estava tão nervoso que fiquei com um tique no olho que durou semanas. A cerimônia acabou com um sermão constrangedor em sotaque americano onde entre outras coisas supérfluas, ele contou a todos que eu gostava de dançar rock e de fazer surfe.
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Caso fosse um judeu ortodoxo, aquilo teria sido um rito de passagem relativamente fácil e daquele dia em diante seria responsável por meus atos em termos de punições e de recompensas divinas. Homens de chapéu comprido e de barba longa parabenizariam a mim e aos meus pais pelo dever cumprido. Quando entrasse na sinagoga no sábado seguinte me veriam com novos olhos. No meu caso não foi nada daquilo. Para os meus pais tinha sido o prosseguimento de uma tradição obsoleta e uma oportunidade para confirmar seu status social. Para mim, tinha sido uma obrigação sem nexo recompensada por presentes caros.
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Depois de tudo terminado, havia de fato passado para uma nova etapa de vida: meu cabelo estava crescendo ao mesmo tempo que os hormônios estavam modificando meu corpo. Minha iniciação para a masculinidade tinha acontecido na praia pegando ondas grandes e me provando nas machanés. Passei a ver a sinagoga como um ponto de encontro para coroas que, fingindo ser religiosos, tentavam cultivar contatos comerciais e profissionais. Aquele teatro e a pegadinha do professor nunca representariam o caminho para uma verdade superior.
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Já que a norma adotada pelos judeus modernos era a de ser ateu, por que deveria perder tempo com aquilo? Se queriam usar tradições do Leste Europeu e o medo para me manter preso dentro de uma cerca, o plano não funcionaria no Rio de Janeiro dos anos setenta. Além disso, apelar para o sionismo como forma de me manter na comunidade era ridículo: se Rafael havia escolhido se casar uma princesa rica em Londres e emigrar para o distante Brasil em vez de ter tido a coragem de lutar por Israel, que comprometimento podia exigir de mim?
Um dia durante o jantar tentei conversar com meu pai em ídiche, que estava aprendendo mal e porcamente na escola. Ele ficou horrorizado ao me ver falar a sua língua natal e resolveu me tirar do Eliezer Steinbarg. Vai entender...
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