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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 6

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Foto: Wikimedia

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“…e HaShem (Deus) disse a Moisés: Dize aos filhos de Israel:

És um povo de dura cerviz (pescoço duro).”

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Torá.

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Na primeira reunião do meu time, o azul, fiquei orgulhoso por ter sido escolhido para fazer parte da patrulha designada para capturar a bandeira inimiga. Depois de dividir as tarefas e dar a sessão por encerrada, nosso madrich, ou instrutor, Mauro Lieberman – que todos chamavam de Maurão – chamou nosso grupo para o seu quarto. Cheios de moral e sob os olhares interessados de algumas das meninas, saímos do refeitório atrás dele. O dormitório dos instrutores ficava numa cabana separada. Assim que entramos fomos fazendo uma roda, nos sentando no chão. Com todo mundo dentro, ele fechou a porta, se sentou conosco e abriu um caderno com um esboço do sítio.

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“Pessoal, a bandeira deles vai estar aqui, no meio do campo de futebol. Vai ter um círculo grande de cal em torno dela, não tem como perder. Dividi vocês em dois grupos; quem vai lá são o Richard, o Davi, o Marcos e o Hélio.”

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Ele olhou para ver se a gente estava prestando atenção. “Vocês vão usar essa trilha aqui no meio do mato. O outro grupo é o do Murilo, Samuel, Sérgio e Marcelo. Vocês vão descer para o campo também, mas pela estrada principal, essa daqui. A ideia é distrair o time deles enquanto os outros pegam eles de surpresa.”

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O Maurão, normalmente um cara meio largado com ar de hippie, estava sério “Por isso quero que você, Murilo, e você, Samuel, deem uma canseira neles.”

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A gente teve que rir. Murilo Berkovitz e Samuel Goldfarb eram dois trogloditas da Tijuca. Todos sabiam que eram inteirados – de verdade – na malandragem do bairro. Era impossível não ter medo deles. Já dava para ver a cara do outro time tremendo na base.

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Nosso chefe continuou. “O primeiro grupo vai entrar pela trilha depois da caixa d'agua, aqui” ele apontou para o mapa. “Quando chegarem na beira do campo, ficam esperando. Na primeira bobeira deles, vocês saem correndo. Daí é chegar no círculo, levantar a bandeira e partir para o abraço.”

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Já nos vendo como os heróis daquela guerra simulada, respondemos que ia ser mole vencer aqueles otários. Maurão encerrou dizendo “Vamos lá pessoal, vamos ganhar essa parada!”

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Saímos do quarto nos sentindo a própria tropa de elite depois de uma reunião secreta no quartel general.

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Nos dois dias que antecederam o confronto houve intensas preparações e uma divisão clara se formou entre as cinquenta e poucas pessoas que estavam ali. O jogo começou de manhã, num clima agitado. Depois que ouvimos o apito, seguindo o plano do Maurão, as meninas e os caras mais quietos do nosso time ficaram no alto do morro para defender a bandeira. Na turma de ataque, enquanto o Murilo e a sua turma pegaram a estrada principal a gente se embrenhou pela trilha. Passado um tempo, começamos a ouvir os gritos do inimigo correndo atrás do grupo deles e indo em direção às nossas defesas.

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Avançamos mais lentamente que o esperado porque o inimigo tinha colocado sentinelas ao longo da trilha. Para nos livrar deles nos espalhamos pelo mato. Aí, quer por falta de empenho, quer por falta de cuidado, um a um, meus camaradas foram sendo eliminados, na turma do Murilo também. As “mortes” aconteciam quando um adversário lia em voz alta o número nas nossas braçadeiras. Terminei como o único sobrevivente. Agora sozinho, fui em frente até conseguir me esconder no meio de uns arbustos a poucos metros do campo.

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A defesa do inimigo estava preocupada. “Ainda tem um escondido no mato”, gritou um deles. “Ele está ali! Ouviram este barulho?!”

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Ledo engano. Para despistá-los, estava atirando pedras do mesmo jeito que os comandos americanos faziam na minha série de guerra favorita: Combate!. Teve uma hora em que os pés de um deles passaram a poucos centímetros do meu nariz, mas continuei ali, deitado, incomodado pelos insetos a apenas uma breve corrida da bandeira inimiga.

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De repente teve um reboliço no time deles, Bruno Feldstein, um cara sardento, gorducho e metido a inteligente, voltou apressado da nossa base dizendo a todos que o ataque deles estava dando certo. A comemoração antecipada foi minha oportunidade e saí correndo. Quando perceberam houve uma gritaria e um bando veio para me pegar. Me alcançaram a poucos centímetros do círculo de cal. Uma tempestade de braços me agarrou e tentou tirar minha mão direita da identificação no braço para me "matar". Só faltava um passo e, usando toda minha força, consegui levar os que tinham conseguido me agarrar junto. Dentro do círculo ninguém podia mais me tocar. Ali, igual ao último sobrevivente humano cercado por zumbis, levantei a bandeira do time azul e dei fim ao jogo.

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Aquele exercício marcou o encerramento de duas semanas de meio colônia de férias, meio seminário, ou machané, num hotel-fazenda com o nome iídiche Kinderland. Ela tinha sido organizada pelo Ichud Habonim, a organização sionista à qual eu pertencia. Para falar a verdade, o objetivo desse e de vários outros “movimentos” – que era como a comunidade os chamava – era o de nos convencer de que quando chegássemos à idade adulta nos mudássemos para Israel e servíssemos seu exército. Para tanto, tentavam incutir uma forte dose de nacionalismo judaico por meio de preleções sobre como nosso povo tinha o direito de viver na sua própria terra como qualquer outro sem temer pogroms, inquisições, expulsões ou holocaustos.

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Contudo, apesar da sua popularidade e dos pacotes que organizavam para irmos passar o verão em kibbutzim em Israel, o índice de sucesso no recrutamento de soldados da classe média carioca era baixíssimo. A maioria dos pais encarava essas organizações apenas como uma maneira de perpetuar sua identidade ancestral e de tirar uma folga das crianças nas tardes de sábado e durante as férias. Quanto a questão do serviço militar, morriam de medo de que os abandonássemos para acabar envolvidos numa guerra. Fora notórias exceções, para nós esses encontros eram apenas uma maneira de nos divertir. Todos achavam a parte didática um saco. De qualquer forma, vale ressaltar que apesar de nenhum madrich abordar questões fundamentais acerca da legitimidade de um estado exclusivamente judaico naquele lugar em específico ou sobre o destino dos palestinos, o ódio e o racismo nunca fizeram parte da pauta.

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Ainda não é claro se ser judeu significa pertencer a uma nação, ser parte de uma religião ou seguir uma tradição. Qualquer que seja a resposta, a introdução foi dolorosa. Quando tinha apenas dez dias de vida, um sujeito de barba longa vestido de preto se aproximou com uma lâmina afiada, entoou uma canção estranha e cortou meu prepúcio sem dó nem anestesia. Depois de limpar sua lâmina e colocar um algodão para estancar o sangue, o rabino abençoou aquele corte que seria meu passaporte para uma família estendida que, de acordo com a crença, teria começado há quatro mil anos com alguém chamado Abraão.

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Além da dor inenarrável, que não me lembro, esse rito me jogaria num mundo de contradições, mitos e preconceitos ligados ao que talvez seja o povo mais esquisito do planeta. Ele também acabaria fazendo com que meu pênis tivesse uma aparência diferente da dos de meus amigos de futebol. Numa perspectiva mais ampla, aquele ritual determinaria com quem deveria me casar, quem deveria ser meu amigo e qual estilo de vida deveria seguir. Por outro ângulo, ele também ditaria quem iria querer se casar comigo e quem iria querer ser meu amigo.

 

Em casa, meus pais achavam tudo isso positivo, sua família e seus amigos também – afinal, fazia aquilo parte do que éramos. Fora daquela bolha, nem todos concordavam. Quando tinha uns cinco anos abri por acaso um livro grosso sobre o Holocausto. Não sabia ler, mas dava para compreender as fotos de judeus religiosos chorando momentos antes de serem executados, de soldados ameaçando crianças com metralhadoras, de pessoas esqueléticas em pijamas listrados atrás de cercas de arame farpado com rostos sem expressão e de pilhas de corpos em valas comuns. Seu único crime tinha sido o de terem nascidos tão judeus quanto eu.

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Nos anos 1960, a cicatriz ainda era fresca e mal disfarçada. Os adultos tinham as suas histórias, mas raramente falavam delas, só sabíamos o que ouvíamos por terceiros. A mãe de uma amiga que passou a guerra adotada por freiras, o conhecido de meu pai que tinha ido a pé da Romênia até a Palestina depois de ter visto sua família ser fuzilada, a mulher do Peter que tinha sido colocada num trem de crianças refugiadas na Bélgica e que nunca mais viu seus pais depois daquilo. Esse peso se manifestava em medos, neuroses e na desconfiança para com os não judeus. Para nós que viemos depois, restou um legado complicado.

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Outra faceta desta situação era que em um país latino-americano, governado por uma ditadura tradicionalista, o catolicismo apostólico romano era uma presença marcante no dia a dia - os evangélicos só apareceriam uma ou duas décadas mais tarde. Mesmo no futebol, agora onipresente na minha existência, os heróis do meu time e da seleção faziam sinais da cruz sempre que marcavam gols e os comentaristas de futebol viviam usando bordões religiosos. Na vida cotidiana era igual; "Ave Maria", "cruz credo", "minha Nossa Senhora", "Jesus amado" e por aí a fora eram expressões corriqueiras. Para além disso ainda havia uma estátua enorme do Cristo no meio da floresta da Tijuca, sinalizando aos quatro ventos qual era a religião dominante da minha cidade.

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Na Escola Britânica era um pouco diferente. Meus colegas de sala eram em sua maioria protestantes. Pelo menos teoricamente, eram mais tolerantes. Como o único garoto judeu da turma – tanto na escola quanto no clube – era poupado dos estereótipos ligados à minha gente. Por me considerar um deles, se sentiam à vontade em me contar coisas estranhas com as quais não podia concordar. De acordo com minha experiência pessoal, sabia que éramos nem mais nem menos pão-duros do que pessoas de outros povos. Sabia também que não éramos conspiradores perversos empenhados em dominar o mundo. Além disso, nunca tinha ouvido falar de ninguém beber o sangue de crianças cristãs durante a nossa Páscoa, nem muito menos em qualquer outra época do ano. Ao contrário, a comunidade mais parecia um monte de gente desengonçada e neurótica.

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Como qualquer garoto, queria fazer parte da turma. Por isso, embora negasse esses absurdos, fazia pouco caso do seu teor ofensivo. No fundo, porém, sentia que havia algo de fundamentalmente errado em ser forçado a ser um judeu enrustido. Vivendo entre os goyim - o nome dado aos não-judeus - simpatizava com a história de Moisés crescendo na corte do Faraó e às vezes me perguntava onde isso ia parar.

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A única coisa certa, era que pertencer ao “povo escolhido” por Deus era estranho. A própria palavra “judeu” fazia com que pessoas virassem as costas ou produzissem sorrisos sem qualquer motivo lógico, dependendo de quem a escutava ou de quem dizia.

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Junto com esses absurdos vinha um monte de outras perguntas. Por que gente que nem nos conhecia pessoalmente nos odiava a ponto de contemplar um extermínio em massa? Era culpa deles ou, de alguma forma, nossa? Quanto ao aspecto religioso havia questionamentos igualmente fundamentais: onde estava Deus quando pessoas inocentes imploravam nas câmaras de gás? Tinha outra coisa; a reza máxima da nossa liturgia - que todo judeu conhece desde a mais tenra idade - afirma que o Eterno era um. Se havia um único Deus para todos - cristãos, judeus e muçulmanos - por que não chegar a um acordo? Não seria isso que o criador iria querer das suas criaturas? Será que iríamos para paraísos diferentes quando morrêssemos? Ninguém jamais conseguiu me responder qualquer dessas perguntas de maneira convincente.

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