

CAPÍTULO 5

Foto: Dominio Publico
"Tabelou, driblou dois zagueiros,
Deu um toque driblou o goleiro,
Só não entrou com bola e tudo
Porque teve humildade e gol!!!"
Fio Maravilha - Jorge Ben
No auge do reinado brasileiro sobre o planeta futebol, mesmo que por um instante, o esporte produziu o que todo governo totalitário deseja: unir a nação como pessoas iguais. Quando o assunto era futebol não havia classe social, cor ou opinião política; todos eram iguais salvo, é claro, mulheres, gays, maconheiros e outras minorias.
Naquela realidade suspensa, os jogadores da seleção eram os super-heróis da garotada. Para qualquer menino fazer parte da saga, bastava jogar bola e torcer por um time. Para mim, essa fórmula caiu como uma luva; a febre do futebol me encaixou num país onde de outra forma seria tachado de esquisito. Seguindo a cartilha, jogava futebol quase todo dia e virei botafoguense. A escolha se deu por Botafogo ser o bairro onde nasci e por gostar do emblema que parecia o escudo do capitão América.
Torcer era um negócio sério; tinha que saber de cor a escalação completa do meu time e a dos outros três "grandes"- Flamengo, Fluminense e Vasco. Tinha que estar a par dos resultados de todos os jogos e saber quais as chances de todos os times de ganhar o campeonato. Assim sendo, por vício e por obrigaçāo ouvia todas as partidas do "Fogão" no rádio e no dia seguinte, lia as páginas de esportes no jornal para saber como os comentaristas tinham entendido a partida e avaliado o desempenho de cada um dos jogadores.
A Rádio Globo era de longe a melhor no futebol. Seus espetáculos auditivos eram, sem dúvidas, a coisa mais emocionante que podia acessar dentro das paredes de nosso apartamento. O estilo circense dos apresentadores era irresistível. Quando um jogador fazia um drible de efeito os narradores, Jorge Curi e Waldir Amaral, iam à loucura. Quando um outro marcava um gol, era um orgasmo. Quando um juiz falhava o comentarista de arbitragem, Mário Vianna interrompia a narração gritando furioso “Errou!!!”. Quando a bola batia na mão de um jogador ele mandava o seu “La mano!!!, cadê o eco?? La mano ôo-ôo-ôo!!!”. Nos casos de impedimento, ele gritava o seu famoso “Banheiiiiira!!!” Para os pênaltis, sempre fazia um comentário solene antes do veredito pesaroso: “Penalidade máxima”.
Depois da partida, era a hora do João Saldanha com suas análises pós-jogo imperdíveis. Elas duravam bem mais de uma hora, mas nunca eram chatas. Com sua genialidade, re-coloria o que tinha acabado de acontecer no estádio, abusando do uso de alegorias inusitadas e metáforas como girafas namorando macacos e elefantes se casando com formigas.
Esses personagens, onipresentes no futebol carioca, faziam dos radinhos de pilha uma ferramenta essencial. Mesmo no Maracanã, todo torcedor tinha um colado ao ouvido. Nas partidas principais, havia tantos que, dado haver um momento de silêncio, a chamada da rádio ecoava alto no estádio.
*
Com o tricampeonato no México ainda fresco na memória, os dois torneios nos quais os times cariocas participavam – o estadual no primeiro semestre e o Brasileiro no segundo – adquiriram um sabor especial. Como a equipe da rádio Globo gostava de dizer, no Maracanã, templo maior desse culto, se jogava o melhor futebol do mundo no maior palco do planeta, uma verdade absoluta na época.
A maioria dos garotos que conhecia já tinham – ou pelo menos diziam que já tinham - ido lá e eu precisava desse crédito. Como sempre, o problema eram meus pais. Se imaginando aristocratas ingleses, nas suas cabeças, o futebol era coisa de operário e da gentalha que vivia em botequins. Ir a um estádio e se misturar com aqueles tipos mancharia de alguma forma a sua posição social, ainda mais no Brasil.
Minha sorte mudou no dia em que Peter, um amigo da roda deles, se ofereceu para me levar junto com seus dois filhos. Apesar da Renée ser contra, Rafael liberou. Peter era o aventureiro da turma: tinha cruzado a América Latina num jipe, era mais jovem que o resto, tinha menos dinheiro, fumava – um tabu em casa –, possuía um corpo definido e bronzeado, falava inglês com sotaque americano e além de tudo, para a minha alegria, era frequentador assíduo do Maracanã.
Ele os filhos torciam pelo Fluminense, o que não era o ideal para um botafoguense. Contudo o jogo era um Fla x Flu. Como o time deles iria enfrentar o Flamengo, o arqui-inimigo de todos, me senti mais confortável. No estádio, gritaria “Nense!!! Nense!!! Nense!!!”, ao invés de “Fogo!!! Fogo!!! Fogo!!!”, o que, dadas as circunstâncias, era aceitável.
*
Os três vieram me pegar cedo numa tarde de domingo. Andar de jipe era uma aventura em si, e estava nas nuvens. Só que assim que cumprimentei seus filhos, Rob e Tony, me lembrei que não gostava deles. Entre outras coisas, toda vez que nos visitavam davam em cima da Sarah de uma forma estúpida e a deixavam chateada. De quebra, ficavam tirando onda com a minha cara por ser mais novo. Apesar dos esforços do Peter em ser simpático, os dois me deram o gelo de sempre, ocupados com seu habitual papo maçante, competindo entre si acerca de conhecimentos de eletrônica e de mecânica. Fiquei no banco da frente com o Peter olhando pela janela, concentrado na Rádio Globo. O entusiasmo voltou quando comecei a perceber que quanto mais perto do Maracanã a gente chegava, mais claro ficava que todos os outros carros estavam indo na mesma direção. Neles, torcedores do Flamengo e do Fluminense ou tiravam sarro ou aplaudiam uns aos outros aos gritos pela janela. No banco de trás, em vez de participar da festa, os irmãos ficaram fazendo comentários antipáticos. Relevei a esquisitice e fiquei curtindo em silêncio, já ensaiando o que ia dizer para os meus amigos.
Chegamos cedo. Assim que Peter estacionou, foi negociar com o flanelinha – flanelinha esse que, evidentemente, não estaria ali quando voltássemos. Enquanto isso, saí para dar uma olhada no Maracanã. Estávamos a uns quatro quarteirões, mas mesmo dali parecia colossal. Mesmo de onde estávamos, dava para ouvir as batucadas e a barulheira saindo lá de dentro. Em torno de nós, milhares de torcedores, pouquíssimos da Zona Sul, iam apressados para o estádio. O clima era frenético. A eletricidade do estádio parecia estar atraindo a multidão como a luminária de um açougueiro atrai moscas.
Depois de se entender com o guardador, Peter, preocupado por eu estar sem seus filhos, acendeu um cigarro e veio falar comigo com um sorriso ansioso, “O que você está achando disso, Richard?”
Sem palavras, só consegui responder: “Muito legal.”
Ele teve um tique nervoso, deu uma baforada no cigarro e perguntou: “Você está com medo?”
“Que nada, estou doido para ver o futebol!”
Depois de um novo tremelique estranho da cabeça, ele me olhou sério “Richard, é fácil se perder num jogo de futebol, principalmente na entrada do estádio. Fique sempre perto da gente, entendeu?”
Engoli seco e respondi: “Claro!”
Ainda me ignorando, os irmãos estavam prontos do outro lado do carro. Peter os chamou e fomos, os quatro, nos juntar à multidão rumo às bilheterias. Os guichês estavam lotados. Pedintes e bêbados vinham importunar quem estava esperando sua vez nas filas separadas por barras enferrujadas. Na calçada, camelôs gritavam a plenos pulmões tentando vender seu estoque de bandeiras, almofadas de espuma e camisas dos dois times.
Depois de uns quinze minutos chegou a nossa vez. Com os ingressos na mão, o próximo passo era entrar no estádio. Isso era uma tarefa complicada. Havia somente dois portões para as arquibancadas, um de cada lado do estádio. A massa se aglomerava em frente deles e ia se afunilando como areia numa ampulheta até alcançar as poucas roletas de acesso. As duas torcidas estavam misturadas. Apesar de não ter acontecido nenhuma briga, o clima estava tenso e cheio de testosterona. Esse não era um lugar para mulheres, crianças ou idosos.
Peter, mais preocupado que nunca e sem tique dessa vez, virou-se para mim e disse: “Segura na camisa do Toni e não larga!”. Depois se voltou para o filho mais velho e o mandou ficar de olho.
É claro que obedeci. Em meio à massa que empurrava para todos os lados, grudei na camisa do Toni e fui atrás tomando todo cuidado para não me distanciar, nem cair e correr o risco de ser pisoteado por centenas de pés ansiosos. O empurra-empurra demorou uns cinco minutos até chegarmos nas catracas. Estas pareciam um oásis surreal de paz, separando a loucura do lado de fora do estádio da insanidade que nos esperava do lado de dentro. Protegidos por guarda-costas gigantes, frágeis empregados de meia-idade inspecionavam tranquilos os bilhetes um a um. Quando pegavam alguém com ingresso falso ou tentando entrar sorrateiramente sem bilhete algum, a malandragem era obrigada a escolher entre dar meia-volta e encarar a multidão ou ser escoltada até a delegacia do estádio.
A paciência daqueles senhores pacatos era pouca. Pegaram um penetra na catraca ao lado e o funcionário explodiu. “Não me interessa que você não tem dinheiro! Pelo amor de Deus, meu filho! Decide logo! Não está vendo a fila?”
Quando chegou a nossa vez, o moreno grisalho de óculos examinou nossos ingressos um a um. Com calma rasgou ao meio os finos papéis azuis, olhou para as nossas caras, depositou sua metade em uma caixa e liberou a roleta. Lá dentro, reagrupamos e saímos correndo com a multidão pela rampa comprida que dava acesso ao anel superior. Guardas com pastores alemães paravam bêbados e torcedores carregando objetos perigosos. Ao final da rampa, a massa se dividiu de acordo com seu time de coração. Nós seguimos os torcedores do Fluminense pelo corredor à esquerda. Passamos rápido na frente de portas de banheiros e de bares sentindo o cheiro forte de urina misturado com cerveja derramada.
Havia entradas a cada trinta metros e Peter tinha que decidir rápido qual iríamos tomar. De repente ele parou e nos empurrou por um corredor estreito onde silhuetas ocultavam a luz no fim do túnel. Subimos correndo sentindo a imensa energia que emanava lá de dentro. Quando finalmente entramos na arena, vi em êxtase o quanto o estádio era gigantesco – dava para entender claramente como cabiam 160 mil espectadores ali. As torcidas já enchiam partes das arquibancadas, principalmente atrás dos gols. No meio havia a famosa tribuna de honra – a seção cercada onde ricos e convidados especiais ficavam. No resto do estádio, os parapeitos já estavam cobertos por faixas e bandeiras das torcidas organizadas. Embaixo, cercado por aquela construção colossal estava o gramado, o palco que captava os sonhos de toda uma nação.
Enquanto Peter decidia onde iríamos nos sentar, fiquei contemplando aquilo embasbacado. Dava para ver que o lugar mais animado era nas torcidas organizadas. Esse era o lugar de onde vinham as batucadas e de onde emanava a vibração. Quando alguém da torcida gritava um refrão, logo depois – como numa reação química – dezenas de milhares de pessoas passavam a gritar a mesma coisa. Só que também era ali que a maioria das brigas aconteciam. Não era o lugar apropriado para um adulto levar três crianças. Assim, acabamos indo mais para perto da zona neutra, entre as duas torcidas, do lado oposto à tribuna de honra. A pedidos do Rob e do Toni, acabamos num lugar ainda na torcida do Fluminense.
Pedindo licença e se equilibrando entre os torcedores e os degraus de concreto, chegamos numa abertura para quatro pessoas. Ainda faltava uma hora para o jogo começar, sentamos e ficamos assistindo ao jogo preliminar entre as equipes juvenis dos dois clubes. Apesar das torcidas só estarem interessadas na atração principal, comemoravam os gols dos novatos e ficavam em silêncio quando havia uma cobrança de pênalti.
Assim que aquela partida terminou, o Maracanã acordou. Já não havia partes vazias no estádio. As torcidas organizadas se levantaram e começaram a agitar suas bandeiras enormes e a soltar foguetes. Os refrãos esquentaram dos dois lados. Em campo, fotógrafos com câmeras e lentes penduradas no pescoço e repórteres portando microfones e fones de ouvido corriam para disputar posições atrás dos gols. Os gandulas uniformizados entraram e foram se sentando ao redor do campo enquanto policiais de óculos escuros segurando pastores alemães patrulhavam as bordas do gramado. Agora, só faltavam os jogadores.
Nas arquibancadas, era como estar no meio de uma festa de meninos levados. Os torcedores entoavam as mesmas musiquinhas obscenas que nós ensinávamos uns aos outros na escola e jogavam copos descartáveis amassados nas cabeças de quem estava abaixo. Os carecas sofriam. A pior coisa que me lembro foram uns caras mijando nos torcedores que ficavam na área inferior ao lado do gramado, a “geral”. Essa era a parte do estádio com os ingressos mais baratos. Lá embaixo, não havia lugar para sentar e o campo de visão era na altura dos pés dos jogadores.
Um amigo me contou a história de um repórter que estava em uma das cabines de imprensa que ficava em frente da tribuna de honra e bem em cima da “geral”. Para fazer graça com os colegas, o repórter começou a xingar e a gozar o pessoal em baixo. Junto com os palavrões veio a dentadura. Assim que aterrissaram, mesmo com suas súplicas, os caras não pensaram duas vezes e pisotearam sem pena seus dentes falsos.
*
Uma voz surpreendentemente formal e monótona saiu pelos alto-falantes anunciando a partida e o nome dos jogadores. Os torcedores fizeram silêncio, mas cada vez que mencionava um dos seus craques iam a loucura. Depois da apresentação, o painel eletrônico acendeu e começou a mostrar o placar do jogo: “Flamengo 0 Fluminense 0”.
Sendo tradicionalmente o time da elite social branca, o símbolo do Fluminense era o pó de arroz. Em preparação para a entrada do seu time, membros da torcida tricolor circulavam com baldes cheio de saquinhos da coisa, os distribuindo como se fossem fazendeiros dando ração aos animais. Assim que o Fluminense aparecesse em campo, todos rasgariam aqueles sacos e atirariam o pó no ar criando uma espessa nuvem branca. Quando o ar clareasse, pareceria que tinham acabado de sair de uma tempestade no deserto.
Com o estádio completamente lotado, dava para ver que a torcida do Flamengo era bem maior, tomando quase dois terços do estádio. Por causa de suas cores: vermelho e preto, o símbolo do clube era um urubu. Em cada jogo, torcedores levavam um urubu de verdade. A tradição era amarrar uma bandeira do clube no pé do bicho e soltá-lo enquanto os jogadores entravam em campo. Se a mascote conseguisse voar para fora do estádio, aquilo era considerado um bom presságio. Naquela situação, a ave desnorteada correria o risco de mudar de cor por causa da nuvem de pó de arroz e de ser confundida com uma águia branca quando retornasse ao ninho.
Quando finalmente os dois times saíram do túnel juntos, levaram o estádio à loucura. Quem abriu o caminho foi o árbitro e seus auxiliares seguidos pelos jogadores em fila indiana, uns se aquecendo e outros dando a mão aos mascotes dos times. Esses meninos ficariam livres para correr pelo campo depois que posassem junto com os atletas para as fotos da imprensa. Na manhã seguinte, aquelas imagens estariam estampadas nas últimas páginas de todos os jornais da cidade. Quem quer que tivesse ido ao jogo sentiria como se houvesse participado do grande evento. Depois da foto, os jogadores se espalharam pelo campo e ficaram tocando a bola, dando piques no gramado e chutando a gol para aquecer o goleiro. Enquanto isso, repórteres corriam atrás dos craques tentando fazer com que tecessem comentários sobre o jogo. Pegando carona nos rádios dos vizinhos, quando víamos um astro do futebol falar com um radialista, podíamos dar um rosto, mesmo que distante, às vozes que vínhamos acompanhando desde que saímos de casa.
O juiz mandou a polícia liberar o campo. Quando só ficaram ele e os jogadores, o árbitro chamou os dois capitães para o centro do gramado para decidir quem sairia com a bola e em que lado cada um dos times ia começar jogando. Com um barulho ensurdecedor nas arquibancadas, os jogadores tomaram suas posições. O homem de uniforme preto olhou para o relógio e deu o apito inicial. Uma estrela da seleção campeã, Gérson se não me engano, passou a bola para trás dando início à partida. O estádio inteiro conseguia reconhecê-lo pela careca como também os demais jogadores por causa dos cortes de cabelo, dos números nas camisas e pelo estilo de jogar. Quando faziam algo de errado, torcedores os criticavam em altos brados como se os conhecessem pessoalmente. Na hora que os atacantes estavam prestes a marcar um gol, todo mundo se levantava e quando o adversário oferecia algum risco, ficavam em silêncio enquanto a torcida rival festejava. No segundo tempo, o Fluminense marcou abrindo o placar. Ainda que não torcesse pelo time, não pude me conter e fui à loucura como se fosse tricolor de nascença.
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Naquele tempo, a televisão ainda estava dando seus primeiros passos e raríssimos jogos eram transmitidos ao vivo. Nossos heróis da bola ainda não tinham empresários planejando suas carreiras milionárias nos campeonatos europeus. Ao contrário, seus horizontes começavam e terminavam dentro dos campeonatos estaduais e nacionais. Para a nata, havia a convocação para a seleção nacional e a fama internacional. Por isso, jogavam para a torcida fazendo o que podiam para reafirmar sua condição de craques. O ali e o agora eram cruciais e tornavam a qualidade daquelas partidas, sem dúvidas, a melhor do mundo. O Maracanã daqueles tempos traz memórias aos torcedores do Rio parecidas às que Woodstock traz para os amantes do rock. Houve momentos de pura magia, gols inesquecíveis, dribles, jogadas e delírios coletivos de outro planeta. Como deve ter sido no Coliseu em Roma, o clima daquelas partidas foi um fenômeno único e irrepetível. Quem viveu aquilo vai carregar sua alegria coletiva para sempre.
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