


Foto: Agencia O Globo
O próximo jogo tinha significância para a família. Era contra a Inglaterra, os atuais campeões mundiais. Sem entender nada do assunto, mas torcendo em segredo pelo seu time, Renée e Rafael de repente se viram inundados por perguntas.
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"Vocês vão torcer pelo inimigo!!??" A pergunta vinha amistosa, mas deixava claro que eram adversários. "Vocês acham que vão vencer?! É?! De quanto? "
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"O que vocês acham dos jogadores ingleses? Dá para comparar Pelé com Bob Charlton?"
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Embora nenhum dos dois soubessem responder e fossem desinteressados por futebol, havia motivos suficientes para assistir à partida. Fora o estado exaltado do filho e o fato de que todos estavam falando sobre o jogo, tinham esperanças em manter sua discreta pose de atuais campeões mundiais e, talvez inconscientemente, queriam colocar os nativos no seu devido lugar. Além disso, por coincidência, o árbitro seria o israelense Avraham Klein: o nosso sobrenome!
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O jogo caiu numa tarde ensolarada de domingo. Os fogos de artifício pipocando nas primeiras horas da manhã eram como sinos de igrejas anunciando a importância do dia. A Rádio Globo, minha fonte indispensável de notícias futebolísticas, estava fervilhando. A todo momento os apresentadores interrompiam a programação para dar lugar às transmissões ao vivo de repórteres que haviam conseguido qualquer informação nova vinda do México.
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Como de costume, saímos para o Clube Paissandu por volta das dez da manhã. Fanático, de camisa canarinho, assim que o carro saiu da garagem, abri a janela e coloquei para fora minha bandeira verde e amarela amarrada num cabo de vassoura. Quando cruzávamos com alguém com a mesma camisa, enchia o peito e gritava, “Brasil!!!”. As respostas ecoavam de volta com a mesma euforia.
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A Sarah, já com vergonha alheia do meu entusiasmo, não veio. Ela tinha recebido um convite para ver o jogo na casa de uma vizinha amiga e ia passar o dia lá.
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No clube, fomos direto para a piscina onde a primeira coisa que reparei foi a, talvez, única bandeira inglesa flamulando no céu do Rio de Janeiro. Estava dependurada entre dois coqueiros sobre um grupo de homens pálidos de meia idade bebendo whisky e olhando a todos com ar debochado. Do outro lado da água, no bar coberto, os garotos e o pessoal do serviço ficaram questionando em cochichos a masculinidade daqueles indivíduos bem como as virtudes de suas mães.
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Fiquei na aglomeração em torno do rádio do salva-vidas, que mais parecia um enxame de abelhas nervosas em torno da rainha. Quem saía para dar um mergulho na piscina voltava logo. Ávidos por informações fazíamos um silêncio total quando um repórter conseguia entrevistar um de nossos craques.
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Por volta da hora do almoço, o aumento no número de rojões em torno do clube anunciou que a hora do pontapé inicial estava chegando. Nas casas, os televisores começaram a transmitir ao vivo de Guadalajara e as ruas se esvaziaram.
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Para poder pegar o início do jogo, comemos mais cedo no restaurante do clube e saímos. A caminho da casa do Paulo passamos por pequenas multidões, já amontoadas em frente aos televisores que as lojas de eletrodomésticos tinham deixado ligados para a ocasião. Quase todos seguravam um radinho de pilha no ouvido, da mesma maneira que as pessoas hoje se agarram a seus celulares.
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No carro, consegui convencer minha mãe a ligar o rádio na Rádio Globo. Tinha que ouvir as previsões de João Saldanha, agora comentarista, para o iminente jogo. Quando começou com sua voz lenta e grave, me esqueci da bandeira e me concentrei em cada palavra daquele sacerdote mor do futebol.
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Paulo morava num apartamento modesto na Rua Barata Ribeiro, em frente ao nosso açougueiro. Chegamos lá atrasados; quinze minutos antes do início​ da partida. Fui entrando sem prestar muita atenção aos adultos se cumprimentando e fui direto para a frente da televisão que já estava ligada. Sentei a tempo de ver os jogadores entrando em campo, se perfilando e cantando seus hinos nacionais. Pouco depois, com todos em seus lugares, o juiz apitou dando início ao jogo. Nomes de jogadores que logo entrariam para o panteão do futebol mundial, ressoavam da televisão: “Jair pra Pelé, Pelé com a bola, para Tostão... Gérson... para Rivelino”.
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Copacabana estava em silêncio torcendo pela sua seleção. As ruas estavam completamente desertas. Lojas, delegacias, hospitais, corpo de bombeiros – tudo estava fechado. Caso alguém tivesse um ataque cardíaco, se o apartamento pegasse fogo ou se uma mulher estivesse prestes a dar à luz, o azar seria dele ou dela.
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O início foi nervoso e defensivo. O estilo chato tinha uma razão; a tática de Zagallo era segurar seu time no primeiro tempo. Confiando na melhor forma física e no talento natural dos seus jogadores, esperava que os adversários cansassem para depois liquidá-los no final da partida. No entanto, nada estava garantido. Todos estavam tensos sabendo que os Ingleses, campeões do mundo, eram difíceis. No segundo tempo, começaram a sofrer com o calor e a exaustão passou a ficar evidente. O Brasil passou a dominar e o goleiro, Gordon Banks, estava fazendo milagres para manter a partida no zero a zero. Dava para sentir que a seleção estava prestes a marcar – não era uma questão de se, mas de quando – ainda assim a espera era angustiante. Naquela altura, até Rafael e Paulo estavam totalmente concentrados na partida. Quando o ataque brasileiro finalmente conseguiu superar a defesa da Inglaterra e Jairzinho abriu o placar com um golaço, brasileiro nenhum conseguiu conter sua emoção e todas as casas explodiram em gritos selvagens.
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Não podia deixar de ir à loucura também. Os adultos – todos na sala menos eu – acharam graça da minha espontaneidade. O apartamento de Paulo destoava do furor verde e amarelo lá fora. Para já, minha mãe, descontente com o placar, apesar de estar chegando na faixa dos cinquenta era a mais jovem do grupo. Quando o jogo terminou e a transmissão retornou para os estúdios, não houve cerveja, nem mesmo uma taça de vinho para comemorar. Os adultos voltaram aos assuntos sérios de sempre, sobretudo Israel. Sem saco para aquilo, aproveitei o luxo de ter uma TV à minha disposição, peguei uma tigela de bolachas, uma Coca-Cola na geladeira e fui assistir Tarzan. Enquanto isso, meus pais ficaram esperando que o Carnaval dos “selvagens” acalmasse na rua para podermos voltar para casa.
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Depois daquele jogo vi todos. Conforme o Brasil foi progredindo, as comemorações foram ficando mais longas e o samba mais animado. Entre um jogo e outro, a combinação da exposição exagerada da seleção com o verdadeiro show de bola que seus craques estavam dando, fez com que uma energia especial tomasse conta do quotidiano. Artificial ou não, dava para sentir a tal “corrente pra frente” a toda hora e em todos os lugares.
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Até a Sarah acabou imersa na febre. Ela comprou uma camisa canarinho e passou a não perder um jogo na casa da vizinha. Por ser cinco anos mais velha e por ter a escolta dos irmãos mais velhos da amiga, meus pais permitiram que fosse à rua para participar das comemorações. Isto me fez questionar a justiça divina pela primeira vez na vida.
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Na final, o Brasil derrotou a Itália por quatro a um em um dos jogos mais famosos da história do futebol. A campanha terminou com Pelé passando a bola para Carlos Alberto Torres que deu um chute cinematográfico de fora da grande área estufando a rede italiana. O triunfo deu início à uma catarse nacional e proporcionou ao país uma autoconfiança que duraria anos. Por ser o terceiro campeonato mundial da seleção, a taça Jules Rimet veio de vez para o Brasil, selando a glória. A conquista também significou um sucesso para a máquina de relações públicas do governo militar. Agora os generais se sentiriam legitimados para expandir seu domínio político-policial.
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Ninguém chegou a perceber que essa foi a maneira grandiosa que a época de ouro de Copacabana encontrou para se despedir. Dentro de poucos anos, o charme do bairro começaria a desbotar. Pessoas de círculos sociais alheios começariam a substituir a elite carioca em seus prédios hollywoodianos. Sua elite migraria para Ipanema, para o Leblon, e para os novos bairros mais afastados como São Conrado e Barra da Tijuca. Enquanto isso, à noite, o calçadão da Avenida Atlântica acabaria se transformando no maior bordel a céu aberto do mundo.
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Quanto a mim, aquela Copa do Mundo selou minha identidade de Brasileiro. A partir dali a Inglaterra passou a ser o país de onde meus pais tinham vindo. Nada mais do que isso.
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