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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 4

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No ano que Renée voltou radiante do hospital com seu bebê menino, o mundo estava entrando na década mais colorida do século vinte. Em 1962, os Rolling Stones e os Beatles gravaram seus primeiros singles, João Gilberto e Tom Jobim fizeram a sua estreia americana no Carnegie Hall em Nova York, Marilyn Monroe morreu de overdose em Los Angeles, Adolf Eichman, o engenheiro do Holocausto, foi executado em Israel e o mundo quase começou uma Terceira Guerra Mundial, desta vez nuclear por causa de mísseis soviéticos em Cuba.

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Para a grande maioria dos brasileiros, o que mais marcou aquele ano foi o segundo campeonato mundial da sua seleção de futebol. Se alcançar a glória no esporte mais popular do planeta eletrizava países "desenvolvidos" como a Itália, a Alemanha e a França, imaginem a explosão de orgulho nacional e de pura alegria que tomou conta do país.

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Depois do apito final selando a vitória brasileira de três a um na final contra a Checoslováquia, no Chile, as comemorações tomaram conta das ruas e só pararam nas primeiras horas da manhã do dia seguinte. Sambistas desceram dos morros trazendo ao “asfalto” proezas instrumentais irmãs das proezas futebolísticas daquele time mulato, vindo das ruas, que tinha se imposto no cenário internacional pela segunda vez. Os músicos traziam consigo mulatas espetaculares requebrando ao som do seu ritmo irresistível. Bem antes dos biquínis fio-dental aparecerem nas praias cariocas, seus trajes já deixavam quase tudo à mostra levando os espectadores à loucura. Atrás do samba, torcedores de todas as raças, idades e classes sociais extravasavam sua alegria. Inebriados pela vitória e pela cerveja, recordavam os gols dos heróis da campanha – Garrincha, Didi, Vavá entre outros. Pelé havia se contundido e tinha ficado de fora.

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Oito anos mais tarde, em 1970, depois de uma decepcionante campanha em 1966 na Inglaterra, onde o país de Renée tinha se sagrado campeão, o Brasil estava a caminho do México para tentar o seu terceiro título mundial. Dessa vez, além de um time repleto de craques, entre eles um Pelé superpreparado, com fome de ser campeão e consciente de que esta seria sua última Copa, havia uma novidade: as transmissões televisivas. Graças a elas, a nação inteira poderia ver seus craques jogando ao vivo no estrangeiro.

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Com problemas de popularidade devido à crescente polarização econômica e ao endurecimento da repressão política, o regime militar instaurado há seis anos, resolveu apostar pesado na seleção. Se aproveitando da nova tecnologia, a ideia foi unir a nação em torno do futebol e, por via de maquinações midiáticas, associar as conquistas dos atletas à imagem do regime. Foi assim que o Brasil mergulhou numa febre de patriótica, a chamada “corrente pra frente”.

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Milhares de vilarejos nos recantos mais remotos receberam seus primeiros televisores para que o povo pudesse fazer parte dos “noventa milhões em ação”, como alardeava o hino militarista da seleção. Durante a Copa, seus moradores se amontoariam em torno desses únicos aparelhos, muitas vezes em praças de terra no meio do mato, para assistir o "escrete canarinho" jogar.

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Pelo país inteiro, quase todo carro tinha uma fita verde e amarela amarrada à antena e todo estabelecimento tinha pelo menos uma bandeira ou um cartaz, fosse de um jogador ou do time completo. Em qualquer oportunidade, as estações de rádio e de televisão estimulavam o fervor futebolístico e o misturavam com mensagens pró-regime. Havia adesivos colados por todos os lados com slogans como “Brasil: ame-o ou deixe-o” e “Deus é brasileiro”.

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Nossa rua, a Siqueira Campos, não foi nenhuma exceção. Quase todo apartamento tinha uma bandeira pendurada da janela. Moradores mais entusiasmados colaram milhares de bandeirolas de papel em fios cruzando de um lado a outro da rua. Começando na praia e indo até seu final no morro da Saudade, a rua se coloriu de verde e amarelo. O bairro inteiro fez igual e Copacabana se fantasiou para a Copa junto com todos os outros bairros Brasileiros.

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O que poucas pessoas sabiam é que o técnico do time, João Saldanha, apesar de um apaixonado pelo seu país - como também pelo futebol e pelo talento dos seus jogadores - era um comunista ativo que organizava reuniões do partido ilegal em sua casa. Porém, depois de ter se negado a convocar Dario – o Dadá Maravilha – um dos favoritos do presidente Médici, e de dar declarações políticas inconvenientes, os generais interviram. Eles ordenaram que Zagallo, um ex-jogador que havia participado das campanhas vitoriosas de 1958 e 1962, branco, apolítico e de classe média o substituísse.

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Graças à tecnofobia da Renée, éramos uma das poucas famílias no bairro sem um televisor. Para mim, com oito anos de idade e imerso até o pescoço na febre assolando todos os meninos brasileiros, aquilo era desesperador. No ano anterior tinha perdido a oportunidade de ver o primeiro homem pisar na lua na casa de uns vizinhos porque era tarde demais. Porém me barrar de ver a Copa do Mundo seria uma crueldade inaceitável.

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Rafael aliviou minha barra anunciando que iríamos assistir os jogos no apartamento do Paulo. Ainda que permanecesse com suas opiniões políticas, seu amigo pertencia ao século vinte e possuía uma televisão apesar da propaganda fascista que, na sua opinião, ela vomitava sem parar.

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No dia da abertura fomos lá. O primeiro jogo da Copa foi União Soviética e México. Todos consideravam os dois times fracos, mas, por alguma razão, assistir à cerimônia de abertura era uma obrigação para qualquer um que quisesse merecer o título de torcedor brasileiro.

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Depois da cerimônia espetacular, fiquei torcendo com o Paulo pelo time que levava estampada na frente da camisa a inscrição “CCCP” – a URSS, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Recusando-se a pronunciar a palavra “soviético” muito menos "socialista", o locutor se atinha a chamar o time de “Rússia” e mesmo assim mencionava o nome o menos possível. Isso provocou alguns resmungos da parte de nosso amigável anfitrião. Depois do jogo, voltei para casa empolgado; a aguardada Copa tinha começado e eu, como o resto da nação não podia esperar pelas batalhas que estavam por vir.

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A primeira partida do Brasil foi contra a Checoslováquia alguns dias depois. O jogo caiu na hora do jantar num dia de semana; muito tarde e incômodo para assistir na casa do Paulo. Ignorando os protestos da Sarah, meus pais liberaram meu radinho de pilhas na mesa. Como compromisso, tive que colocar o volume alto o bastante para que pudesse ouvir e baixo o suficiente para que minha irmã aceitasse. Logo no início da partida, para o desespero da nação verde e amarela, o adversário marcou o primeiro gol. As palavras secas do narrador cortaram o peito do Brasil como uma navalha. Lá fora o silêncio era tanto que parecia que o fim do mundo tinha chegado. A Sarah olhou para minha cara de cachorro que caiu da mudança e debochou.

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“Ha, ha, ha! Tomaram um gol, bem-feito!”

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Aquela provocação foi um erro. Xinguei ela de vaca e joguei uma coxa de frango na sua cara. Na hora meu pai me mandou para o quarto. Fui com o radinho feliz da vida, pelo menos lá daria para ouvir o resto do jogo sem a interferência de uma menina. Pouco depois, para o alívio geral, o Brasil marcou seu primeiro gol, virou a partida e terminou vencendo por um convincente quatro a um.

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