


Foto: Eduardo Molinar
A entrada de Felipe, ex-colega do Colégio Andrews e frequentador do Posto Nove, no Arrepio, mudou tudo. Ligado ao teatro desde sempre, após deixar a escola tinha se tornado ator profissional. A carreira dele estava indo bem depois de ter conseguido um papel de destaque na peça Os Doze Trabalhos de Hércules, de onde surgiriam muitas carreiras de sucesso na dramaturgia brasileira. Num papo de praia, arrisquei convidá-lo para ser vocalista da banda. A gente se dava bem, mas mesmo assim fiquei surpreso com seu interesse instantâneo. Talvez, como todos, estava morrendo de vontade de deixar sua marca no rock. O ensaio de introdução correu às mil maravilhas; ele curtiu nossas músicas de cara, sua voz era boa, sua presença de palco soberba e a química foi perfeita. Agora, com um vocalista de primeira, e com seus contatos, sentíamos que a banda era uma séria candidata à fama e à fortuna.
​
O show de estreia da nova formação foi num bar em Ipanema. O local era especializado em bossa nova, mas a mãe do Felipe, antiga frequentadora, tinha convencido o gerente a nos acolher. Não havia estrutura para bandas ali. Por isso, pegamos emprestado microfones e o equipamento poderoso do Charles. No dia, fomos lá empolgados com aquele show que seria o início de uma era dourada. Enquanto subíamos e descíamos as escadarias apertadas, com amplificadores e partes da bateria e montávamos o equipamento no terraço, ficou óbvio que os funcionários, acostumados com músicos recatados de bossa nova, nos viam como invasores bárbaros.
​
Com tudo montado começamos a passar o som. Não tínhamos engenheiro de som e mal sabíamos como manejar aquela parafernália. Mesmo assim, tocamos duas ou três músicas e depois de ficarmos contentes com o que estávamos ouvindo, demos uma parada. Quando a gente estava se preparando para descer e dar uma volta, o gerente, um baixinho de cabelo engomado, subiu no terraço para vir falar conosco.
​
“Gostei do som, animado, né?” Soou meio falso, mas, fazer o quê? “O problema é que aqui é uma área residencial e às vezes os vizinhos reclamam do barulho, sabe como é?”
​
“A gente conhece esse problema bem até demais.” A galera concordou com sorrisos.
​
“Pois é, se vocês entendem, melhor ainda. Eu queria pedir para vocês tocarem mais baixo. Seria possível?”
​
Cocei a cabeça. “Olha, já estamos tocando o mais baixo possível. O problema é a bateria. Ela não está amplificada. Tá vendo? Não tem microfone nenhum nela.” Dava para ver que o cara estava boiando, mas continuei. “Se a gente tocar mais baixo, só vai dar para ouvir a bateria. Os instrumentos vão soar baixo. A bateria vai continuar no mesmo volume. Ou seja, não vai fazer diferença nenhuma, mas a banda vai soar mal.”
​
“Mas não dá para a bateria tocar mais baixo também?”
​
Querendo ser o mais prestativo possível virei para o Mauro: “Fala aê, Mauro? Dá para tu tocar mais baixo?”
​
A resposta não ajudou muito. “Cara, dá para bater mais fraco, mas o som sai nessa altura mesmo.”
​
O gerente não se deu por vencido. “Então tá combinado, hoje à noite vocês tocam mais baixo!”
​
Ele desceu e nos deixou ali, um olhando para cara do outro.
​
Mauro se levantou e falou: “Foda-se, vamos beber uma cerveja.”
​
A noite os convidados começaram a chegar. O Felipe estava fazendo uma ponta em uma novela da TV Globo e por isso havia alguns rostos famosos, bem como várias aspirantes a estrelas e outras gatas inacreditáveis entre os convidados. Talvez ciente disso, o gerente tinha mudado o visual do lugar. Tinham coberto o terraço com panos e colocado luz de velas. Tudo estava muito bonito. O terraço encheu e a gente ficou esperando o Felipe fazer a social dele. Quando veio dizer que estava pronto, pegamos os instrumentos e o pessoal do restaurante deixou só as luzes que estavam em cima de nós ligadas. Felipe apresentou a banda de maneira teatral e começamos. A coisa foi bem. Dava para ver que tinha gente curtindo de verdade.
No meio da segunda música, ouvi um barulho no meu ouvido. Quando olhei para trás vi que era o gerente gritando. “Tá alto demais, baixa isso!!”
​
Tentando não perder a concentração respondi: “Não dá para tocar mais baixo por causa da bateria!”
​
Ele sumiu e continuamos. Depois de uns outros dois números, o gerente voltou a bater no meu ombro no meio de uma música.
​
“Tem alguém querendo falar contigo lá embaixo!”
​
“Fala que não dá para eu descer agora!”
​
A próxima coisa que vimos foram seis policiais subindo as escadas. Entraram, foram direto nas tomadas e puxaram os fios dos equipamentos. O som e o clima morreram na hora, o show acabou. Todos ficaram boquiabertos vendo os caras descerem sem dizer nem boa noite.
​
A fase com o Felipe foi curta. Pouco depois do incidente ele assinou um contrato para um papel importante numa série de televisão e abandonou a carreira musical. Retornei aos vocais, mas discussões começaram a pipocar. Havia conflitos de egos, principalmente entre Eduardo e eu. Tinha o problema que o resto da banda estava preocupada em desenvolver suas habilidades, enquanto eu confiava demais nas minhas. O Mauro e o Eduardo ainda estavam pegando aulas particulares – o que para mim era incompatível com o rock. Os dois me pressionavam para fazer o mesmo e não conseguiam entender que não podia por causa de grana. Por outro lado, eu levava o negócio mais a sério que eles, acreditando que se conseguíssemos encontrar o nosso som, poderíamos ter sucesso. Os demais viam a banda como uma atividade divertida para os finais de semana. Continuamos, tentamos outros vocalistas, mas depois de um tempo, com a banda indo para lugar nenhum, acabamos enchendo o saco daquilo.
​
*
​
Nossa música não era exatamente na moda. Aquela era a época dos góticos, novos românticos, punks e outras criaturas afins que viam nosso estilo como ultrapassado. O templo deles era uma boate em Copacabana chamada Crepúsculo de Cubatão. O nome era uma homenagem a Cubatão, uma cidade industrial no estado de São Paulo, famosa por ser o lugar mais poluído da América Latina. Um dos donos do clube era Ronald Biggs, o famoso ladrão de trem inglês, que fugiu de Londres para o Rio de Janeiro em 1970. A boite parecia ser em outra cidade, senão em outro planeta. Sua decoração exuberante, típica daquela época, misturava elementos clássicos com elementos futuristas e mais tudo o que se poderia esperar de uma casa noturna dos anos oitenta. Os frequentadores eram diferentes de tudo o que se via nas ruas e se vestiam como vampiros, usavam maquiagem pesada e provavelmente nunca haviam tocado num baseado em suas vidas.
​
A música que saia do seu excelente sistema de som era de bandas praticamente desconhecidas e intencionalmente deprimentes como Joy Division, New Order, Echo and the Bunnymen e Bauhaus, todas minimizando as guitarras e abusando dos teclados, um sacrilégio para qualquer roqueiro raiz criado nos anos setenta. Com relação à paquera, para fazerem sucesso, os caras lá dentro tinham que adotar um visual andrógino. Para alguém de fora, parecia não haver qualquer chance de sexo heterossexual. A entrada era controlada por uma gótica minúscula e invocada, protegida por dois seguranças nada fashion e apropriadamente gigantescos. Sempre havia uma aglomeração de gente estranha na porta implorando para entrar. Quem decidia o acesso era ela, apontando o dedo e acenando a cabeça. Para os rejeitados ficava a sentença de morte quando virava para os seguranças e dizia: “ela/ele parece gente boa” - a senha para não entrar.
​
Pessoas bizarras passaram a surgir em festas e outros eventos sociais, dando declarações sobre o pós-modernismo ou Nietzsche, sem entender muito do que estavam falando. Londres era a nova Jerusalém e as revistas inglesas iD e The Face, as novas bíblias. Naquele meio, tudo era uma mistura de pose com uma boa dose de arrogância social. A superficialidade ditava que os papos girassem em torno de tendências da moda nas revistas importadas ou nas bandas e artistas que melhor tinham abandonado a estética e a temática das décadas passadas.
​
Para muitos, pegar um bronze na praia era coisa de neandertal. Pouquíssimos aproveitavam as maravilhas naturais do Rio de Janeiro. Naquela cidade, havia um absurdo elementar naquele movimento, se é que poderia se chamar disso. A sua beleza vertiginosa aliada à sua natureza exuberante era perfeita para a grandiosidade dos delírios tropicalistas de fusão cultural, de experimentação existencial e do gozo dos prazeres da vida inerentes aos anos setenta. O seu cenário, perfeito para desfiles de escolas de samba, não tinha nada a ver com a temática urbana importada da cinzenta e distante Londres.
​
A ironia sobre a obsessão com Londres era que, dado eu ser inglês de nascença, poderia ter aproveitado a oportunidade para me dar bem. Se não tivesse mergulhado tão a fundo no Brasil, teria. Ao invés disso, me apeguei à noção de que era um revolucionário que se recusava a se entregar. Aquele estilo de vida e suas propostas representavam o oposto do que eu amava e do que queria no meu mundo. De uma perspectiva cômica, era impressionante ver góticos e punks em jaquetas de couro pretas e botas saindo de madrugada das festas num calor de 40 graus e desfilando em frente dos banhistas em biquínis e shorts de banho. Pareciam vampiros procurando caixões para se esconder até a noite, quando poderiam sair das sombras para invadir a cidade.
​
Os punks de classe média então, eram de um absurdo especial. As roupas que vestiam e os lugares que frequentavam não tinham nada a ver com o que os punks dos Sex Pistols e do Clash, ingleses da classe operária, queriam dizer ao gritarem “não há futuro”. Certamente os punks ingleses ridicularizariam, ou até bateriam naqueles filhinhos de papai, tirando onda com sua rebeldia. Por outro lado, a maioria dos "punks" da zona sul ficaria horrorizada se conseguisse entender o conteúdo de protesto social do movimento. Se conseguisse, saberiam que aqueles que tentavam personificar rejeitavam visceralmente elitistas metidos a besta como eles. A verdade é que as pessoas apinhadas nos ônibus da periferia industrial de São Paulo ou mesmo as que como eu estavam sendo esmagadas por um choque econômico ceifador de sonhos, eram muito mais próximas ao movimento punk. Caso eu tivesse alguma ideia sobre o que o movimento punk realmente representava teria aderido, provavelmente adicionando uma pitada tropical, mas para a galera do rock raiz carioca aquilo era apenas música ruim feita por gente esquisita e negativa.
​
Havia muitas razões para estar zangado: o sistema que havia prometido um futuro brilhante para nós estava nos dando um pé na bunda. Mesmo assim, havia o papo reacionário de que o momento era para a sobrevivência dos mais fortes. Para eles, só os fracos estavam se dando mal. Apesar do discurso, na prática, o que estava rolando era a sobrevivência daqueles que tinham a sorte de ter pais ricos. Nada além disso.
​
…
