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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 34

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Foto: autor desconhecido

“E no final das contas,

O amor que você leva

É igual ao amor que você faz.”

 

Beatles - The End

Alguns amigos da antiga turma de malucos do Colégio Andrews foram acampar em Lumiar, um vilarejo famoso, celebrado numa música conhecida de Beto Guedes. Tal como Visconde de Mauá, era popular entre a moçada por ter uma paisagem rural paradisíaca, um ambiente parecido com a Europa e ser relativamente "liberado". Era frequentado pelo mesmo tipo de gente: hippies light e urbanóides, a fim de curtir uma paz rodeados de gente parecida. Na manhã de irem embora, resolveram se despedir dando uma nadada em uma represa antes de pegar estrada. Na beira d'água, na chapação saideira, um dos caras, Luis Fernando, viu um pequeno redemoinho que parecia estar lhe desafiando a um mergulho, para experimentar ser atirado de um lado para o outro. Ele subestimou o poder de sucção da água, foi puxado pelo tubo de canalização e morreu afogado.

 

Nosso amigo tinha 20 anos e pertencia a uma família de diplomatas: um expoente do “Novo Brasil” no qual a crescemos. Ele partiu desse mundo seduzido pela invisível, porém imensa, força da água sendo contida por um mecanismo que criava aquele lago artificial. Isto foi uma alegoria trágica à nossa saída da placenta que estava para acontecer da vida encantada da Zona Sul do Rio de janeiro, fomentada e protegida pelo defunto regime militar. Para nós sua morte seria o selo que encerraria uma época, ou nosso nascimento para o "mundo real". Depois daquilo, cada um seguiu seu próprio caminho e o espírito que compartilhávamos nunca mais retornou. Sentimentos, turmas, anos dourados também morrem. O corpo dele só seria resgatado depois que seus pais influentes “convenceram” as autoridades a explodir com dinamite o concreto que tinha aprisionado seu filho.

 

*

 

Minha despedida daquele tempo mágico foi assim: num sábado à noite, quando estava de saída para uma festa, o telefone tocou. Era Renée ligando de Teresópolis dizendo que Rafael tinha passado mal com dores no peito e que tinha sido levado para um hospital no centro da cidade. A situação era séria e ela precisava de mim ali, pois teríamos que nos revezar dormindo no seu quarto no hospital. Sarah, ainda embrulhada no mesmo relacionamento tóxico, só que agora casada, não estava falando com a família e não participou da comoção.

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Quando cheguei no hospital deparei com meu pai de cama, cheio de tubos por todos os lados. Ele parecia envergonhado pela inconveniência que estava causando e por estar tão mal. Aquela noite era a segunda naquele estado e era a vez de minha mãe ficar com ele. Após bater um papo com os dois e me despedir, dirigi sozinho para o sítio. Fazia séculos que não ia lá e voltar sob aquelas circunstâncias tão incertas, acendendo sozinho as luzes naquela casa no meio do nada, foi muito estranho.

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Na noite seguinte, era minha vez de ficar no hospital. Rafael já estava começando a perder a lucidez. Tinha delírios, acreditando estar no barco usado para escapar dos nazistas há tantos anos atrás, vagando sem rumo no Mar do Norte, quase morrendo de fome e de sede. De início, não percebeu que estava no quarto, mas após algum tempo retomou os sentidos, se acalmou, a gente conversou um pouco e trocamos um boa noite.

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Fui acordado de madrugada pelos médicos, apressados me pedindo para sair do quarto. Ainda meio dormindo obedeci, sem entender bem o que estava acontecendo e sem saber se estava fazendo a coisa certa. Conforme os minutos foram passando e o resto da equipe médica foi entrando apressada no quarto, tive a certeza de que algo grave tinha acontecido. Depois de uns cinco minutos, o olhar sério e frio do médico pálido e gorducho disse tudo quando saiu para falar comigo. Não esperei para que tentasse transformar aquela expressão em palavras. Abri caminho para encontrar os olhos azuis de meu pai ainda abertos, mas sem vida.

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Aquela visão me atingiu como uma flecha no meio da cabeça. Minha reação foi sair novamente, me sentar no chão do corredor e chorar. Nosso relacionamento tinha acabado antes de sequer começar. Amava meu pai e tinha um respeito infinito por ele.  Tenho certeza de que o sentimento era recíproco, mas nunca conseguimos expressá-lo. Agora ele estava ali, rígido e impenetrável como uma esfinge, sem respostas e sem vida.

 

Vindo de um vilarejo no interior da Polônia, Rafael acabou por parar no distante Brasil. Em vez de curar as dores do passado, perto de seu fim, o paraíso antropofágico alimentou-se de seus sonhos, transformando o seu mundo em algo irreconhecível. O Brasil tinha-lhe trazido um filho igualmente enigmático. Na volta para o sítio senti-me tão impotente e distante como ele estivera de seu próprio pai, quando morto em Auschwitz. Acaso, sorte, fado, destino, não importa, trouxeram-no aqui. Minha única certeza era a de ser eu sua continuidade, na mesma missão da busca de um lugar são no meio da insanidade desse mundo.

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