


Desenho: Pinterest (dominio publico)
As contradições daquele ano não paravam ali. Em alguns finais de semana, deixava de lado a pretensão de ser hippie. Arrumava o cabelo, colocava uma camisa com colarinho, sapatos de couro brilhantes, cinto e calça social para ir às gafieiras. Resquícios dos dias de glória do samba dos anos 1930 e 1940, a maioria ficava em torno da Praça Tiradentes, na Lapa. Não era apenas a arquitetura que permanecia intacta, as orquestras imemoriais de samba que ainda tocavam ali também. Elas eram autênticas, lideradas por sambistas da antiga, encantados por estar virando moda de novo, tanto na Zona Norte quanto na Zona Sul.
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Ia com o Helcio e a turma “brima”, já que ainda mantinha a amizade com todos e o pessoal da música era mais quieto em relação a azaração. Muitos esquerdistas caretas diziam que iam lá pela dança ou pela experiência autêntica, mas era mentira. Para nós, a atração maior era o mulherio bonito proveniente do que, no nosso preconceito, era o lado “errado” da Floresta da Tijuca. Muitas eram novas na cidade, e quase todas eram interessadas em jovens do lado que viam como o “certo” da cadeia de montanhas. Essa divisão ancestral do Rio de Janeiro era - e continua a ser - um fato infeliz de sua realidade. Depois das danças de rosto colado sob luzes imitando as de discotecas, havia as cervejas, os beijos introdutórios e as trocas de números de telefones. Vindos de mundos diferentes, o anonimato protegia ambos os lados e permitia casos rápidos sem a pressão dos círculos sociais mais chegados. Era raro sair de lá sem resultados. Seguindo a mentalidade da época, estávamos fazendo o que se esperava de machos latino-americanos e por mais frio e nojento que possa parecer, era isso que parecia as atrair.
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Apesar dos vários sucessos, ser tímido com as garotas que interessavam e corajoso com as que não, nunca levaria a uma vida afetiva saudável. O esforço para criar uma aura bacana na esperança de atrair uma garota à altura dos meus sonhos não estava dando certo. Talvez por não ser sincero o suficiente, não ter família rica o suficiente, ou por ser esquisito demais, ou talvez por pura impaciência, o que eu queria não se materializava. Ainda por cima, havia um demônio subversivo dizendo que a felicidade num relacionamento, resultando em casamento e família, era uma fantasia que só existia na cabeça de burgueses.
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A um mês do vestibular a pressão aumentou exponencialmente. Ficou claro que a música e as festas teriam que ficar em segundo plano. Caso não me empenhasse nos estudos, nada de universidade boa, nem de tolerância em casa. Isso pedia medidas radicais e por isso resolvi passar duas semanas isolado, me preparando em Teresópolis.
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Voltei preparado para o Rio faltando dois dias antes do vestibular. Na manhã da primeira prova, acordei quando ainda estava escuro. Sem conseguir pegar de novo no sono, fui para a praia para me acalmar. Cheguei lá com o sol quase nascendo. Era um dia sem nuvens e o visual estava espetacular. Fui até a beira d'agua, o mar estava convidativo, calmo, a superfície lisa e com ondas médias. Ainda era muito cedo e não havia ninguém por perto, mergulhei, nadei, peguei umas ondas e permaneci na água até relaxar. Quando saí, percebi um homem na passarela recostado num carro e olhando para mim. Parecia um Zé Pilintra, vestindo um terno de linho branco à moda antiga e um chapéu. Ele era alto e magro, usava um bigode fino, e na hora me veio em mente Alec, meu avô por parte de mãe. Aquela realização me deu calafrios na espinha, mas encarei como um bom presságio.
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Fui para casa, tomei banho e meu café da manhã, e saí para pegar o ônibus rumo ao local da prova; uma velha escola primária no final do Leblon. Assim que saltei, me juntei às centenas de estudantes esperando na frente. Depois de uns dez minutos, funcionários vestidos em jalecos vieram abrir os portões. Na confusão, o primeiro passo foi ver a sala onde deveríamos ir em um quadro de avisos. Achei a minha, entrei e fui me sentar no fundo, numa cadeira escolar com braço dobrável, toda rabiscada e com a parte de baixo cravejada de velhos pedaços de chiclete.
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Quando deu nove horas, fecharam os portões e as portas das salas. Os inspetores, todos na faixa dos vinte anos, passaram pelas carteiras nos entregando lápis e borracha. Logo depois, alguém mais graduado entrou, fez a chamada e nos colocou a par das regras: nada de cola, nada de conversa e quando dissessem que o tempo acabou todos teriam que entregar as provas imediatamente. Depois disso, distribuíram grossos envelopes de tamanho A4 contendo as provas e um cartão onde deveríamos marcar as respostas de múltipla escolha. O proximo passe foi entrar na corrida silenciosa para os bracos de Moloch.
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Os exames eram divididos em quatro dias, todos no mesmo lugar. Confesso com certo pudor que nas provas de física e de química, fui com algumas fórmulas importantes anotadas na parte de baixo das calças, mas nas outras, português, matemática, línguas, história, biologia e geografia, joguei limpo.
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No fim de semana quando os resultados seriam anunciados nos jornais, Kristoff e eu, com medo do pior, fugimos para Mauá. Acampamos perto da Maromba, onde o único elo com o mundo exterior era o telefone pago de uma pousada. No caso de um desastre, seria mais seguro ficar sabendo da notícia à distância. O plano era ligar para a Sarah que tinha passado pelo mesmo processo e não me julgaria tanto caso tivesse me dado mal.
Foi o que fiz no sábado de manhã quando sairam as listas dos aprovados. Meus pais já tinham ido para o sítio quando atendeu o telefone e ela já tinha procurado por meu nome. Para a absoluta surpresa de todos, principalmente a minha, havia passado para a UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, no primeiro semestre do seu conceituado curso de Economia, considerado o melhor do Rio e um dos melhores do país.
A teoria de ser contra tudo que o vestibular representava evaporou na hora. “Caralho, mana! Tu tá falando sério!? UFRJ, primeiro semestre??!!!”
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“É, seu cagão, e ainda vai ter a moleza de estudar na Urca.” Ela tinha cursado a mesma universidade, mas no Fundão, do lado do aeroporto.
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“E os velhos?”
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“Não estão cabendo em si!" Esquecendo sua habitual distância, ela estava genuinamente feliz por mim. "Um dia você ainda vai me explicar como você conseguiu essa façanha depois de tanta vagabundagem.”
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“Ah, quem tem os genes da Dona Renée consegue qualquer coisa, ela nunca te contou?”
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A gente riu um pouquinho. “Eles saíram para Teresópolis faz uma meia hora, ficaram esperando você ligar, mas acabaram desistindo.”
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“Foi o que eu calculei.” Demos mais risadas. “Obrigadão mana, um beijo.”
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“Um beijo e parabéns mano. Pode curtir à vontade aí, e aguarde uma recepção de gala na volta.”
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Antes de desligar, o Kristoff me deu uma cutucada e me lembrei: “Você também procurou pelo nome do Kristoff?”
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“Procurei, passa o telefone para ele que quero dar a notícia eu mesma.”
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Ele tirou o telefone da minha mão apressadamente, “Fala Sarah, tudo bem?”
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A reação dele foi uma risada alta. “Ha, ha, ha, nem dá para acreditar!” Ele tinha passado para biologia marinha na mesma UFRJ, um dos cursos mais difíceis de se entrar no país, com 20 estudantes por vaga.
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Ficamos nas nuvens. Para comemorar a ocasião especial, a gente resolveu experimentar a mais recente coqueluche alucinógena da moçada: chá de cogumelos. Mauá era conhecida por tê-los e o clima estava perfeito para que brotassem; ensolarado após alguns dias de chuva pesada.
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Corremos para as pastagens próximas, mas não encontramos nada. Nossas esperanças se reacenderam quando alguém nos disse que certamente encontraríamos alguns nas pastagens de Campo Alegre, um vilarejo a 40km. O problema era que estávamos a pé. Apesar da distância insana, estávamos obstinados o suficiente para sair numa caminhada de quase um dia inteiro para colher nossos fungos dourados.
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A caminhada exaustiva valeu a pena; quando estávamos quase lá, encontramos um campo cheio deles. Em êxtase, colhemos o que conseguimos sob o olhar ameaçador do touro dono do pedaço. Tínhamos que ser cuidadosos: havia duas espécies muito parecidas. A que queríamos tinha listas pretas na parte de baixo enquanto a outra, venenosa, tinha listas brancas. Terminada a colheita, depois de uma curta euforia, caímos na real ao lembrar da volta.
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Três horas mais tarde, de volta ao acampamento, cansados, aproveitamos os últimos minutos de sol para dar um mergulho merecido no rio. Quando estávamos prontos para a noitada abrimos a bolsa e resolvemos não fazer um chá, trabalho demais. Simplesmente dividimos a colheita, quatro cogumelos para cada um, e os comemos. Tinham o gosto parecido com os comuns, só que com um sabor mais marcante. Naquela altura, a última coisa que importava era o aspecto culinário.
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Já estava escuro quando voltamos para a estrada, dessa vez com os instrumentos debaixo do braço. Tivemos sorte de pegar uma carona. O carro confortável era de um casal de paulistas burgueses pela primeira vez em Mauá. Dirigindo naquele breu, eles estavam ansiosos procurando por uma pousada depois da Maromba e querendo saber se tínhamos dicas de bons restaurantes e de lugares para conhecer. No banco de trás, olhando pela janela e respondendo suas perguntas, comecei a sentir a cabeça ficar leve. Quando saímos e vimos as luzes do carro se distanciar na estrada de terra, já nos encontrávamos em território psicodélico.
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Estávamos na praça da Maromba – um quadrado de terra delineado por poucas casas, um armazém, um bar e uma igreja. Para não sair numa tangente incontrolável, tivemos o bom senso de ir direto ao bar. Sendo o único nas redondezas, era o lugar onde a malucada se encontrava à noite para levar um som. As únicas outras luzes ao redor vinham do armazém no outro lado do terreno baldio. O pessoal da terra se reunia lá para encher a cara de bebida barata em torno de uma mesa de sinuca. Os dois grupos respeitavam seus respectivos espaços. Uns completamente chapados de um lado e os outros igualmente passados por uma mistura fatal de cachaça com o famoso mel da região do outro.
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Do nosso lado, já havia dois caras dedilhando alguma coisa no violão sentados na mesa principal da sacada. Perguntamos se podíamos afinar com eles e saímos tocando. Com quatro pessoas tocando o pessoal foi chegando. Depois de um tempo, Leandro, a estrela musical do pedaço, que mais tarde se tornaria o guitarrista predileto do Cazuza e que chegou a tocar com Roberto Carlos, apareceu e fez o som decolar para as alturas. Mais tarde, autointitulado padrinho dos músicos de Mauá, o lendário Serginho do Mel, apareceu pedindo para gente fazer uma levada de blues. Mais pessoas foram se juntando e no final, deveria ter uns sete ou oito músicos captando o que os espíritos tinham a dizer sobre a beleza das montanhas, da lua prateada e das estrelas naquela noite.
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A população de doidos da Maromba acabou comparecendo em peso e, eufórica, se juntou participando com o que quer que pudesse aumentar a energia – cantando versos improvisados, batendo palmas, batucando nas mesas e nas paredes frágeis do bar ou simplesmente dançando. Como num quadro louco de Van Gogh, a música, o lugar e as pessoas se misturaram num transe que durou horas.
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Não me lembro como aquela explosão de psicodelismo terminou e nem onde dormi. Só sei que de manhã, quando fomos tomar nossa dose diária de leite tirado da vaca, quase todos da noite passada estavam lá na fila. Enquanto esperávamos a pobre vaquinha dar seu leite para aquele pelotão de doidos, o comentário geral era o quanto o som tinha sido bom. Aos poucos fomos descobrindo que todos os músicos tinham comido cogumelos, mas não sabiam que os outros também tinham e isso virou a piada da cidade.
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Passamos o resto do dia curando nossas ressacas nos espatifando na água gelada do Escorrega, um tobogã aquático natural que ficava no meio do mato depois da Maromba. Aqueles choques térmicos nos trouxeram de volta à vida normal e à lembrança de que tínhamos deixado o pesadelo do vestibular para trás com uma vitória.
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