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Image by Annie Spratt

CAPÍTULO 21

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Foto: Pinterest (dominio publico)

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“Sagrado e profano

O Baiano é

Carnaval!”

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Chame Gente - Moraes Moreira

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Meu status em casa foi para as alturas com o sucesso no vestibular. Os problemas foram esquecidos, os pecados perdoados e, como prêmio, Rafael resolveu me dar um Fusca 1973. Ainda que barato e velho era um carro e, que me lembre, amigos de lares muito mais prósperos tinham recebido apenas um tapinha nas costas por não fazerem mais do que sua obrigação. Ele era azul claro, e assim que bati o olho nele, o apelidei de Blues Boy. 

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Esse gesto foi uma tentativa de reconciliação um filho incompreensível que se recusava a ouvir seus conselhos sinceros e que fugia da sua companhia. 

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Já beirando os 80 anos, lutando bravamente contra as tribulações normais da idade avançada, a realidade estava difícil no mundo do meu pai. Depois de três décadas o Brasil, apesar do patrimônio acumulado, o país tinha se revelado uma decepção. Quanto mais Rafael convivia com o "jeitinho brasileiro" nos negócios e com autoridades tortas, mais se arrependia da decisão de se mudar para lá. Com os dias do milagre econômico já num passado distante, a economia estava em queda livre e com ela, veio uma nova política de restrição às importações. Essa pancada atingiu seus negócios em cheio. 

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Mesmo que achasse desnecessário expressar suas angústias, elas estavam sempre à flor da pele.​ Além disso tudo havia problemas adicionados em casa; fora minhas doideiras, sua esposa se recusava a entender que as coisas tinham mudado com a crise e a filha estava presa num relacionamento tóxico e quase não falava mais com a família.

 

O fosso ente eu e ele ia além da diferença absurda de idade e da disparidade dos ambientes em que fomos criados. O destino e o instinto de sobrevivência haviam dirigido a sua vida, ao passo que eu tinha escolhas, ou pelo menos achava que tinha naquela altura. Tinha confortos e uma liberdade que ele nunca teve; a de me misturar com quem quisesse, sem ter medo de ser vítima de preconceitos ou de passar necessidade. Talvez por isso, a tempestade existencial na qual tentava conciliar o mundo de fora de casa com o de dentro dela era algo que nem entendia nem respeitava.


Apesar da predileção indisfarçada pela Sarah, talvez o seu único verdadeiro amor na vida, Rafael tinha a esperanças silenciosa de que eu alcançasse posições que o seu passado o havia barrado: a respeitabilidade de um diploma universitário e a estabilidade de uma profissão. Talvez agora, comigo numa faculdade de economia, essa bobagem iria acabar e estudar a sério poderia ser a salvação de uma personalidade mimada e egoísta.

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*

 

Indiferente aos dramas em nosso e em outros lares, o verão carioca estava no auge. Agora pré-universitário, sem a paranoia do vestibular e sem ter que provar nada a ninguém, só queria saber de praia e de aproveitar todas as maravilhas disponíveis. Meu querido Blues Boy prometia ser uma grande ferramenta nessa tarefa, porém, antes de ganhar as chaves, havia a barreira da carteira de motorista. 

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A ideia da minha pessoa no volante causava arrepios em casa. Isso era devido a uma aula de direção que Renée resolveu me dar em Teresópolis, quando adolescente. Seu Opala era um carro difícil para iniciantes; grande, desengonçado, com a caixa de câmbio saindo da coluna de direção. Logo na primeira tentativa, me embaralhei nas instruções e ao invés de sair devagar em primeira, acelerei o carro em marcha à ré. Se minha mãe não houvesse tido o instinto de puxar o freio de mão na hora, teríamos caído em um despenhadeiro bem atrás. O valor cômico da cena não foi captado pelo meu pai de 77 anos que estava nos observando fora do carro e ele passou mal. Nunca houve outra aula.

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Porém, quando ganhei o fusca, o que os dois não sabiam era que seu filho já tinha começado uma carreira secreta no volante. O início se deu no dia em que decidi colocar um anúncio no jornal oferecendo aulas de violão. Com a mesada definhando devido aos problemas nos negócios, precisava de dinheiro para manter o nível de farra e essa foi a melhor ideia que veio à cabeça.

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Dois dias depois o telefone tocou. A voz era feminina e rouca, algo que sempre me deu um certo tesão. Enquanto processava isso, a cabeça já estava "Meu Deus! uma aluna!!"

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Tentei soar profissional. "Sim, as aulas são particulares para iniciantes e para alunos avançados. Ensino qualquer estilo, da bossa nova ao rock."

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"Ai, adoro bossa nova, mas nunca toquei violão. Quanto tempo você acha que levaria para aprender?"

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"Ah, isso depende da habilidade e do esforço de cada um. Por que você não tenta uma aula, e daí a gente avalia?"

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"Ah, não sei, esse número é de Ipanema, não é? É muito longe. Eu moro na Tijuca, conhece?"

 

Menti. "Conheço, claro. Posso ir aí, mas como disse no anúncio são vinte e cinco cruzeiros na casa do aluno."

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"Não dá para fazer a primeira aula de graça? Só para eu sentir se vou gostar ou não?"

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Considerei as coisas, mesmo se aquela a voz no telefone fosse de uma deusa, a Tijuca era longe demais. "Olha, não dá, principalmente porque fica bem distante."

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Para minha surpresa, ela concordou. "Então, está bem. Que dias você pode vir? Só posso nos fins de semana."

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Blefei. "Um instante, deixa eu ver minha agenda." Esperei um pouco e respondi. "Tenho uma abertura no sábado à tarde da semana que vem, às três, pode ser?"

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"Para mim está ótimo."

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Animado, peguei o endereço e depois de desligar comecei a planejar as aulas. Ia imitar o Romualdo. Primeiro, exercícios para fortalecer os dedos, em seguida acordes básicos e depois as primeiras músicas fáceis. Só isso já daria quatro ou cinco aulas, cem cruzeiros no meu primeiro mês como professor... nada mal!

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No sábado seguinte, lá estava eu, violão de baixo do braço, orgulhoso por estar indo ganhar meus primeiros trocados na vida, sacrificando um dia ensolarado de praia, rumo à Tijuca na linha 464. Ela havia explicado onde deveria saltar e pedi ao motorista para me avisar quando o ponto chegasse. Quando desci, segui as instruções e consegui achar o prédio. Estava na hora e, nervoso, apertei o botão do apartamento no porteiro eletrônico. Depois de um tempinho ela atendeu e me pediu para subir. 

 

A aluna foi uma decepção. Parecendo tonta demais para aprender o instrumento, ela me convidou para entrar com um olhar catatônico. Nunca tinha estado num apartamento tão apertado antes. A sala era decorada com móveis de fórmica organizados em torno de uma televisão enorme. Havia cortinas feias cobrindo as janelas de alumínio e fotos de família penduradas na parede. Senti vontade de sair correndo daquela roubada, mas me segurei e fui profissional.

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Marineide era mais nova que eu, estava maquiada, mas dava para ver que tinha um bigodinho mal disfarçado. No mais, cheirava a perfume barato, tinha unhas pintadas e um corpo roliço coberto por uma blusa semitransparente.

 

Depois das introduções, perguntei "O teu violão?" Houve um silêncio desconfortável e uma nova olhada extraterrestre, mas continuei. "Você disse que ele está todo desafinado. Posso dar uma olhada?"

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"Ah, claro!" Ela voltou a estar presente, mas parecia nervosa. "Ele está no meu quarto. Se importa em dar a aula lá?"

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Com uma estranha desconfiança de que minha presença ali não tinha nada a ver com aprender violão, entrei no quarto apertadíssimo e exageradamente arrumado. O instrumento já estava fora da capa, na cama.

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"Tem um banquinho para me sentar aqui no quarto? Prefiro dar aula vendo o que o aluno está fazendo."

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"Claro! Tem um banquinho na cozinha; serve?"

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"Serve, claro. Obrigado" Enquanto ela foi para cozinha, tirei meu violão da capa e saí afinando o dela sentado na cama.

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“Você quer um copo de água gelada?”

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Respondi que sim e ela voltou com um copo, mas sem o banquinho. Agradeci e bebi. Já tinha afinado o seu violão e toquei uns acordes para mostrar.

 

"Nossa! Tá todo afinado! Ai, estou doida para aprender, você acha ele bom para o meu tamanho?”

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“Ele é pequeno, mas vai servir.”

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Ela se sentou do meu lado na cama. “Posso experimentar?" Passei a viola para ela, que colocou as unhas afiadas, que ia ter que pedir para ela cortar, nas cordas. “Viu? Não sei tocar nada.”

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A fim de começar a aula e sair dali o mais rápido possível eu perguntei: “E o banquinho?"

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"Você tem certeza de que precisa do banquinho?"

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"Sim, não vai dar para te ensinar sem sentar de frente."

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"Tá bom, vou trazer, mas posso ouvir você tocar uma música antes de ir lá pegar?" Achei estranho, talvez quisesse me testar, por isso toquei Aquarela do Brasil num arranjo complicado que impressionava.

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Quando terminei, ela estava impressionada. “Nossa gato! como você toca bem!”

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Estava pronto para começar a aula. Ela se levantou, mas em vez de ir pegar o banco, ela se ajoelhou na minha frente se apoiando nas minhas pernas. 

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"Sabe o que é? É que sou louca por violeiros e quando eu ouvi tua voz gostosa no telefone, não resisti. Tinha que te conhecer pessoalmente!"

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Fiquei sem resposta e sem ação. Dali, ela me deu uma olhada safada, tirou o violão da frente, abriu minha braguilha e colocou a mão dentro. As “joias da família” reagiram no ato. Sem pedir licença, ela baixou meus jeans e aplicou seus talentos. A aula estava encerrada.

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Feia, não muito inteligente e deveras comum, Marineide não fazia o meu tipo, mas era safadíssima e só saí de lá tarde da noite. Houve mais "aulas" e, viciado no que estava me dando, atravessei as barreiras de minha vida social esquizoide e acabei a apresentando aos amigos de baseados e de música. 

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Foi aí que o carro entrou em cena. Num fim de semana prolongado, minha ex-possível-aluna-tornada-amante, colocou o carro do pai à disposição para a gente ir para Mauá. Como ela não tinha ideia de como usá-lo, confiou na minha inexistente habilidade como motorista. O reduto hippie ficava a quatro horas de carro, duas horas e meia rodando pela rodovia mais importante do país, a Via Dutra, que liga São Paulo ao Rio, e o resto subindo por estradas de terra entre as montanhas. O entusiasmo levou a melhor sobre o medo, e resolvi encarar aquilo sem carteira de habilitação, contando com o pouco conhecimento adquirido com minha mãe em Teresópolis e com o que tinha ouvido falar.

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No dia, passei a noite na casa dela e partimos bem cedo para a casa de Kristoff para apanhar o pessoal. A decisão foi boa já que de madrugada não havia nem trânsito nem policiamento. Depois de atravessar vários sinais vermelhos, Marineide, que até então não tinha dado um pio, gritou apavorada.

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"Rique!!! Você vai entrar numa contramão!"

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"Cacete! É mesmo!"

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Não pensei duas vezes e virei totalmente o volante. À toda, o carro começou a derrapar, mas os pneus acabaram obedecendo e consegui evitar por poucos centímetros um poste que pareceu ter passado pela nossa frente em câmera lenta. Por um milagre chegamos intactos no Leblon e pegamos o pessoal, todos achando graça em segredo da minha garota bigoduda, mas também contentes com a independência de poder viajar de carro. De lá fomos rumo à avenida Brasil e saímos da cidade. Como chegamos em Mauá sem um arranhão permanece um mistério, mas ao sair do carro com as pernas ainda bambas, tinha aprendido a dirigir.

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Sem imaginar a possibilidade dessa aventura, Rafael insistiu que eu pegasse aulas de direção em vez de comprar uma habilitação no departamento de trânsito, o Detran, como todos faziam. O teste que aplicavam era quase impossível de passar; a ideia era forçar a propina. Como estava prestes a viajar de férias, chegamos a um consenso: eu pegaria as aulas e meu pai pagaria um preço mais baixo para comprar a habilitação sem a prova, em vez de pagar mais caro para que recebesse uma carteira sem nunca ter sentado em frente a um volante.

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Depois de duas semanas de aulas, fui à central de testes perto do Clube Flamengo, na Lagoa, onde entrei no carro com o dono da autoescola e dois examinadores que mais pareciam membros do esquadrão da morte. 

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Sem olhar para mim, um dos inspetores virou para trás e perguntou: “Esse pagou?”

 

O dono curso respondeu afirmativamente. Depois disso, tive somente que dar uma volta no quarteirão para receber uma carteira de habilitação que me deixaria "preparado" para o trânsito maluco do Rio de Janeiro.

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